Sumário
I. Prefácio - Fábio Lucas
II. Apresentação - Carlos Heitor Cony
III. Introdução - Sergio Vilas Boas
IV. Princípios - José Domingos de Brito: Dos mistérios da criação literária
Parte I
Depoimentos
Aldous Huxley - Almeida Garrett - Antonio Callado - Antonio Fernando Borges - Antonio Torres - Arnaldo Bloch - Arthur Dapieve - Bernardo Ajzenberg - Bernardo Carvalho - Cadão Volpato - Caio Fernando Abreu - Carlos Drummond de Andrade - Carlos Heitor Cony - Carlos Herculano Lopes - Carlos Ribeiro - Chesteston - Cintia Moscovích - Ernest Hemingway - Fabrício Marques - Fernando Molica - Fernando Pessoa - Ferreira de Castro - Ferreira Gullar - François Mauriac - Frederick Forsyth - Gabriel García Márquez - Gilles Lapouge -Gisela Campos -Gustave Flaubert - Heitor Ferraz - Heloisa Seíxas - Ignácio de Loyola Brandão - Inglês de Souza - Isabel Allende - Isaac Singer - Ivan Ângelo - J.J. Benitez - João Antonio - João Gabriel de Lima- João Ximenez Braga - John Cheever - Jorge Fernando dos Santos - José Castello - José Louzeiro - José Saramago - Juan José Saer - Julio Daio Borges - Juremir Machado da Silva - Lêdo Ivo - Luciano Trigo - Luis Fernando Veríssimo - Luiz Ruffato - Manuel Vázquez Montalbán - Marçal Aquino - Marcelo Coelho - Marcelo Maroldi - Marcelo Moutínho - Marco Pólo Guimarães Martins - Mário Sabino - Mario Vargas Llosa – Mempo Giardinelli - Michel Laub - Nelson Rodrigues - Olavo Bilac - Paulo Mendes Campos - Paulo Roberto Pires Pedro Juan Gutiérrez - Rachel de Queiroz - Roberto Drummond - Roger Vailland - Ronaldo Bressane - Rosa Amanda Strausz - Sérgio Alcídes - Sérgio Rodrigues - Toni Marques - Vicente Battista -Wander Piroli - Wílliam Kennedy - Zuenir Ventura
Parte II
Bibliografia resumida
RIO, João do – OLINTO, Antonio – CAPOTE, Truman – LIMA, Alceu Amoroso – SEABRA, José Augusto MORALES, Carlos – MEDICI, Ademir – CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex – FREITAS, Helena de Souza – VILAS BOAS, Sergio – VASCONCELLOS, Eduardo Martins – FERREIRA, Carlos Antonio Rogé – LIMA, Edvaldo Pereira – COSTA, Cristiane – KOENIG, Marília – WOLFE, Tom – IMBERT, Enrique Anderson – ABREU, Allan de – LAJOLO, Marisa
I. Prefácio
Fábio Lucas
As letras ingressaram na vida humana de forma tão radical que se torna difícil reconstruir sua trajetória. No mundo Ocidental, a invenção da escrita causou espanto, segundo testemunha Platão num dos seus diálogos. O alfabeto fonético trouxe outra expansão da mensagem escrita. Os suportes eram raros e frágeis, como os papiros e as peles de animais.
No campo da Comunicação, a humanidade assistiu a outra súbita mudança quando se deu a invenção da imprensa, quebrando-se, então, o monopólio da escrita e da leitura, confinadas aos mosteiros religiosos. Ao redor do avanço tecnológico, viram-se florescer o pensamento laico e o exercício da controvérsia. É claro que a extensão dessa faculdade terá sido à custa de muita luta e sacrifício.
O certo é que a escrita e a leitura ampliaram o campo da gnosis e da praxis, ou seja, do conhecimento e da ação, do saber e do fazer. Expandiram-se o acesso aos valores universais, à liberdade e à individualidade.
Na passagem dos séculos XVIII e XIX, foi-se implantando o uso diário da informação, consubstanciado no jornal. De início um boletim pessoal ou um panfleto partidário, cedo, com a implantação da indústria do papel e da utilização mecânica da impressão, constituiu-se a empresa impessoal de informação, dispendiosa e heterogênea, a reunir grupos de profissionais em torno de editorias específicas.
