Volta para a capa
Memória

 

Encontros com Darcy Ribeiro

João Antônio

        Havia policial à paisana, grisalho e blusão fora da camisa na porta de entrada do edificio e com ele precisei deixar tudo, embora fosse avisado, tinha hora marcada, 6 da tarde, com o professor. O homem me pegou o nome, ar, endereço, barba por fazer, a que vinha e tempo que ia demorar. Percebo. O professor está sendo sondado à risca, todos os movimentos. Então, abri o braço, como se já fosse desguiar:

     - Meu senhor, se isso vai criar qualquer tipo de problema não visito ninguém. Não estou aqui porque quero, estou à trabalho. Não quero galho, até já estou querendo ir embora.

      O grisalho do blusão claro fora da camisa, provavelmente julgou estar diante de um maluco. Acho, nessas ocasiões, melhor botar a boca no mundo ou fechar de vez. Assim passo por pirado e me tiram o olho de cima. O recurso, reconheço, não é tiro e queda. Já vi policiais batendo em doente mental. E quando a policia mata alguém a cidade não põe luto.

     O policial garatujou, com esforço, errando duas vezes os meus dados num caderno de anotações. Não era um homem habituado a escrever e devia tomar o registro de todas as visitas ao professor.

     Peguei o elevador, pé atrás.

     O professor havia envelhecido pouco. Apesar de nunca tê-lo visto, era o mesmo homem das fotografias, 11 anos antes, ministro, antes de o cassarem e de ir para o exílio. Lépido, miúdo, baixinho, rosto escanhoado, olhos firmes, vivos, alegria das pessoas dinâmicas, coisas que não tenho.

     Com sotaque nosso, blusão fora da calça, me atendeu de pés no chão no seu apartamento do Posto Seis, em Copacabana. Aquele, o homem. Eu lhe apertei a mão, duas vezes: a segunda, ele notou, para lhe olhar nos olhos.

     Tímido, pelo menos a princípio chamando de senhor um homem de pés no chão do apartamento amplo, ele percebendo que eu dissimulava mal a admiração. Leve, rápido, não fumando, foi pedir café à empregada, ofereceu suco, preferimos café. Pedi para fumar. Grossura - claro que aquilo o incomodava.

     Aí, lhe peguei num lance, o tamanho e a personalidade. Concordou discordando, como se dissesse: "Ô, rapaz, eu já me esqueci de fumar e você vem me lembrar - tenha jeito, dê-se ao respeito". Falou como um mais velho.

     - Fuma. Você pode.

     Achou graça e começou a falar, engraçada, pitorescamente. Curioso alguém se interessar em como ele havia vencido o câncer. Despejou tudo de vez, quase tudo. Ou: o trânsito ridículo de médicos estrangeiros que lhe escondiam a doença, dizendo tuberculose. Rídículos, principalmente em Paris, onde ele exigia ver e ouvir os resultados de todos os exames. As pessoas evitavam o nome da doença como se evitaseem a morte. Era um câncer mortal. Havia percebido pela primeira vez que ele também era mortal e, como amasse a vida, sentiu que não teria mais nada para colocar no lugar. Afinal, câncer era coisa que poderia a um primo seu, a um parente  ou contraparente distante, ao vizinho do prédio, não a ele. Nunca havia penasado, sentido, amargado, que era mortal.

     Confessa que deu-lhe medo. E pressa. Urgente fazer as coisas, terminar um livro. Resolveu jogar franco com o médico parisiense:

     - O senhor pode me dar três meses de vida lúcido?

     Nada. Tinha de operar.

     - O senhor tem uma bomba no peito,

     A bomba iria explodir a qualquer momento, tomaria conta do corpo todo. Não havia ilusões, no entanto. Mesmo operando, um fato líquido e certo, 95% das pessoas operadas de câncer pulmonar não escapam. Não operasse, não ficaria nem entre os ralos 5% restantes. Até lhe dizerem que era câncer, passou por vários dribles dos médicos franceses. Um deles dissimulou, com jeito, fazendo o exame clássico de tuberculose pulmonar e o professor teve de pronunciar, repetidamente, 33, em francês. Aí o médico cometeu uma ingenuidade de bom tom, verificando-lhe os olhos: "O senhor está pálido". O espírito brasileiro do professor universitário cortou rente como uma coisa que causa vexame ao espírito francês: "Não estou pálido. Na verdade sou um mulato". Paris é o grande centro dessa medicina na Europa e já tinham tudo para, em três dias, operá-lo. Mas preferiu operar no Brasil. Os franceses torceram o nariz, escandalizados.

