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Biografia profissional

15º emprego:

Bibliotecário-Chefe

Cícero da Mata

     Disse que o 6º emprego (Metrô) foi o mais importante de minha vida profissional e mantenho a palavra. Mas este 15º foi o maior sob o aspecto da quantidade de pessoas à serem gerenciadas e desafios à serem vencidos. Um dia antes de completar 36 anos fui contratado para chefiar a Biblioteca da EAESP/FGV-Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas. Trata-se da maior biblioteca especializada em sua área no Brasil. Quando entrei contava com mais de 40 funcionários e muitos problemas requerendo urgente solução.

     Na época eu era presidente do Sindicato dos Bibliotecários, e o Diretor Administrativo – Roberto Venosa –, que me selecionou, foi questionado entre seus pares pelo fato de ter contratado um dirigente sindical. Ele alegou que eu fui “cooptado” pela GV para resolver os problemas da biblioteca, que eram muitos. Ele estava atritado com a bibliotecária-chefe e o sub-chefe não queria assumir o cargo de chefia em solidariedade à sua colega. Teve que recorrer á alguém fora da instituição. Pediu à um amigo em comum que encontrasse alguém para encarar a tarefa. Me encontraram.

     A biblioteca se encontrava “abandonada” pela direção da GV; desligada do sistema central de catalogação (CALCO) mantido pela entidade mantenedora, FGV do Rio de Janeiro; e mantinha a existência de um acervo paralelo, o que exigia consulta dupla por parte dos usuários. Para completar, o acesso era livre à qualquer pessoa. Esta característica, simpática sob o ponto de vista da democratização da informação, trazia alguns problemas ao seu bom desempenho. Muitas vezes os alunos não dispunham de lugar nas salas de leitura, devido à ocupação por pessoas estranhas à instituição; Alguns moradores residentes nas redondezas em edifícios do tipo “treme-treme”  e desempregados, faziam da biblioteca sua sala de leitura, de lazer e até de dormir; muitas empresas localizadas na Av. Paulista utilizavam seu acervo livremente; aos sábados algumas escolas secundárias enviavam grupos de alunos para fazerem trabalho escolar, devido à excelência das instalações e do acervo.    

     Assim, uma das minhas primeiras medidas foi solicitar à Direção da casa que o acesso à biblioteca ficasse restrito à comunidade acadêmica, e que os visitantes ou usuários externos seriam atendidos mediante prévia solicitação. Tal medida causou algum desconforto no métier biblioteconômico, e eu fui acusado de estar cerceando o acesso à informação. Mas a Diretoria entendeu e concordou que a prioridade de acesso deveria ser dos alunos, que para isso pagavam uma boa mensalidade. E logo tudo ficou bem resolvido, pois todos entenderam que não se tratava de uma biblioteca pública.

     Em seguida, tratei de “arrumar” a casa: primeiro foi preciso reinserir a biblioteca no sistema CALCO (Catalogação cooperativa) da FGV, pois não era possível imaginar que uma biblioteca parte da mantenedora (FGV) não integrasse um sistema no qual tantas outras bibliotecas universitárias estavam integradas. Este foi o começo do processo de informatização da biblioteca. Para facilitar esse trabalho, eu contava com um funcionário, que exercia a função de secretário da bibliotecária-chefe e que seguiria sendo meu secretário caso eu quisesse. Meu entendimento era que, se precisasse de uma secretaria, este cargo deveria ser ocupado por mulher e não por homem. Porém, eu decidi que esta função poderia ser dispensada, e o funcionário Edmilson Boregas, afeito aos microcomputadores que surgiam na época, passou a supervisionar o processo de informatização da biblioteca. Posteriormente ele foi promovido a técnico de sistemas, e hoje ocupa o cargo de Analista de Sistemas Sênior do Departamento de Tecnologia da Informação e Comunicação,

     Outra “arrumada” na casa foi a instalação de uma sala de estar e leitura de lazer na entrada da biblioteca. Passei a adquirir, por doação, alguns livros de arte, os quais junto com as revistas informativas e os últimos números das revistas técnicas, formariam o acervo da “sala de estar”. Para compor a sala era preciso adquirir estantes demonstrativas para expor as revistas. Como a diretoria demorou muito em adquirí-las, eu decidi apressar sua instalação: finquei uns pregos na parede, estendi um arame, pendurei as revistas e chamei o diretor para ver o varal de revistas, que mais parecia uma banca de “literatura de cordel” na feira de Caruaru. Definitivamente aquelas instalações não eram compatíveis com o nível de uma instituição como a GV. Desse modo, foram adquiridas em caráter de urgência não só as estantes demonstrativas, como sofás e mesa de centro, possibilitando uma sala agradável e confortável aos usuários da biblioteca.

     Claro que para realizar tantas mudanças em pouco tempo eu deveria estar fortalecido no cargo, e estava. Pouco depois de entrar na GV fui agraciado com o título de "Bibliotecário do ano 1987", concedido pela Associação Paulista de Bibliotecários. A Diretoria comunicou o fato em toda a instituição através de uma circular, e fui chamado até a Diretoria para receber os cumprimentos. Com esse aporte fiquei animado em participar da RAE-Revista de Administração de Empresas. Estranhava o fato de uma biblioteca daquele porte não ter particpação alguma na tradicional revista da GV

     Antes de participar da RAE, precisava tornar a Biblioteca mais conhecida em toda a comunidade acadêmica. Para isso, criei um informativo semanal e dei-lhe um título para chamar a atenção:

Alerta

      Utilizando apenas um lado de folha ofício grande, eu colocava manchetes de sete releases/resumos de artigos mais interessantes ou oportunos, publicados nas centenas de revistas estrangeiras assinadas peça biblioteca. Era uma folha distribuida aos professores, que dispunham de pouco tempo para frequentar a biblioteca. Era "a montanha indo à Maomé". Os professores gostaram do boletim e passaram a pedir os artigos de seu interesse através das secretárias de departamento.