Os veículos impressos de comunicação informavam e esclareciam o público, interpretavam eventos e situações sócio-políticas. Encarregavam-se de espalhar notícias, idéias e diversões. Nutriam a curiosidade do saber, dentro de uma temporalidade própria: o cotidiano.
O jornal entrou nos hábitos da sociedade. Gerou o seu próprio público, sequioso de atualidade. Lidando com as notícias circunstanciais, efêmeras e conjunturais, formou o seu núcleo de consumidores, com o qual mantinha uma interação dinâmica. Produzia o que o público desejava e, ao mesmo tempo, pautava o estímulo do consumidor, orientava as suas aspirações intelectuais e consumistas.
Deste modo, a informação escrita foi-se definindo com forma que se exprime como opinião, além de transmitir parte do patrimônio do conhecimento da humanidade. Por isso é que o jornal integra o processo de comunicação social difusa da cultura em seu permanente devir.
Dois pilares sustentam a informação jornalística: a atualidade e a periodicidade. A atualidade exige do jornalista a busca da notícia, a função investigativa, ou a faculdade interpretativa que represente um novo olhar sobre os objetos, circunstâncias ou relações já conhecidos. Portanto, presta-se a ativar as capacidades cognitivas e programáticas do ser humano. A periodicidade diz respeito ao fornecimento cotidiano de novidades desejadas pelo público.
A liberdade da imprensa abriu, em determinadas ocasiões, o salão dos horrores, pois ao jornalista foi outorgado o direito de mentir, deturpar, intrigar e, até, de nutrir os mais baixos apetites do consumidor. A esse rebaixamento deu-se o nome de imprensa marrom.
Estabilizado o comércio das notícias, e posta a indústria cultural, o veículo usualmente escolhe o leitor hipotético, elege o tipo de público a que deseja alcançar. Para se aquilatar do nível mais baixo e extensivo, em certa época de intensa busca de consumidores, o jornalista fora aconselhado a escrever para o leitor que move os lábios enquanto lê. Isto é, para o mais primitivo e elementar.
Ao militar num mercado de feroz disputa de espaço, o jornal tendeu a tornar-se uma extensão dos interesses egoísticos da sociedade. Passou a misturar-se à propaganda e à manipulação de idéias e opiniões. Passou até a se tornar instrumento da construção do consenso em favor da ordem vigente. Enfim, pendeu para virar uma arma cultural da indústria, do comércio e do poder. Nesta era de oligopólios, é espantosa a uniformidade de manchetes, textos e imagens que se reproduzem de norte a sul, a ponto de se duvidar da chamada liberdade de expressão.
Com isso, teme-se a supressão da individualidade, mediante a tirania dos números, das maiorias ocasionais diariamente acionadas no plebiscito publicitário e consumista.
Paradoxalmente, o jornalismo contemporâneo tornou-se mais exigente. Requer instrução superior e até pós-graduação dos profissionais. Lida com bancos de dados e se vale de centros de pesquisa e análise da vida econômica, social, política e cultural da comunidade.
Assim, o jornalista estará credenciado a formar ou sustentar a vida de relações do país. O ser humano cerca-se de duas realidades: a física e a simbólica. Na qualidade de criador de símbolos é que o escrevente (inclusive o jornalista) desenvolve a comunicação humana e o processo social. A contribuição simbólica é ampla, engloba a linguagem, a arte, o mito, a religião, a filosofia e a ciência. Ao usar símbolos, o homem pode exprimir intenções, significado, desejos e, portanto, adquire o poder de alterar as formas da vida social.
O jornalista opera nos limites do escritor, na medida em que ambos lidam com a força comunicativa da palavra escrita. Mas o escritor o faz de maneira intensiva, com o propósito estético. O mesmo propósito pode estar no íntimo do jornalista, mas este é mais assediado pelo objetivo pragmático da empresa a que está ligado.
Quando o jornal se implantou como fonte de informação diária, ao alcance dos leitores, recrutou, entre os principais colaboradores, os letrados que já dispunham de notoriedade na utilização da palavra escrita: escritores, juristas, médicos, sacerdotes, engenheiros, enfim, todo aqueles vocacionados para a expressão artística, inclusive os auto didatas.
