Volta para a capa
Memória

 

Encontros com Darcy Ribeiro

Vera Brant

       Conheci o Darcy Ribeiro, ainda menina, em Belo Horizonte. Ele e seu irmão, Mário, eram colegas dos meus três irmãos mais velhos, Mário, Hélio e Celso, na pensão da Dona Marucas. A minha mãe havia morrido e deixado nove filhos, o mais velho com vinte anos e a mais nova com um ano.

       Quando nos mudamos para o bairro da Floresta, fiquei mais distante da pensão e ia somente aos domingos visitar os meus irmãos. Aproveitava para ficar batendo papo com o Darcy que me dava livros, escutava as minhas queixas e tentava me consolar, pois a vida com a minha madrasta era horrível.

       Quando eu, na ida para o colégio,  passava de bonde especial em frente à sua casa e ele estava na varanda, dava-lhe adeus e a freira me dava um chute. Como eu era a mais levada, sentava-me bem na frente da freira.

       A situação lá em casa foi ficando insustentável e eu fui para Diamantina, morar com os meus avós maternos. Escrevia aos meus irmãos e ao Darcy, reclamando da vida. Ele me consolava e me aconselhava a ficar calma, a estudar bastante, ler bastante, para preparar o meu futuro. E me mandava  mais livros.

       Quando voltei para Belo Horizonte, ainda nos encontramos, algumas vezes. Mais tarde  ele foi  para São Paulo e, de lá, para o meio dos índios.

       Quando fui para o Rio, trabalhar no Ministério da Educação, nos reencontramos. Ele trabalhava no INEP, com o Anísio Teixeira. Já nessa época, 1958, sonhava com a Universidade de Brasília. Atormentava o Victor Nunes e o Cyro dos Anjos, chefe e sub-chefe de gabinete do Presidente Juscelino, para conseguir a autorização para preparar o projeto da UnB. O Juscelino me contou, mais tarde, que recebia recado, diariamente, dele, pedindo audiência. E que a Universidade de Brasília só existe graças à persistência do Darcy.

       Encarregado, pelo Juscelino, do planejamento da UnB, Darcy organizou uma equipe de cientistas da melhor qualidade, pesquisadores, pensadores, a maioria deles integrantes dos quadros da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Contribuíram para o planejamento e concretização da UnB, em primeiro e principal lugar, Anísio Teixeira e Oscar Niemeyer. Além deles: Almir de Castro, Alcides da Rocha Miranda, Almeida Junior, Antonio Cordeiro, Carolina Bori, Crodowaldo Pavan, Eduardo Galvão, Elon Lages Lima, Francisco Salzano, Gleb Wataghin, Guido Beck, Haiti Moussache, Herman Lent, Jayme Tiomno, Jacques Danon, José Leite Lopes – cuja colaboração foi importantíssima-  José Goldenberg, Júlio Pudles, Leopoldo Nachbin, Maria Yedda Leite Linhares, Mário Pedrosa, Mário Schemberg, Maurício da Rocha e Silva, Newton Freire Maia, Orlando Valverde, Oscar Sala, Paulo Sawaya, Pompeu de Soza, Ricardo Ferreira, Roberto Salmeron – que foi dos que mais se esforçaram nas tarefas da implantação –, Otto Gottlieb, Walter Oswaldo Cruz, Walter Mors, Warwick Kerre.

       A UnB foi  resultado, além da persistência do Darcy, da sua capacidade de reunir gente da mais alta qualidade, disposta a colaborar com o melhoramento do ensino no Brasil. Todos extremamente competentes e idealistas. Tive o privilégio de conviver com muitos deles, na UnB.

        Em 1960, viemos para Brasília.

        Darcy, que estava casado com a Berta, só pensava na Universidade. Eu morava com o Celso, meu irmão, que era deputado federal. Se havia algum político jantando lá em casa, e sempre havia mais de três, o Darcy passava horas tentando convencê-los da necessidade de votar favoravelmente a lei que criaria a Universidade de Brasília, cujo projeto já se encontrava na Câmara. Que seria uma Universidade diferente, a melhor de todas, por tais e tais razões. E falava, falava, sem parar.

       O Oscar Niemeyer, certo dia, disse: “O Darcy só pode estar doente. Só fala em universidade. Nem assunto de mulher lhe interessa mais”.

