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Conto

Pau-de-arara

 

Valdeci Alves de Almeida

     O caminhão deu um solavanco, arrancando com violência um torrão de poeira, saiu do terreiro gemendo a lataria e seguiu pela estrada batida de piçarra, em direção à cidade.

    Da carroceria, alguém bateu fortemente no vidro traseiro da boleia:

– Seu Teodoro, vem um homem correndo ali! Está pedindo pra parar.

    A freada brusca jogou os passageiros para frente. Houve impaciência geral: aquilo tinha de acontecer para atrasar a viagem? Teodoro, o mais irritado, botou a cabeça fora da cabina:

– Vamos, meu amigo, que isto aqui não é a casa da mãe-joana!

    O homem chegou esbaforido; uma trouxinha enxovalhada na mão:

– Peço desculpas, Seu Teodoro. Dormi muito...

– Pois, então, suba logo! – respondeu o motorista – Está ficando tarde!

     O sujeito jogou a trouxinha lá dentro e subiu rapidamente, sabia que quem bobeasse ficava para trás. Teodoro não esperava tempo bom e nem alisava lombo de peão! Todo mundo na vila tinha conhecimento disso.

     O passageiro retardatário enfiou-se no meio dos outros, arrumou por milagre um cantinho num dos bancos de trás – como sempre, a carroceria estava cheia – enquanto o caminhão prosseguia viagem. Na boleia, além do motorista, duas senhoras grisalhas e espigadas viajavam confortavelmente. Elas conseguiram os lugares da cabina, pois haviam reservado os assentos uma semana antes. Esse foi um preceito implantado pelo proprietário do carro para que não houvesse confusão na hora do embarque. Só abria mão da regra quando aparecia um idoso ou alguma mulher grávida.

      A viagem acontecia todas as sextas-feiras: o carro saía do distrito para a sede do município pela manhã e regressava sempre ao cair da tarde.

      Os primeiros raios de sol riscaram o horizonte, espantando o negrume da noite e anunciando mais um dia de calor intenso. Pouco a pouco, a paisagem se abria no estirão e, ao longe, surgiam jumentos pastando, cabritos roendo paus-de-cerca, homens com sacos nas costas, colhendo feijão. O pau-de-arara cortava a caatinga braba, subindo e descendo ladeiras, cantando pneus na estrada. As mulheres, nesse dia, se arrumavam com o que tinham de melhor no guarda-roupa: um vestido bem engomado, cabelos presos num coque e um toque impecável de maquilagem no rosto; já os cabras, esses não demonstravam vaidade – calça folgada, alpargata e chapéu de palha seguro por um cordão embaixo do queixo, para que não voasse com os ventos fortes do caminho.

     Na vila Poço do Padre, o pau-de-arara fez uma parada obrigatória. A poeira cobriu as poucas casas. Um grupo de meninos cercou o caminhão, cabeças curiosas apareceram nas janelas; Velho Justino, dono da bodega, esperava na calçada. Teodoro saiu do caminhão, deixando a porta aberta, e foi ao encontro do bodegueiro:

 

– Cadê a lista, Velho Justino? Por que não trouxe logo?

– Tenha calma, homem, está lá dentro. Vou buscar!

    Aquela cena se repetia sempre: o astuto comerciante fazia de propósito, enrolava para entregar a lista, assim, os passageiros desciam e, um ou outro acabava comprando alguma coisa. O negociante se voltou para os fundos da venda, rindo da cara do outro. O motorista balançou a cabeça: Velho Justino não perdia oportunidade.

    No caminhão, os passageiros esperavam calados; a meninada rondando a carroceria, o sol ganhando as alturas. Teodoro não gostava de ficar ali, perdendo tempo, mas tinha de esperar, pois Justino era bom cliente, pagava bem para que ele, Teodoro, trouxesse as mercadorias da cidade.

     Inquieto, Teodoro dirigiu-se ao oitão – estava mesmo precisando fazer uma necessidade. Quando retornou, ajeitando o cós das calças, encontrou apenas as mulheres no caminhão; os homens estavam no interior da bodega, ao balcão, tomando cachaça. Garrafa na mão, Velho Justino ria. Teodoro entrou como um foguete, o sangue inchando as veias da testa:

– Como é, gente?! Vão ficar aí enchendo a cara?!

    Copos se esvaziaram e todos voltaram rápidos ao pau-de-arara, deixando antes umas moedinhas tilintando no balcão. Velho Justino guardou a garrafa e estendeu a lista de compras ao outro:

– Pra que tanta zanga, Teodoro? Eles só queria matar o bicho!

– Passe pra cá esse papel, Velho Justino. Não me faça perder mais tempo!

    Teodoro saiu da venda com a cara amarrada; mandou os meninos arredaram depressa e quase peitou em uma mulher com bolsa a tiracolo, que vinha se achegando ao caminhão. Ele entrava na boleia, quando a dama, tímida, o interpelou:

 

– Moço, por favor! Preciso ir até a cidade...