No século XIX, os principais escritores brasileiros eram também jornalistas. Machado de Assis seria o exemplo mais conhecido.
Como o jornal se encarregava de oferecer emoções diárias, quer mediante o noticiário político, policiar, esportivo e cultural, quer na divulgação de folhetins narrativos, suspeitou-se que a Literatura, principalmente no campo da ficção, sofreria uma forte retração no gosto dos leitores. Os livros ficariam numa escala subalterna, recolhidos às finalidades didáticas.
Mas o jornal, para atingir camadas populacionais mais extensas, cuidou de adaptar a linguagem à expressão próxima da oralidade. Adotou um coloquialismo distanciado das pompas de estilo então vigentes entre os escritores. Desataviou o linguajar, tornando-o mais acessível ao homem comum.
Tal estratégia contagiou os próprios criadores de Literatura. Deste modo, o jornalismo, de certa forma, dotou os escritores de uma linguagem mais ágil e comunicativa na poesia, na ficção e no ensaio. O estilo de um Coelho Neto seria a reminiscência de uma escrita literária arrevesada, postiça, cheia de afetação e exuberância vazia. Lima Barreto e o chamado “romance do nordeste” atestam outra fortuna de nossa criação narrativa.
Os folhetins passaram a ser a matriz dos principais romances que, testados para o grande público, na primeira versão jornalística, tomariam, a seguir, a feição do livro.
O mesmo se dirá das revistas, que publicavam poemas, crônicas e contos que, mais tarde, acabavam recolhidos a outro suporte, o livro. O conto moderno, segundo alguns historiadores, é fruto das revistas. A crônica se tornou um gênero especial para o jornalismo brasileiro.
O jornal acabou por incorporar às suas folhas o suplemento literário, órgão de grande prestígio literário no meio intelectual do país. Nos últimos tempos, os suplementos foram-se extinguindo ou se modificando de tal modo que sequer podem comparar-se aos antecessores. A indústria cultural os extinguiu ou deformou totalmente: passaram a ser mero setor do comércio de livros. Ou refúgio do noticiário da sociedade do espetáculo, sem densidade crítica ou especulativo. A tal ponto que, na quase totalidade dos “cadernos culturais”, o autor brasileiro figura como exceção, em face do espaço concedido a artistas da televisão, das telenovelas, da música popular, ou dos escritores de produções em série para o grande público, os tais de best-sellers, quase sempre estrangeiros.
O escritor vive hoje em certo isolamento, não obstante ter obtido um público antes diminuto: o dos estudantes de nível superior. A população universitária aumentou consideravelmente e a alfabetização tem contribuído para elevar o número de leitores. Perante o fracasso do ensino adaptado exclusivamente aos interesses egoísticos e pragmáticos, percebe-se uma reação positiva ao atraso em que o país se meteu em face dos demais países em vias de desenvolvimento. Com a incorporação de valores humanísticos à expressão escrita, é seguro que o Brasil poderá levar avante o seu projeto civilizatório, até hoje embargado pela deficiência da educação. O Jornalismo e a Literatura certamente se beneficiarão do esforço educacional.
A pesquisa levada a termo por José Domingos de Brito, acerca da combatividade do Jornalismo com a Literatura, fornecerá ao leitor consciente os limites epistemológicos para que transite entre a razão criadora do jornalista e a missão comunicativa do escritor. Em ambos os casos o foco principal incidirá sobre a qualidade, de que a quantidade poderá, ou não, ser conseqüência. Quando nos curvamos sobre obras de excelência como as de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, sentimos que a qualidade poderá se tornar quantidade, com a elevação geral do espírito humano. Tal intensa e extensa consagração dos autores tornou-os também, e à sua obra, notícia sempre renovável para o jornalista, pois, a um só tempo, constitui acontecimento literário e fenômeno sociológico.
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Fábio Lucas
Professor, Crítico literário e membro das Academias Paulista e Mineira de Letras.
II. Apresentação
Carlos Heitor Cony
É necessário apelar para Aristóteles: a definição se faz pelo gênero próximo e pela diferença última. Exemplo: o homem é um animal racional. O gênero próximo é o animal; a diferença última é o racional. Aplicando a mesma definição ao jornalismo e à literatura, teríamos de encontrar a diferença última entre as duas expressões da comunicação humana.