       Tanto insistiu e insistiu que acabou conseguindo. Aproveitou a confusão que se instalou na Câmara dos Deputados com a renúncia do Jânio Quadros e conseguiu colocar o projeto de lei de criação da Universidade, que foi aprovado. Nessa época, eu era chefe de uma seção chamada Serviço de Orientação e Assistência – (SOA), e o meu diretor era o Lauro de Oliveira Lima. Eu coordenava a alfabetização de adultos – método Paulo Freire – no Brasil inteiro, através das Inspetorias Seccionais. Mas ajudei o Darcy, no que pude, no projeto e nos primeiros passos para a criação da UnB.

       Quando o Oscar iniciou o projeto da construção, foi uma maravilha. O Darcy dava palpite, o tempo todo. Dava a impressão de que ele antevia os estudantes subindo e descendo aquelas rampas dos primeiros prédios, que seriam modestos. Depois, dizia ele, vamos construir o Minhocão, uma extensão imensa de prédio, com as salas de aula, sala disso, sala daquilo. O Oscar ficava olhando, enternecido, orgulhoso de poder ajudar o amigo naquele grande sonho que iria beneficiar os estudantes do Brasil, iria preparar a juventude para um futuro brilhante.

        Foi emocionante acompanhar o nascimento da UnB.

        No início, pequenos prédios, um para a Reitoria, outros para os Departamentos de Letras, Biblioteca, Departamento de Ciências Humanas, de Arquitetura, Física, Matemática, e mais uns três.

       Tudo era feito na maior rapidez. Em poucas semanas, mais prédios eram levantados e ocupados. Era poeira que não acabava mais. Quando chovia, era lama pura. Todos enlameados e achando tudo ótimo, uma maravilha.

       O Darcy dizia, com todo o orgulho, quando saía do Ministério: “Se me procurarem, diga que eu estou no Campus”. Mas eu achava que ele estava era no Matus.

       A Universidade de Brasília. O sonho de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro se concretizando.

       No início, aquele buraco imenso, onde seria o Minhocão. A Reitoria, muito simples, em frente ao auditório “Dois Candangos” – assim chamado em homenagem aos dois operários que morreram na obra, durante a construção.

       O Darcy, que era Ministro da Educação, aceitou ser Chefe da Casa Civil do Governo João Goulart e o Anísio assumiu a Reitoria da Unb. O Réveillon de 1963/64, portanto, o último antes do golpe militar, foi no meu apartamento. Lembro-me do Anísio Teixeira sendo o primeiro a chegar, todo elegante, de colete e gravata. Ficamos conversando, enquanto esperávamos a turma. Tive, sempre, além de grande admiração, uma enorme ternura pelo Anísio. Que espetacular figura humana! Era a sabedoria, a proteção, o caminho. Era interessante vê-lo discutindo com o Darcy.

       Ele, Anísio, aquela figura tranqüila, falando devagar e baixo as coisas mais lúcidas e sensatas possíveis. O Darcy, pensando mais rápido que falava, embolando as palavras e parecendo uma metralhadora.

       Ambos, muito competentes. Mas, cada um com uma formação diferente, um enfoque desigual. Como se enxergassem o mundo através de janelas distintas. Grandes e altíssimas janelas.

       Quem esteve, também, nessa travessia do ano, e eu amava muito, foi o Noel Nutels. Que figura fantástica! Quanta humanidade num homem só. Que belo trabalho fez esse homem, médico, antropólogo, em favor dos índios! E que amigo incondicional e terno de seus amigos! Victor Nunes Leal, jurista de altíssima qualidade, inteligência aguda, cultura excepcional, amigo singular.

       Foi uma noite de muita alegria e cheia de esperança. Esperança e desejo de que o Ano que se iniciava trouxesse a cada um de nós, e às nossas famílias, muita sorte. E, ao nosso país, um brilhante futuro e muita paz.

       Não aconteceu nem uma coisa, nem outra. Vieram vinte seguidos anos de muito sofrimento e de escuras nuvens. Veio o golpe militar. E vieram três sobrinhos, de um, três e quatro anos, para a minha companhia. São filhos de um dos meus irmãos, que havia  se desquitado.

       A Rosa Maria, que foi secretária do Darcy e o ajudou a criar a Universidade, ligou-me para dizer que o Elon Lima, que se encontrava nos Estados Unidos dando um curso de matemática, havia sido convidado pelo reitor Zeferino Vaz para ser coordenador do Instituto de Matemática. O Elon havia respondido vinculando a sua vinda à condição de eu, Vera, ser a secretária administrativa do Instituto. Não entendi nada. Primeiro, eu não conhecia o Elon, nem ele me conhecia. Segundo, era evidente que não iriam permitir que eu fosse para a Universidade, eu estava respondendo inquérito.

