“Sou mais um ‘reescritor’ do que um escritor propriamente dito, tamanha a obsessiva e exaustiva e neurótica reescritura que faço dos meus textos. Copio Clarice (Lispector), e essas coisas são extremamente contagiosas: quando da máquina datilográfica, dava 7 espaços do começo da lauda até o início do texto a ser iniciado. Hoje faço o mesmo no computador. Isso é sagrado – toc, toc, toc na madeira mais próxima. 7 sagrados espaços 1/5 ( no word). Só escrevo de madrugada, geralmente começo à 1 hora da manhã e vou até quando der. Prometo a mim mesmo, quando envolvido com algum projeto (ficcional), mesmo extenso, só escrever, no máximo, 2 páginas de 31 linhas, em rigorosas Garamond 14, com zoom em 94%, espaço 1/5 – isso aí também é outra obsessão. Se for além das duas páginas, muito que bem, epifanias… Se não consigo ultrapassá-las chego a ficar 3, 4, 10 dias longe do projeto, angustiado, culpado e horrorosamente com medo de mim mesmo, um impotente, alguém que, embora com mais de 15 livros publicados, nunca escreveu uma linha…
Um belo dia retomo, e se chego às duas páginas (ou mais), de novo, sigo no ritmo diário, ou madrugueiro – de modo constante, até novo nó, claro… Quando dou o texto por ‘concluído’ (as 2 laudas ou mais) aí é que começa a glória e o êxtase de escrever. Sem angústia, puro gozo, releio, na cama, se frio (e sempre faz frio em Curitiba) embrulhado em cobertores e lareira acesa, crepitando (tem que estar crepitando, hehehehehe), os papéis A-4 sobre uma velha prancheta de papelão que me acompanha seguramente há uns 20 anos. Se um dia eu perder a prancheta, acho que não escrevo mais, tem que ser ela, somente ela, não mais que ela…. Aí leio como se fosse outra pessoa, um estranho face àquele texto e desce, então, a caneta Mont Blanc, esferográfica (tem que ser ela, só ela, apenas ela, exclusivamente ela, presente de um velho amigo e que está junto comigo aí uns 15 anos) sobre o texto, praticamente o desfigurando, de primeira. Volto ao computador, corrijo o texto no word, imprimo como se fosse a versão definitiva. Volto à cama, ao quarto, à prancheta, à Mont Blanc, à lareira, ao estrangeiro que lerá aquele texto que não me pertence. Não precisa dizer que a caneta desce de novo impiedosa desfigurando o texto, só que um pouquinho menos…
Isso até começarem a passar os primeiros carros por minha rua de arrabalde, o dia clareando atrás das cortinas e então, só me dou o direito a um sono reparador, e sem culpa, se o texto que voltou da impressora (seguramente a trigésima nona versão…) prescindir da rigorosa (e implacável) Mont Blanc. Tem que ser um texto sem mácula, nem que depois, na releitura total do projeto, eu o desfigure de novo e aí recomeça a sanha… Não vou dormir, mesmo se ao digitar, bati um ponto vírgula onde deveria ser uma vírgula ou uma letra encavalou na outra… TEXTO SEM MÁCULA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Ô ofício, ô vida. Tem gente que chama isso de profissão. Também, a exemplo de Clarice, que conheci na juventude, chamo a isso de ‘missão’, ‘mediunidade’. Não escrevo, corro atrás de mim mesmo.”
Fonte: http://michellaub.wordpress.com (23/10/2012)
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