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Biografia profissional
17º emprego

 

Bibliotecário Sênior

Cícero da Mata

 

Após dois meses de espera angustiante, finalmente, em julho de 1993, o Parlatino me chamou. Fui escolhido entre uma centena de bibliotecários que se candidataram ao cargo.  Foi uma comoção e uma das poucas vezes em que cheguei a chorar de alegria ao receber a notícia por telefone, ainda na Biblioteca da FEA. Eu devia comparecer munido de documentos no dia seguinte.  Logo na apresentação, uma surpresa desagradável: junto comigo, se encontrava outro candidato, de óculos, terno, engravatado, esperando para falar com Amadeu, o gerente administrativo, com quem fiz os primeiros contatos.

        Amadeu disse que o cara era bibliotecário e deveria ser contratado também junto comigo, seria meu auxiliar. Assim, o salário de 1.500 dólares  seria rebaixado para  1.000 dólares, pois  500 dólares seria o salário do auxiliar. Disse também que depois iria verificar se dava para recompor meu salário para os 1500 dólares prometidos, e perguntou se eu topava. Topei e saímos dali, eu e Luiz, em torno do meio dia direto para o restaurante Consulado Mineiro, comemorar com uma boa comida e cachaça.  

        No outro dia, na conversa com o superintendente do Parlatino - Fernando Gasparian -, fiquei sabendo que o cara estava sendo contratado a pedido político, e que não passaria do período de experiência (três meses). Desse modo, eu deveria aproveitar ao máximo esse período que contava com o auxiliar, pois depois  eu estaria só com uma auxiliar para organizar o Centro de Documentação. Esperei que ele falasse da recomposição salarial após essa fase, mas nada foi falado nem naquele momento nem em outro qualquer. O salário ficou sendo aquele mesmo, de 1.000 dólares.

       Parlatino é abreviação de Parlamento Latino-Americano, uma instituição internacional, fundada em 1964, cuja função é promover a integração dos países da região. É integrado por parlamentares de 23 países latino-americanos, os quais, em tese, deveriam contribuir com quotas para sua manutenção. Em tese, porque tais contribuições não eram feitas regularmente. De modo que sua manutenção (de 5 milhões de dólares anuais) era feita unicamente pelo Governo de São Paulo. A princípio foi instalado no Congresso do Peru e posteriormente teve como sede o congresso nacional de alguns países como Colômbia, Venezuela, Argentina etc. No final da década de 1980, o Governo do Estado de São Paulo (Franco Montoro) decidiu criar uma sede permanente para instalá-lo no Memorial da América Latina, no bairro da Barra Funda, e deram inicio à construção do prédio.

        Em julho de 1993, o Parlatino foi inaugurado numa solenidade com a presença de 13 chefes de estados-membros, autoridades de diversos países e representantes da União Européia. Como instituição política de caráter internacional teve uma atuação pífia até 2007, quando o então governador José Serra chamou o presidente, o secretário-geral e o diretor, e perguntou-lhes – a queima roupa – “O que faz o Parlatino?” Os dirigentes da instituição ficaram atônitos com a pergunta, titubearam na resposta, e o governador emendou: “Tudo bem, não precisa responder, eu chamei vocês aqui para  comunicar que eu quero o prédio de volta até o fim deste ano; até lá vocês terão a verba de manutenção, enquanto encontram outro local para se instalar”.

        Foi um “Deus-nos-acuda”, com os funcionários e dirigentes em busca de alguns padrinhos políticos que pudessem fazer o governador voltar atrás, mas não teve jeito. Assim, em dezembro de 2007, todos os funcionários foram demitidos e o Parlatino foi transferindo para o Panamá. Esta é a síntese histórica de quinze anos da instituição no Brasil que precisa ser contada, pois a instituição ficou pouco conhecida entre nós. Voltemos ao cotidiano do meu trabalho ali realizado neste período. 

  

        Fomos (eu, o auxiliar e a “secretária”) colocados numa pequena sala onde mal cabiam os três. Aproveitei o contingente para mostrar serviço e logo estávamos fazendo um ‘clipping” diário, a partir dos jornais e revistas que recebíamos. Mas, já no fim do mês, fomos transferidos para uma sala maior no térreo, tendo em vista que a inauguração oficial necessitava contar com o Centro de Documentação instalado. Às pressas, compramos alguns livros e mandamos fazer estantes especiais adequadas ao espaço. Para deixar o ambiente mais agradável, levei de casa alguns vasos e objetos de decoração.