O gênero próximo é o mesmo: o universo das letras. A diferença última é o tempo. Daí que a palavra crônica é o segmento comum da literatura e do jornalismo. O jornalismo condiciona o espaço da letra ao tempo do tempo. O jornalismo distingue-se da literatura porser uma expressão datada.
Não se trata de considerar o jornalismo como expressão inferior à literatura. São expressões diferentes, unidas pelo mesmo gênero. Utilizam o mesmo veículo, pretendem atingir o mesmo objetivo, mas em tempo próprio para cada um. Dois exemplos da diversidade de tempo que marca tanto o jornalismo como a literatura: o primeiro seria o de Castro Alves, essencialmente um poeta, e José do Patrocínio, essencialmente um jornalista. Ambos integram a cultura brasileira, ligados sobretudo à causa da abolição da escravatura. Patrocínio era o tigre, enchia a rua do Ouvidor, foi levado em triunfo, no ombro do povo, logo após a princesa Isabel ter assinado a Lei Áurea. O herói foi ele, não a princesa.
Castro Alves nunca teve triunfo igual, mas continua presente em nosso presente e estará presente em nosso futuro. O Navio Negreiro atravessa gerações, é declamado nas escolas, nos teatros, na TV, emplacou na história. Patrocínio jornalista não foi menor, foi até maior do que Castro Alves no factual, no tempo, na data. Mas no tempo? Na permanência? O gênero próximo que unia os dois eram as palavras que despertavam emoções e apelos à razão, mas a diferença última foi o tempo – um escreveu para o dia, o outro, para sempre.
O outro exemplo vem de fora, foi provocado pelo caso Dreyfus. Na França, havia a consciência de que um inocente apodrecia numa caverna da Ilha do Diabo. O verdadeiro culpado já confessara o crime de espionagem, mas estava a salvo na Inglaterra. O poder da época não permitia a revisão do processo, o exército francês ficaria desmoralizado e era necessário prestigiá-lo, pois havia sempre o perigo de uma guerra contra a Alemanha.
Foi nesse quadro de infâmia que um escritor se levantou em defesa da dignidade, a própria e a da nação. Emile Zola era desprezado por sua obra naturalista, acusado de imoral. Sangue italiano, arrebatado, Zola escreveu um artigo, teve dificuldade em publicá-lo. Após tentativas frustradas, procurou o L’Aurore, dirigido então por George Clemenceau, que mais tarde seria primeiro ministro da França. Clemenceau aceitou o artigo de Zola, mas chamou-o à Redação e comunicou-lhe que mudaria o título de seu texto. Zola quis saber o que havia de errado naquela “Carta a M. Felix Faure, Presidente da República”.
Clemenceau explicou: Ninguém lerá um texto comprido como o seu e com esse título. Você mesmo faz uma série de acusações; no trecho final, todos os seus parágrafos começam com um “Eu acuso”. O título está aí. Eu acuso! “J’accuse!”.
Entraram os três para a história: Zola, Clemenceau e o artigo.
Analisemos o episódio. O escritor já era famoso, bem mais do que Clemenceau, que, na época, era apenas um jornalista voltado para a política. As obras de Zola corriam o mundo, ele fizera discípulos em todas as literaturas (Eça de Queiroz foi um deles), tornara-se o papa de uma nova corrente literária, mas não sabia provocar impacto. Foi, como disse Victor Hugo no seu funeral, “um momento da consciência humana”, mas lhe faltava o “timing” que se adquire nas redações comprometidas com o que está acontecendo.
Zola não escrevia para o dia seguinte, escrevia para sempre. Tanto que seus romances continuam sendo editados, traduzidos, adaptados para o teatro, para o cinema, para a TV. Costumo fazer uma comparação entre jornalismo e literatura. O jornalista é um peixe de aquário, exibe seu desenho, suas cores, a fosforescência que atrai o leitor. Impossível não admirar um peixe na gaiola iluminada, com água renovada diariamente. É um clown. Precisa de brilho, expressa-se num palco.
O escritor é diferente. Ele terá apenas cem leitores, como Stendhal calculava para si mesmo. Ou, como Shakespeare, passará 200 anos no limbo. O jornalista não pode passar duas edições sem ser lido.