     Todos que o deixaram entrar aqui, contavam com a sua morte infalivel, inadiável, cancerígena. Por isso, exilado político de 64, foi deixado vir. O apartamento de sua propriedade, na rua Souza Lima, estava ocupado, alugado. Então o permitiram num hotelzinho do Leme, sob a vista permanente. Ridiculo, um homem tão pequeno e grande, guardado pelos profissionais da Polícia, pequenos, bronco e patoludos. Miudinho não se sabe tenha aprendido karatê, aikidô, kung-fu ou judô lá no estrangeiro por onde andou, lecionou, trabalhou, sobreviveu estes anos todos. Ele falando, procura tirar a prisão domiciliar de letra, cariocamente. Humorado, recebe e responde à estupidez que o vigia. Oficialmente comunicam-lhe, está protegido contra atos terroristas. Olhos miúdos, cara limpa, aconselha:

     - Ótimo. Mas me protejam só a cinco metros de distância, pelo menos.

     Câncer maldito mesmo. Às vezes, as pessoas que o cercavam, amigos, um irmão, parentes, amigas, botavam uma cara de pavor. Parecia que tinham a doença e não ele, a um passo da operação delicadíssima. 95% morriam.

     A diferença entre ele e os outros, uma só, esta: os outros pensaram que 95% morriam; ele procurou encarar o outro lado - 5% se salvam. E tratou de se meter entre os 5%. Provavelmente todos, além dos homens que o vigiam, contavam com a sua morte. Os amigos, os admiradores, o geral das criaturas.

     Ele está enrascado na poltrona e, neste momento, sou mais entrevistado do que ele. Um brilho nos olhos miúdos, notando os ritus da minha cara e imediatamente jogando na linguagem um palavrão leve, uma descida para a gíria. Tem o domínio da conversa, detém o poder da mudança de tom e rumo dos assuntos. Inteligente, nessa manobra assume uma liderança natural, o núcleo da conversa em suas mãos. Sempre.

     Revelou, sem modéstia. Não acreditava em suas habilidades literárias a ponto de produzir algo útil ou de exemplaridade sobre o capítulo do câncer, provavelmente o mais cavernoso (uma caverna no peito de sua vida).

     - Mas se o senhor escrevesse como fala...

     "As pessoas não escrevem como falam. Comportam-se, disciplinam-se, empostam-se. Há imposturas, a naturalidade vai embora, ninguém deixa passar a chance de parecer inteligente, espirituoso, um homem que, de certo modo, está acima dos outros".

     - Por que você está me chamando de senhor?

     Falando, é colorido, vivo, direto, humorado. Tem o poder da condução, o que já foi dito. É líder, está em tudo e, se não mostrou esta qualidade ao longo dos anos, terá sido por outro motivo que não a vocação.

     Veio uma amiga depois da operação, lhe disse que ele nem supunha quantas pessoas o queriam bem e quantas pessoas, das mais diversas faixas o admiravam. Naquela tarde, por exemplo, só se falava dele lá no cabeleireiro.

     - De mim ou do câncer?

     Está aí. Mas não havia ironia, hostilização, amargura na observação. Era o que era. Por mais que ele fosse assunto, o câncer seria repercussão nacional maior que ele.

     Haviam mandado distribuir nota oficial, câncer. Indisfarçavel a crueldade seca da nota. Neste mundo todo, a doença quer dizer morte. Certamente contavam fazer o seu enterro. Depois iriam recolher uma boa imagem.

     Um policial o acompanha, aonde vá. Vai à praia, o protetor segue. Vai a um chopinho com amigos, no calçadão de Copacabana, ali pelos lados do Posto Seis, atrás vai o policial. Atravessa o calçadão, ganha as areias, senta-se. O protetor fareja. Procura as águas, o protetor se levanta, avança na vigia. Lá no hotelzinho do Leme, uma vez, um desses policiais que o guardam dia e noite, o perde. Quando volta ao hotel, o policia está verde:

     - Professor, eu pensei que tivesse perdido o senhor.

     - Sim? Mas eu estou vivo, olhe aqui, não está vendo!

     O policial cheio de pavor. Confessou que se o professor sumisse, morresse ou lhe houvesse acontecido algo, certamente lhe iriam botar num pau de arara até que dissesse tudo o que sabia e também o que não sabia.

     O professor, sério, rosto crispado pela primeira vez em mais de uma hora de conversa. Que história é essa? Os policiais também têm medo de serem toriturados?

     Sérios, os dois. De vez em quando olhávamos maquinalmente para a porta de entrada do apartamento. Deviamos falar naturalmente aquelas coisas ou baixar o tom de voz?

     Faz menos de 10 dias, um advogado na rua Uruguaiana, indo ao seu escritório, foi sequestrado por homens que se diziam do DOPS. Levado ao Alto da Boa Vista, encapuçado, interrogado, torturado por policiais encapuçados. Não tinha nada a declarar. Os torturadores preferem, segundo o advogado, esse tipo de homem - o que não tem nada a delarar. Foi batido, surrado, submetido a choques, metido em cela que mal cabia um homem. Ameaçavam o homem que não tinha nada a contar; trariam sua mulher e ele iria ver as coisas. Abobalhado, dizendo nada a declarar, concordou. Trouxeram sua mulher, fizessem o que entendessem. Havia outros presos. Sofreu três dias. Aturdido ou inconscientemente, o fizeram assinar uma porção de papéis de que não se lembra. A bestialidade não pode ser contada diante de mulheres ou crianças. Os encapuçados o soltaram depois, com esta frase:

     - Passe bem, doutor, precisando de alguma coisa é só nos procurar

      Depois de três dias debaixo da mesma pergunta:

      - Qual é o seu codinome?

