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Contos

A MENINA QUE APRENDEU A MENTIR

Margarete Hülsendeger

Do bem e do mal
Todos têm seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa na vida inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz frutos...
Já viste as flores que a mentira dá?

Mario Quintana

     “Mentir é coisa feia. É pecado. Papai do céu não gosta”, dizia sua mãe.

     No entanto, a avó uma vez havia explicado que certas mentiras, chamadas “piedosas”, não eram ditas para fazer o mal. Ao contrário. “Ajudavam o bem a triunfar!” – exatamente como nos contos de fada. Portanto, segundo ela, eram aceitas e perdoadas por Deus. Era preciso apenas ter muito cuidado, pois as “mentiras piedosas” podiam se transformar nas “mentiras feias”, e essas, com certeza, não seriam desculpadas.

     Essa foi a primeira vez que a menina se deparou com uma das inúmeras contradições que só os adultos eram capazes de inventar: “Mentir é pecado, mas...”. No entanto, sendo esperta, logo compreendeu que, no mundo dos “mais velhos”, havia coisas que, simplesmente, deviam ser aceitas, sem tentar entendê-las. Mentir era apenas uma delas.

     A partir dessa aceitação tácita das “coisas dos adultos”, a menina passou a silenciar e, na impossibilidade de permanecer em silêncio, a mentir sobre tudo que considerasse importante para a sua vida ou a vida daqueles que amava.  Por esse motivo sempre estava atenta aos olhares intensos da mãe. Aprendeu a interpretar os sinais sutis e quase imperceptíveis que ela enviava. Criou-se entre as duas um canal de comunicação de fazer inveja a qualquer serviço de inteligência. E, na maioria das vezes, a mensagem transmitida era invariavelmente a mesma: “Fique quieta, minta e tudo vai ficar bem”.

     Assim, quando flagrava a mãe retirando escondida, dinheiro da carteira do pai, para com ele comprar um sapato ou uma roupa nova, fingia nada ver. Se o pai perguntava sobre o paradeiro da carteira ou do dinheiro, ela, com ar inocente, respondia sem pestanejar: “Não sei pai, não vi nada!”

     O problema era que para cada nova mentira uma nova história precisava ser inventada. Gerando um ciclo, na maioria das vezes, angustiante e aparentemente sem sentido. Em muitos momentos, a menina não conseguia entender por que a mãe comportava-se dessa maneira. “Não seria mais fácil dizer a verdade, não precisar mais mentir? E o Papai do Céu? O que Ele faria se descobrisse todas as mentiras que, muitas vezes, era obrigada a contar?”, ela se perguntava. O medo tornou-se o companheiro de todas as horas, transformando seus dias de criança numa tortura difícil de esquecer.

No entanto, o olhar angustiado da mãe, alertando-a para o perigo, fazia com que ela permanecesse calada. Nessas ocasiões, lembrava-se sempre da avó, apegando-se a ideia de que suas mentiras eram todas “piedosas”. “Papai do Céu vai compreender. Papai do Céu vai perdoar”, ela dizia a si mesma.

     Uma noite, quando a confusão e a dúvida a estavam deixando inquieta e ansiosa, a menina, tomando coragem, perguntou:

      “Mãe? Quando crescer será que vou ter de mentir?”

      A mãe, mesmo sentindo-se culpada, respondeu:

      “Se for necessário, sim.

      “E os meus filhos?”, quis saber a menina.

      “O que têm os teus filhos?”, perguntou, confusa, a mãe.

      “Vou ter de ensiná-los a mentir?”

      A mãe, aflita, permaneceu em silêncio. A menina a olhava em expectativa esperando uma resposta que ela não era capaz de oferecer. Há tanto tempo convivia com a necessidade de mentir que não percebera o tamanho do sofrimento da filha. A tristeza estampada no rosto da menina era imensa, algo que a mãe havia sistematicamente ignorado para não sentir o peso da culpa que agora caia sobre ela.

     Contudo, quando finalmente reuniu coragem para responder, a mãe não teve dúvidas e olhando firme nos olhos da filha disse:

     “Não, querida. Você não vai precisar ensiná-los a mentir, porque se Deus quiser, e ele há de querer, você será feliz.”

      A menina, muita séria, olhou para o rosto da mãe. Será que ela poderia acreditar nessas palavras. Será que a mãe, como em tantas outras vezes, não estaria mentindo? Ela não tinha como saber. No entanto, a menina, na sua inocência, resolveu fingir que tudo estava bem. Assim, sem dizer nada, abraçou e beijou a mãe, certa do perdão de Deus para mais aquela mentira. Afinal, não era para isso que as “mentiras piedosas” serviam?

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Margarete Hülsendeger
Cronista e contista gaúcha, autora de E todavia se move (Epur se muove) publicado em 2011 pela ediPUCRS. Colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra

 

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