E, se o jornalista é o peixinho de aquário, o escritor é o peixe da água profunda, vive na treva, em águas onde nem chega a luz do sol. É monstruoso, escuro, quasímodo que habita um território impenetrável. Não conhece os limites do palco. Tem o oceano para arrastar seu corpo medonho, sua fome que não escolhe o que comer.
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Carlos Heitor Cony
Jornalista, romancista e membro da
Academia Brasileira de Letras
Introdução
Sergio Vilas-Boas
Literatura e Jornalismo. Jornalismo e Literatura. Os debates universitários sobre este tema se travam em torno das interseções possíveis ou impossíveis. O que geralmente se pergunta é se o jornalismo é literatura. Pergunto eu: tal questão tem tanta importância assim? Talvez sim, talvez não, pouco se sabe a respeito.
O problema é que, para tentar respondê-la satisfatoriamente, seríamos obrigados a definir com clareza o que é a literatura e o que é o jornalismo; e se tais conceitos forem vislumbrados por um ângulo muito agudo, as tentativas de resposta podem acabar adquirindo uma entonação ideológica desagradável.
Há estudos acadêmicos relevantes, sérios e “desideologizados” sobre as relações do jornalismo com a literatura. Alguns me dizem que jornalismo e literatura são água e óleo, que não se misturam; outros argumentam que são nutrientes da mesma porção de terra, ou algo como os dedos desiguais de uma mesma mão.
Leio esses estudos (ou assisto a esses debates) com prazer, preocupação ou tédio, dependendo da qualidade dos argumentos e da forma de exposição. Realmente incríveis as doses de energia consumidas com o objetivo (objetivo?) de captar uma totalidade que, em si, nem me parece desejável.
Tenho visto muitos ensaios e debates que ficam girando ao redorde oposições periodísticas (o efêmero versus o duradouro); de dilemas profissionais-comportamentais (funcionário de jornal versus romancista/ contista/poeta); de afãs classificatórios (gênero versus subgênero); e digressões filosófico-estéticas (a arte versus a indústria).
A precariedade intelectual de algumas discussões beira o risível e até diminuem tanto a literatura quanto o jornalismo. Essas maneiras pendulares de sondar o irrespondível não me excitam, confesso. Já outras indagações especulativas como Por que escrevo? (tema do primeiro livro desta coleção), talvez por serem estritamente vivenciais, não acadêmicas, criam um apelo irresistível.
Certas coisas da vida (simples ou complexas) se tornam encantadoras pelo prazer do trajeto, não pelo foco no destino. Diante do meu fastio em relação ao falso problema do ser-não-ser que assombra o assunto deste livro, optei por registrar, aqui, o casamento verdadeiramente íntimo entre o J (Jornalismo) e o L (Literatura), algo há muito tempo praticado e apreciado pelo público – mas talvez desprezado pela crítica.
Esse casamento se chama Jornalismo Literário, definido por Edvaldo Pereira Lima como “reportagem ou ensaio em profundidade, nos quais se utilizam recursos de observação e redação originários da (ou inspirados pela) literatura”. Em comunhão de bens, e até que o mau senso os separe, os métodos de reportar (jornalísticos) e as técnicas de expressão (literária) formam um par prolífico.
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Sergio Vilas-Boas
Jornalista, professor e co-fundador da Academia
Brasileira de Jornalismo Literário
Princípios
J.D.Brito
Depois de questionar o porquê (1) e o como (2) da existência literária, partamos agora para especular o relacionamento com seu filho pródigo: o jornalismo. É sabido que a imprensa, hoje sinônimo de jornalismo, e a literatura, no sentido de “livros a mão cheias”, como pedia Castro Alves, surgiram quase na mesma época. Em 1456, quando Gutenberg inventou a imprensa, criou também o livro, como o concebemos hoje, ao editar a Bíblia. O primeiro jornal surgiu em princípios do século XVI, na Itália, com as Fogli d’avvisi, mais tarde chamadas de gazeta. Pouco tempo depois já havia panfletos circulando em vários países europeus, os quais viriam a se transformar na imprensa moderna. O primeiro jornal semanário – Gazzete de France – surgiu em 1631, não por acaso, em Paris, a capital mundial da literatura.