      Saiu. Procurou a Ordem dos Advogados do Brasil, catou os jornais. Um único "O Estado de São Paulo", publicou nota na edição de 8/3/1975. Mas há outro advogado sumido, provavelmente sequestrado nas mesmas condições.

     O professor universitário me ouve, olhos baixos. Olhamos, quando em quando, para a porta de entrada do apartamento. Lá fora, na França ou Inglaterra, dizem que quando se vê um policial, imediatamente se tem a sensação de segurança e se fica mais à vontade. Aqui, ontem, passando diante da PMGB, da rua Toneleiros, procurei a outra calçada da rua, evitando olhar os fardados e andei depressa. Não estaremos ficanco frios, nós, um povo sentimentalóide, outrora vivendo num país cordial, onde havia, segundo um poeta, escola risonha e franca?

     O professor diversifica assuntos, passamos aos desenhos de Poty, humor, jornalismo, indianismo, vida universitária, futebol, polícia, sexo, violência, literatura, futebol de novo. Atiçadamente criativo, imaginoso, enrascado na poltrona, descalço, falando simples e bem. Um homem que libera o espírito do interlocutor, embora o envolva com liderança. Literalmente, como diz, é um otimista.

     Idéias loucas tem e gosta, ainda mais dos efeitos. Tem carioquice ao contá-las, saboreia os efeitos. Narrador hábil, extrapola.

     Nunca pensava que que pudesse e teve de deixar o cigarro. É o melhor dos vícios, nem é um vício. Chamar o cigarro de vício menor é outra impropriedade. Quando vivermos numa sociedade realmente civilizada, teremos cigarro de tudo: de proteínas, vitaminas, de gustaçãoes variadas, leves e pesadas. Haverá uma geração de homens e mulheres incrivelmente elegantes, nenhuma barriga, ombros largos, nenhuma celulite. Pois cigarros alimentícios motivarão a chamada digestão sem excrementos. Veja, a princesinha da Inglaterra comendo chocolate. Todos sabem que ela comerá e depois fará um cocô fedido na privada. Mas um vagabundo da Galeria Alaska fumará um cigarro e não produzirá nenhum dejeto. Tomamos um café, mas café é só boca de pito, para acender a vontade do cigarro. O bom da comida fina e regalada é o cigarro que vem depois. Como é bom o cigarro, depois de duas horas no cinema em que não se pode fumar. O cigarro, como é bom. Amar também é bom, o melhor dos esportes, o que exercita e mexe com tudo, músculos, cabeça, tronco e membros. Bogagem essa história de se praticar judô, karatê, yoga. O exercício sexual é mais completo. Voltando ao cigarro, ele não é um vício, é um companheiro, uma segurança psicológica. O professor fumava três maços por dia, hoje lamenta que o cheiro do cigarro, lhe chegando, lhe faça mal. Até o beijo na boca das mulheres, naquele tempo, era melhor. Não lhes sentia o gosto do cigarro.

     Amar é bom para saúde. Mas o bem-bom é aquele espaço entre uma vez e outra, longamente, na hora neutra em que não se sabe se continua ou não e, então fuma-se um cigarro. Ah, entre uma e outra, o cigarro. O mal é que contém nicotina. Nas civilizações futuras, o homem pensará em cigarros de proteínas, vitaminas e sais minerais. Serão todos fortes e limpos, espadudos sem barriga, maravilhosos e enxutos. O cigarro não mais um vício e, sim, um companheiro de utilidades.

     Pensavam que ele morreria. De repente, seu nome pula nos jornais e revistas, está escrevendo coisas. Estão longe de supor tudo sobre o homem e seu despojamento. Provavelmente alguém tenha medo de suas verdades. E não dele, criatura miúda, naturalmente bem-humorado, ar fundamente brasileiro, cara limpa.

     Olha-me. Passei duas horas em seu apartamento e não ouvi uma lamentação do homem cassado, perseguido, sofrido, um pulmão fora do peito, o câncer jogado fora, abriram-lhe todo o peito na operação.

     Mais alegre, descontraído e saudável que eu, o professor disse:

     - A gente não pode dar trela. Senão os policiais sentam à mesa com a gente e tomam conta.

______________

Extraído do jornal "Ex-" (São Paulo), nº 15, outubro de 1975, sob o título: "Olá, Professor, Há quanto tempo!", seguido da nota: "Esta reportagem de João Antônio, escrita em março passado, é a nossa candidata ao Prêmio Esso de Jornalismo de 1975".