        Poucos meses depois, fui chamado à sala do Dr. Gasparian. Ele pediu que me preparasse para uma viagem ao México junto com a chefe do setor de informática, dentro de três dias. Ainda em sua sala, chamou também a tal chefe (uma sobrinha do Secretário-Geral) e comunicou-lhe que eu iria junto com ela. Fiquei sabendo que se tratava de um evento profissional, e perguntei se o evento trataria de bibliotecas ou centro de documentação. Ela respondeu visivelmente contrariada: “Também”. Só depois é que  soube que se tratava do I Encuentro de Bibliotecas Parlamentarias. O Parlatino recebeu o convite para participar, e a moça providenciou sua inscrição sem que eu soubesse do tal evento. Felizmente o Dr. Gasparian não deixou que o “golpe” fosse consumado inteiramente. Passei cinco dias no México com uma boa diária (de 300 dólares) e bem instalado num hotel na praça central, o “Zócalo” . Foi uma ótima viagem, pois houve tempo para conhecer melhor o México.  Eu não tinha participação ativa no evento, apenas ajudei a moça em sua apresentação de uma rede de telecomunicações unificando os parlamentos da América Latina, que mais tarde trouxe sérios problemas para a instituição.

        Voltei do México animado em colaborar com a integração latino-americana e a projetar o Parlatino. Poucos anos antes, eu havia mantido a publicação de alguns artigos no “Diário Comércio & Indústria”. Aproveitei o espaço que me era reservado para escrever uns artigos sobre eventos realizados, e publiquei em 27/10/1994 o artigo “União latino-americana vive grande momento” sobre o 2º Fórum Mercosul-Nafta promovido pelo Parlatino em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais e Comparada da USP. No ano seguinte, em 1/05/1995, publiquei outro artigo “Realidade do Mercosul, projeto do Merconorte”, sobre o Seminário Mercosul-Venezuela”, realizado em parceria com a Embaixada da Venezuela. Para mim, a publicação destes artigos tinha outro objetivo não revelado: mostrar aos dirigentes da instituição que eu poderia fazer outras coisas em prol da integração, além de organizar o Centro de Documentação. Mas o empenho ficou apenas na intenção. Nunca recebi comentário algum dos diretores, talvez não tenham nem tomado conhecimento.   

       Pouco depois, a tal rede de telecomunicações que unificaria os parlamentos da região foi o pivô de um escândalo denunciado pela imprensa. Ao fazer o “clipping” diário, deparo com uma nota publicada no Jornal do Brasil, denunciando a armação de um golpe pelo Diretor do Parlatino na contratação de uma empresa estrangeira a quem seria confiada a instalação da rede de telecomunicações. O custo da instalação era vinte vezes maior do que seria caso fosse executada pela Telebrás. E a nota alertava: “Além das maracutaias brasileiras, agora somos vítimas, também, de uma maracutaia latino-americana". A nota caiu como uma bomba na minha mão. Como vou colocar no “clipping” uma notícia acusando o Diretor do Parlatino de corrupto?

        Ampliei uma fotocópia da nota, estampei na capa do “clipping” e fui mostrar ao Dr. Gasparian. Perguntei-lhe se podia soltá-lo assim mesmo. “Sr. Brito, faça seu trabalho e eu não vi essa nota, certo?” Mais tarde fiquei sabendo que a notícia foi “plantada” no Jornal do Brasil por ele mesmo. Na condição de gestor da verba governamental dirigida ao Parlatino, ele impediu a execução do empreendimento e causou a demissão do Diretor. E assim fui conhecendo o funcionamento daquela instituição “por dentro” e reconhecendo suas mazelas. Brasileiros mesmo ali só havia eu e umas poucas pessoas nos serviços de editoração, contabilidade e manutenção. Ao todo, podiam-se contar uns 30 funcionários.   