      Conversei com a editoria da RAE, propondo a participação da Biblioteca na revista com informes de revistas, livros, eventos, teses e pesquisas bibliográficas. Fazia uma seleção dos artigos mais oportunos, extraidos do Alerta; outra seleção dos livros mais importantes incorporados ao acero; listava os eventos destacados na área de administração; relacionava as teses e dissertações defendidas no periodo e entregues à Biblioteca; pedia uma pesquisa bibliográfica ao Serviço de Docmentação da Biblioteca e com isso eu alimentava cinco seções na RAE. Pouco depois, o prof. Roberto Venosa me pediu para fazer resenhas de livros recém lançados para divulgar na revista.

       Prosseguindo na animação com o trabalho, fiquei sabendo da realização do 6º Seminário de Nacional de Bibliotecas Universitárias, em 1989, em Belém do Pará. A utilização que as empresas faziam da biblioteca me fez pensar numa forma de prestação de serviços àquelas empresas. Elaborei uma apresentação e solicitei à Diretoria minha participação no evento. Fui mas não cheguei em tempo de apresentar o trabalho pessoalmente. Foi entregue aos realizadores e incluido nos anais do evento. Como era um tema polêmico e necessário, me prometeram incluir o tema no próximo evento. No 7º SNBU, em 1991, no Rio de Janeiro, montaram um painel intitulado "Padrões para serviços bibliotecários aos usuários: custos e preços"  e me convidaram à integrá-lo. Redigi uma apresentação: "Prestação de serviços da biblioteca universitária às empresas" e entreguei aos participantes do painel. Minha intenção era moblizar os bibliotecários-chefes de bibliotecas universitárias para encontrar fórmulas de como colaborar com a tão pregada integração universidade-empresa e, com isso, propiciar verbas extras para ajudar a manter e desenvolver as bibliotecas universitárias sempre carentes de recursos, principalmente financeiros.

      Outro trabalho significativo realizado foi a criação do Centro de Documentação Européia (CDE). A União Européia (UE), ainda com o no me de Comunidade Européia, instalou Centros de Documentação em diversos países, e no Brasil a GV foi escolhida para sua instalação. O diretor Marcos Cintra Cavalcante decidiu, então, em parceria com a Federação do Comércio, criar um Instituto Brasil-Comunidade Européia (IBCE), localizado numa mansão na Vila Mariana. O IBCE Era uma “ponta de lança” criada pela FCESP em parceria com A GV e  conveniada à UE para alavancar as relações comerciais entre o Brasil e a Europa. Sua estrutura administrativa era pequena, com um secretário-geral e algumas salas para reuniões com os empresários. As instalações do IBCE se restringiam ao Centro de Documentação, que mantinha um acervo de publicações permanentemente atualizado pelo Serviço de Publicações da UE. É sabido que o português é uma das línguas oficiais da UE. Assim, recebíamos diariamente o “Diário Oficial”, revistas, relatórios e diversas publicações referentes aos acordos comunitários e andamento do processo de integração européia. Na organização do CDE envolvemos  duas bibliotecárias, as quais foram transferidas para trabalhar em sua sede na Vila Mariana, mas continuaram como funcionárias da GV sob a minha supervisão. Este trabalho me rendeu um estágio no CDE de Coimbra, para onde viajei em 1991 aproveitando um tour de 40 dias pela Europa, que fiz na companhia de Luiza e Juliano, tendo Humberto Mafra como acompanhante, patrocinador e guia

       Em 1993 foi eleito um novo diretor para a EAESP/FGV, e para meu azar ele não foi com a minha cara e me disse isso de um modo administrativo. Chamou-me na sua sala e disse que como meu cargo era de confiança, ele estava disposto a me substituir. Explicou que era  um “problema de química”. Nossas personalidades não “deram liga”. Interessante é que a recíproca era inteiramente verdadeira: eu também não fui com a cara dele. Ele ainda perguntou se eu compreendia a situação. Eu disse que não; que só entendia de biblioteconomia, de relações de trabalho, etc. Ficou me olhando mais demorado, até eu me retirar da sala. Isto se deu pouco antes do almoço. Depois do almoço, fui arrumar minhas coisas. Enquanto arrumava, ele entrou na minha sala com um meio sorriso estampado, e foi logo perguntando:

- "Você está com mais ou com menos raiva de mim?"

Eu não respondi de pronto, fiquei olhando para ele e disse

- "Na minha vida profissional eu aprendi a não ter nem mais nem menos raiva de meus chefes. Eles estão numa posição que lhes permitem fazer o que bem entenderem. De modo que para mim todos eles me são indiferentes".

   

       Ele torceu a boca, franziu a testa e balançou a cabeça para cima e para baixo, como se dissesse: "Sim, estou entendendo". Porém, visivelmente constrangido, levantou-se e saiu. Era um cara baixinho, mas altivo, orgulhoso e eu queria manifestar meu desprezo, minha indiferença à sua pessoa. Creio que consegui.

 

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