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Cinema
Leon Tolstoi

  

O cinema na visão de Tolstoi

(algo que pode ter um grande poder)

   "Já vereis como este pequeno e ruidoso artefato provisto de uma manivela revolucionará nossa vida: a vida dos escritores. É um ataque direto aos velhos métodos da arte literária. Teremos que nos adaptar a escuridão da tela e a frieza da máquina. Serão necessários novas formas de escrever. Tenho pensado nisso e tenho apenas uma intuição do que vai acontecer.

   Mas, a verdade é que estou gostando. Estas mudanças rápidas de cena, esta mistura de emoção e sensações é muito melhor do que os compactos e prolongados parágrafos literários a que estamos acostumados. Está mais perto da vida. Também na vida as mudanças e transições irradiam diante dos nossos olhos, e as emoções da alma são como furacões. O cinematógrafo advinhou o mistéio do movimento. E aí reside sua grandeza.

   Quando estava escrevendo O cadáver vivo eu arrancava os cabelos e retorcia as mãos porque não era capaz de criar cenas suficientes, imagens suficientes, porque não podia passar de um acontecimento a outro com bastante rapidez. O maldito teatro se parecia com a gravata que aperta o pescoço do dramaturgo; e me via obrigado a limitar a vida e ajustar a obra às dimensões e exigências do cenário. Recordo que numa ocasião me disseram que alguém muito experiente havia idealizado um projeto de cenário giratório, no qual podiam se preparar antecipadamente diversas cenas. Me regozijei igual uma criança e me permiti escrever dez cenas em minha obra. No entanto, mesmo assim tinha medo que minha obra falhasse.

   Mas os filmes! São maravilhosos! Brrr! E a cena já está preparada! Brrr! E aqui temos outra! O mar, a costa, a cidade, o palácio, e no palácio haverá tragédias (sempre ocorrem tragédias nos palácios, como nos ensina Shakespeare).

   Estou pesando seriamente em escrever um roteiro para o cinema. Já tenho o tema. É terrível e sanguinário. Os temas sanguinários não me dão medo. Tomemos Homero, ou a Bíblia, por exemplo. A quantidade de passagens sedentas de sangue que existe neles; crimes, guerras. E sem dúvida trata-se de livros sagrados, os que enobrecem e elevam o povo. Não é o argumento em si que resulta tão terrível . É o contínuo derramamento de sangue e a justificação do mesmo, o verdadeiramente terrível! Uns amigos regressaram há pouco de Kursk e me contaram sobre um incidente escandaloso. É uma história para o cinema. Não se poderia escrevê-la para a literatura ou para o teatro, mas na tela ficaria muito bem. Escutem! Pode ter um grande poder!"

   E Tolstoi narrou a história com todos os detalhes. Falava com profunda agitação. Mas nunca desenvolveu o tema em seus escritos. Tolstoi era assim: quando se encontrava inspirado com uma história em que estava meditando, ficava excitado diante das possibilidades que surgiam. Se havia alguém por perto, passava a descrever a trama com todo tipo de detalhe. Mas logo em seguida a esquecia por completo. Uma vez finalizado o prazo de gestação e tendo nascido o filho intelectual, Tolstoi raramente se preocupava em escrever sobre ele.

   Alguém comentou que os filme estão controlados pelos homens de negócios que só pensam em seus benefícios. “Sim, eu sei, já me falaram disso” replicou Tolstoi... “O cinema caiu nas garras dos empresários e a arte está chorando! Mas, onde não há empresários?” E passou a relatar uma de suas deliciosas parábolas que o fizeram famoso.

   “Há pouco tempo eu estava sentado na beira do tanque. Era meio dia e fazia muito calor, borboletas de todas as cores e tamanhos voavam em círculos ao meu redor, banhando-se sob a luz do sol, esvoaçando entre as flores durante sua curta – curtíssima – vida, pois com o por-do-sol deixariam de existir.

   Mas, ali na beira do tanque juntos aos troncos, me fixei num inseto com pequenas asas de cor lavanda. Ele também voava em círculos. Voava com obstinação e o círculos que fazia eram cada vez menores. Observei atentamente ao redor. Entre os troncos havia um grande sapo verde de olhos fixos, respirando aceleradamente; sua garganta brilhava com reflexos brancos e verdeados. O sapo não olhava para a borboleta, mas ela voava sempre sobre sua cabeça como que querendo fazer notar sua presença. O que aconteceu? O sapo levantou a cabeça, abriu sua enorme boca e – surpresa! – o inseto entrou ali deliberadamente. O sapo fechou rapidamente a boca e a borboleta desapareceu.

   Depois fiquei pensando que o inseto assim chega ao estômago do sapo, põe seus ovos, que maturam e reaparecem na mãe terra convertidos em larvas, em crisálidas. A crisálida se transforma em lagarta e desta surge uma nova borboleta. Então recomeçam os movimentos sob o sol, os banhos de luz e a criação de novas vidas.

   O mesmo ocorre com o cinema: Nos troncos da artecinematográfica senta-se o sapo: o homem de negócios. Ao seu redor voa o inseto: o artista. Mas não significa destruição. Nada mais é do que um dos métodos de procriar, de propagar a espécie; no estômago do homem de negócios se processa a semeadura e a maturação das sementes do futuro. Estas sementes pagarão à mãe terra para recomeçar mais uma vez suas formosas e brilhantes vidas” .   

Fonte: Los escritores frente al cine. Madrid: Editorial Fundamentos, 1981.

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