        Em tal ambiente verifiquei que a edição diária do clipping não fazia sentido. Não havia feedback  algum e logo passei a questionar se a publicação era realmente lida pelo pessoal. Passei a publicá-lo mais encorpado semanalmente até que o próximo presidente, num raro momento de lucidez e economia de recursos, interrompeu de vez a publicação do “clipping”. Com isso fui verificando que o Centro de Documentação estava ali mais “para inglês ver”; que numa instituição internacional estruturada nos moldes de uma ONU ou Parlamento Europeu, não podia faltar uma biblioteca. Era uma sala (cartão) de visita, onde de vez em quando aparecia alguém trazendo a tiracolo um parlamentar latino-americano para mostrar a biblioteca. Na verdade era um setor que servia apenas para dar mais credibilidade à instituição.

        No entanto, eu precisava trabalhar, mostrar serviço, fazer de conta que tínhamos um Centro de Documentação ativo. Logo me empenhei em organizar a documentação oficial da casa, e fui recolhendo todas as atas, tratados, propostas, projetos e demais documentos de assembleias espalhados pelas gavetas e armários das diversas secretarias. Posteriormente, com a ajuda do Setor de Publicações,  eu e Míriam fizemos um livrinho contendo tudo o que foi encontrado, relacionado por data, evento, título e índice remissivo. Ficou mais fácil encontrar qualquer documento produzido nos 40 anos de existência da instituição, não obstante haver pouca procura.   

        Em 1997,  completei 30 anos de contribuição ao INSS e, diante da ameaça do Governo de acabar com a aposentadoria proporcional, requeri minha aposentadoria aos 47 anos. Não sei dizer se isto foi uma das causas, mas pouco depois Amadeu me chamou para uma conversa delicada. Explicou que a verba do Parlatino estava ficando curta e propôs que eu me demitisse, já que não poderia ser demitido devido à minha condição de dirigente sindical. Para isso, pagaria todos os meus direitos trabalhistas e mais uma bonificação de R$ 15 mil reais. Eu pedi para responder no outro dia, precisaria conversar com a mulher, diante de uma decisão importante como essa. Afinal, contava com 47 anos, já velho para o mercado de trabalho.

       No outro dia, levei uma contraproposta para Amadeu: “Se a verba está curta para me pagar o salário, porque não me pagam meio salário por meio dia de trabalho?”  Ele topou na hora. “Tem mais uma coisinha: quero também a metade daqueles R$ 15 mil reais de bonificação”. Assim, foi feito um adendo ao contrato de trabalho e passei a trabalhar das 14hs às 18hs. Depois de tantos anos de trabalho me encontrava no melhor dos mundos: trabalhando perto de casa e apenas no período da tarde.

        Mesmo trabalhando meio período, o volume de trabalho ainda era pouco. De modo que eu tinha que procurar o que fazer, inventar trabalho para não cair no tédio. O Dr. Gasparian havia criado um periódico chamado “Cadernos do Parlatino”, para abordar alguns temas referentes à integração latino-americana. Com os contatos que tive com Darcy Ribeiro e diversos textos seus guardados, propus a edição de um “Caderno” intitulado “Darcy Ribeiro: América Latina Nação”. Miriam, do setor de Publicações, se animou com o projeto e fez a tradução para o português de um texto inédito do Darcy, gravado em long-play na Venezuela, que eu consegui junto a FUNDAR-Fundação Darcy Ribeiro. Dos "cadernos" editados, este foi o único de leitura agradável e interessante, pois todos os outros eram técnicos ou burocráticos.

       Juntamos mais alguns textos extraídos de livros, revistas e jornais e editamos a publicação. Pedi ao Dr. Gasparian (amigo íntimo de Darcy) um texto de apresentação e redigi um texto introdutório. Sorrateiramente, Amadeu perguntou à Miriam se minha introdução estava boa, bem escrita. Tendo confirmado, me chamou em sua sala para um pedido e realçou bem a condição de “pedido”. – “Sabe Brito, eu, na qualidade de diretor do Parlatino, gostaria de ver meu nome junto ao seu na introdução. Você sabe que é comum aparecer o nome do diretor neste tipo de publicação, não é mesmo?  Mas se você não quiser, não vou colocar objeção alguma, pois o texto é seu”. Eu percebi que se não aceitasse, haveria todo tipo de objeção e resolvi da melhor maneira. “Ora, Amadeu seu nome só vem engrandecer a publicação e mais ainda: aparecerá primeiro que o meu, obedecendo a ordem alfabética”. E assim foi publicado o nº 13 dos “Cadernos do Parlatino”, em janeiro de 1998.  