É óbvio, portanto, constatar que os escritores, literatos ou não, iniciaram escrevendo livros, em jornal e em revista. É fácil supor, também, que os “escribas” desta época escreviam nestes veículos simultaneamente e que jornais e revistas eram os meios mais adequados para divulgar os livros. Desse modo, jornalismo e literatura andam de mãos dadas há muitos anos. Há mesmo quem diga que o romance, enquanto gênero literário, nasceu dentro dos jornais – eram os folhetins, contidos nos jornais, publicando os romances em capítulos.
Visto sob este aspecto, é inócuo o questionamento para saber se o jornalismo é literatura ou não. Em termos acadêmicos, é comum colocá-lo como um gênero literário. Mas, há quem discorde dessa colocação. André Gide, por exemplo, é um deles; Antonio Olinto, no entanto, acha que sim, porque para ele o jornalismo é “uma penetração no dia-a-dia, em busca do que possa ter de significativo, de permanente” (3); Alceu Amoroso Lima é outro que concorda, pois o jornalismo “apresenta o traço diferencial da literatura em face da não-literatura, quando põe ênfase no estilo, como meio de expressão, distinguindo-se pois, dentro do próprio jornalismo, em sentido lato, de tudo o que vem no jornal” (4) . O assunto é controverso e não vamos entrar nessa polêmica. Mas a controvérsia serve para assinalar o quanto literatura e jornalismo se distanciaram ao longo dos tempos, adquirindo características autônomas.
Tal distanciamento vem se observando há mais de um século, ao ponto de um jornalista francês – Jules Huret –, em 1891, ter entrevistado 64 escritores com algumas perguntas sobre as diferenças e semelhanças entre jornalismo e literatura (5). Esta enquete inspirou João do Rio, em 1904, a fazer uma pesquisa, entrevistando 36 dos principais intelectuais do país para saber se a atividade jornalística atrapalhava ou ajudava quem queria se dedicar à literatura (6). Esta mesma pesquisa foi reeditada 100 anos depois pela jornalista Cristiane Costa para saber como os novos autores responderiam à pergunta formulada por João do Rio. A pergunta foi desdobrada em 13 outras, tais como: “pretendia ser escritor quando entrou no jornalismo? A linguagem dos jornais
oferece um aperfeiçoamento formal ou bloqueia o texto literário? A profissionalização através da imprensa permite a sobrevivência financeira do escritor ou o afasta de seu caminho? Até que ponto a obra literária é influenciada pela atividade jornalística?” (7).
Hemingway não foi entrevistado nestas enquetes, mas deu sua resposta noutra entrevista, que se tornou clássica: “O trabalho de jornal não prejudica um jovem escritor e poderá mesmo ajudá-lo, se ele sair a tempo” (8). Este 3° volume da coleção Mistérios da Criação Literária, tal como no 1º e no 2°, recebeu um substancial aporte de trabalhos realizados anteriormente que me remeteram a pesquisas ainda mais antigas. Refiro-me aos trabalhos das jornalistas Cristiane Costa e Helena de Souza Freitas, a quem deixo consignado meu sincero agradecimento.
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José Domingos de Brito
Chefe do Centro de Documentação do
Parlamento Latino-Americano
1 - Brito, José Domingos de. Por que escrevo? (Mistérios da Criação Literária. v.1). 2ª
ed. São Paulo: Novera, 2006.
2 - Brito, José Domingos de. Como escrevo? (Mistérios da Criação Literária. v.2). São
Paulo: Novera, 2006.
3 - Olinto, Antonio. Jornalismo e literatura. Rio de Janeiro: MEC – Ministério de
Educação e Cultura, 1954.
4 - Lima, Alceu Amoroso. O jornalismo como gênero literário. São Paulo: Com-Arte:
EDUSP, 1990.
5 - Huret, Jules. Enquête sur l’évolution littéraire. Paris: Librarie José Corti, 1999.
6 - Rio, João do. O momento literário. Rio de Janeiro: Garnier, 1904.
7- Costa, Cristiane. Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil 1904-2004. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
8 -Cowley, Macolm (coord). Escritores em ação: as famosas entrevistas à Paris Review.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. |