    Olhou-a com má vontade, abriu a boca para dizer um palavrão, mas se conteve diante do que seus olhos viram: era uma mulher linda, bem vestida, alva, estatura mediana, de cabelos longos, negros e lisos. Os passageiros arregalaram os olhos; as mulheres da cabina esticaram o pescoço; Velho Justino ficou admirando da porta.

    A raiva do motorista, de repente transformou-se em finuras:

– Pois faça o favor, dona. Mas antes, me deixe pegar a escadinha, pra mode a senhora subir.

    A jovem sorriu com o canto da boca – além de sujeitar-se a um transporte rústico daquele, ainda tinha de aguentar aquele sujeito bruto  chamando-a de senhora... O motorista meteu a mão em baixo de um dos bancos e arrastou a escadinha, encaixou-a com jeito na carroceria e ajudou a moça, segurando-lhe a bolsa, para facilitar o embarque. Ela subiu meio sem jeito e olhou em volta, procurando um lugar onde pudesse se acomodar – não havia nenhum. Teodoro veio socorrê-la:

– Abram espaço! Deixem a dona sentar!

    Em obediência à voz de comando, abriu-se uma brecha no banco. A moça pegou a bolsa e sentou-se entre dois cabras de olhos fundos e rostos sapecados pelo sol; o motorista voltou ao volante, ligou o motor e ganhou a estrada outra vez, deixando os meninos e Velho Justino debaixo de poeira.   

    Ela se ajeitava como podia, a pequena bagagem sobre as pernas, enquanto olhava de esguelha aquela gente de cara cansada que não tirava os olhos de cima dela. Ninguém dava conta de onde viera a tal mulher e nem os motivos que a trouxeram até ali. Pelos modos refinados e a postura altiva, notava-se que vinha de fora, certamente de uma grande cidade. Contudo, o que fazia num lugar seco como o sertão? Quem sabe estivesse visitando algum parente, um amigo; teria ela se perdido; ou tudo não passava de uma fuga? Talvez fosse até uma criminosa, meu Deus do céu, fugindo da polícia! Não se disse nada. O silêncio traduzia-se na timidez peculiar aos costumes daquele povo.

    O pau-de-arara começou a sacolejar; aquele trecho do caminho havia sido danificado pelas últimas chuvas, os buracos dominavam boa parte da estrada. Era visível o desconforto da moça, que se contorcia num esforço inútil, tentando alargar o estreito lugar onde se sentara. Pensou em pedir a um dos moços que se afastasse. Respirou fundo, olhou-o súplice, sorriu, mostrando uma simpatia forçada. Este, por sua vez, sentindo-se agraciado com o olhar encantador, arreganhou os dentes falhos e encardidos, que a fizeram desistir imediatamente da ideia. Melhor não dizer nada e continuar ali, espremida, resistindo.

   Impaciente, mexeu os pés e chutou sem querer três galinhas amarradas em baixo do banco. “Diabos, até frangos levavam no carro e, ainda por cima, vivos!”. Ficou com medo de levar uma bicada; movendo as pernas de um lado a outro, acabou enfiando o salto da sandália num montículo de bosta. Por pouco não vomita nas costas da mulher à sua frente. E não podia nem pensar em respirar fundo dessa vez, ou iria aspirar um fedor desgraçado. Acalmou-se a custo, tapou o nariz e limpou discretamente o calçado, esfregando-o num saco de milho – pior ainda era o mau cheiro, que parecia estar por toda parte, mas curiosamente, só ela sentia.

   Passou a observar a paisagem, buscando atrativos que lhe fizessem esquecer a catinga. E visualizou um enorme açude, de água limpa, pequenas ondas indo e vindo. “Ah, meu Deus! Se pudesse molhar-me naquele mundão de água, se estivesse agora em cima do sangradouro? pularia lá dentro com roupa e tudo”. No entanto, conforme o açude ia ficando para trás, compreendeu que o cheiro desagradável seria sua companhia inseparável, o resto da viagem.

   Uma hora mais tarde, o carro finalmente chegou à cidade e seguiu pela Avenida Central. O comércio já estava em pleno funcionamento: o Mercado Municipal cheio, pessoas saindo e entrando nas lojas, ruas apinhadas, paus-de-arara chegando a todo instante. Teodoro estacionou o caminhão em frente à prefeitura. A bela mulher tomou à dianteira e desceu rapidamente. Dirigiu-se ao motorista, abriu a bolsa e dali retirou umas notas, pagou a passagem e se foi sem dizer adeus; os outros passageiros, estarrecidos, ficaram no mais absoluto silêncio, espiando seu andar faceiro e cauteloso, até vê-la sumir na esquina.

 

 

 

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