       Nessa época eu dizia que este era o meu melhor e meu pior emprego até então. Melhor devido ao salário, perto de casa, longe do caótico trânsito de São Paulo, e pelo fato de haver pouquíssimo serviço. Passava o tempo lendo jornal, conversando com os colegas e fazendo alguns trabalhos, particularmente  elaborando o site “Tiro de Letra”.  Pior devido à paralisia. Não havia crescimento profissional algum e eu estava “desaprendendo” a trabalhar. Para completar, o Dr. Gasparian, que de vez em quando me pedia algum serviço, deixou a instituição entregue nas mãos dos parlamentares latino-americanos. Mas sempre que havia oportunidade, eu inventava um trabalho para disfarçar a vagabundagem, passar o tempo e justificar o salário.

       Por exemplo, em setembro de 2001, com o ataque às torres gêmeas, nos EUA, preparei um dossiê denominado “Clipping Hebdomadário Litero-Histórico”, incluindo os textos de vinte grandes escritores nacionais e internacionais e intitulei “Além das palavras”. A coletânea trouxe os melhores textos escritos no “calor da hora”, pelos expoentes da literatura. No texto de abertura, Affonso Romano de Sant’Anna dizia que “as palavras mais sensatas nessa guerra de aviões, imagens e discursos, têm sido de alguns escritores. Deveriam ter sido de políticos e estrategistas, que passaram a vida se preparando para essas eventualidades”. Esta afirmação me animou a fazer a coletânea, que, como era de se esperar, fez sucesso mais fora do que dentro do Parlatino.

      Todo final de ano, com a realização da Assembleia Geral, o Parlatino adquiria um sopro de vida. Recebia todos os parlamentares e durante uma semana dava uma aparência de que realmente estávamos fazendo alguma coisa em diversas reuniões das comissões e reuniões plenárias. Os parlamentares visitavam o Centro de Documentação, mas não tinham muito o que ver, pois a verba para a compra de livros era pouca. Para incrementar o acervo, entrei em contato com o Fondo de Cultura Económica, a editora estatal do México, que tem uma filial em São Paulo, e consegui mais de 300 exemplares de livros em demonstração. Tal aporte veio enriquecer bastante o acervo e dava a aparência real de uma boa biblioteca.

        Em dezembro de 2004, o presidente era, finalmente, um parlamentar brasileiro, Ney Lopes, Deputado Federal pelo Rio Grande do Norte, que tentou imprimir uma nova dinâmica à instituição. Conseguiu renovar todos os computadores da casa com uma doação do governo chinês; realizou um concurso de monografias sobre Luiz Câmara Cascudo; e criou a "Ordem do Mérito Latino-Americano", com a outorga de um diploma e uma medalha. Na festinha de fim ano, todos os funcionários passaram a integrar a tal "Ordem" em reconhecimento pelos trabalhos prestados em prol da integração latino-americana.

       Todos nós estávamos cientes de que tais inciativas não tinham importância alguma e se prestavam apenas a dar alguma existência ao Parlatino. Creio que o mais ciente deles era o próprio presidente. Certa vez ele nos disse que logo após ser eleito, passou a alardear entre seus colegas nos corredores da Câmara dos Deputados, em Brasília, que agora era Presidente do Parlatino. Os colegas davam os parabéns e, em seguida, perguntavam: mas o que é isso mesmo? Onde fica?

       E assim a vida continuou naquela paralisia até janeiro de 2007, quando uma pequena nota saiu na revista Veja, cujo titulo resumia seu conteúdo: “Adiós Parlatino”. A nota dizia que o Governo de São Paulo iria cortar a verba de manutenção e pedir o prédio. Foi desmoralizante o fato de ficarmos sabendo disso através da imprensa. Três dias após a publicação da nota, o Governador Serra convocou uma reunião com o corpo dirigente do Parlatino e deu o xeque-mate causando o “Deus-nos-acuda” relatado acima. A instituição foi alojada no Panamá, para onde levou alguns dos funcionários latino-americanos, incluindo uma brasileira. Todo o restante foi para o “olho da rua” amargar as agruras do desemprego. Nunca fui simpatizante da administração do Serra. Porém, mesmo sendo prejudicado pelo seu ato, não podia deixar de reconhecer seu acerto neste caso. O Parlatino teve 15 anos para mostrar serviço, e não mostrou.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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