       Para a minha total surpresa, dias mais tarde fui chamada e convidada para o cargo. Aceitei, é claro. Muito tempo depois fiquei sabendo que havia sido um pedido do Darcy ao Elon, para que eu cuidasse da UnB e dos matemáticos.

       Crise na Universidade, com a demissão de mais de duzentos professores. Eu escrevo um longa carta ao Darcy, contando, relatando tudo. E ele  me responde:

 

       “Verusca minha

 

       Sua carta chegou pelo dia 20, quando alcançávamos o máximo de preocupação com a crise da UnB. Foi um alento, com a primeira palavra pessoal daí depois de muitos meses e porque quem escrevia era você, com esta expressividade tão sua. Mais do que as notícias de jornal, sua carta me deu a medida do sentimento de que estão todos possuídos, da unidade de ideais, da dignidade de postura encarnada em milhares de estudantes, professores e funcionários que foram chamados a personificar a cultura e revelaram estar à altura do mandato.

       Depois li a proclamação – apelo dos estudantes – você imaginará com que sentimento. Meu primeiro impulso foi entregar-me onde quisessem, em troca da liberdade assegurada aos professores e estudantes de reorganizarem, livremente, a direção da UnB. Era uma ilusão, mas nela embebi durante dias minha frustração de nada poder fazer, quando aí todos davam tudo na luta. Afinal compenetrei-me de que o combate é mais duro ainda do que supúnhamos, de que exige energia ainda maior e que minha parte nele é, agora, prosseguir no que estou fazendo

       Mas dói, querida, ver de longe, inerme, atacarem como cães açulados a minha casa, a minha família, meus irmãos, meus filhos – únicos que tenho – sem nada poder fazer.

        Por cima de tudo isto vem, agora, o sobregolpe que torna a luta ainda mais difícil, embora alargue extraordinariamente o círculo dos que são chamados a combater a boçalidade. Hoje, a luta na UnB é a luta do Brasil pelo controle do seu próprio destino. Na verdade, sempre foi assim. Nós é que não nos apercebíamos de quanto uma bandeira plantada no futuro para obrigá-lo a antecipar-se a si mesmo, como a UnB, é um ato de rebeldia destinado a chamar sobre si próprio toda a fúria do passado que se encarniça no esforço para perpetuar-se.

       Só consola de tudo isto a satisfação inexcedível de ver como os últimos e os primeiros se juntaram todos, numa unidade só, encarnado os ideais da UnB com um valor e dignidade tal que são, agora, o nosso orgulho. E, sobretudo, a lucidez que, sobrepondo-se à emoção, nos mostra que, como o futuro, somos inexoráveis. Eles nos podem atrasar dias e meses, prolongando a noite, a miséria e a opressão, mas fatalmente, amanhecerá. E, então, todos estaremos juntos para levantar os muros derrubados, refazer as bibliotecas destruídas, e levar à frente, com maior arrojo, o projeto que será muito mais ambicioso porque eles terão feito a UnB ainda mais candentemente necessária.

       Querida. Escreva sempre que puder. Suas cartas são uma luz nesta noite. E, por favor, cuide-se bem e se tranqüilize, porque nossa munição principal, hoje, é a lucidez, o ardor e a paciência.

                                                                                                                                                                                                                    Seu, Darcy

 

       O Darcy se exilou, inicialmente, no Uruguai. Logo que chegou, foi contratado como professor de Antropologia da Faculdade de Humanidades e Ciências da Universidade  da República Oriental do Uruguai. De lá, foi para o Chile. Depois, foi para o Peru.

       Quando houve aquela invasão na Universidade, eu fui demitida. Recebia cartas e mais cartas do Darcy, pedindo-me que fosse vê-lo. Fui. Passei dez dias em Lima. Ele queria que eu ficasse, no mínimo, um mês, mas eu não podia, os problemas me esperavam aqui. Visitamos museus, igrejas, tudo lindíssimo. Mas, o que ele gostava mesmo era sentar no sofá e ouvir as histórias todas do que aconteceu no Brasil e na Universidade, durante a sua ausência. Quando a Berta contou a ele que eu iria, no dia seguinte, a Machu-Picchu, ele me olhou, muito triste, e pediu:

       – Não vá  não, filha. Fique comigo aqui. Machu Picchu é igualzinho a Ouro Preto.

       Coitado. Queria tanto que eu ficasse que chegou a este absurdo de comparação.

       Final de 1974, recebo dele um cartão estranho:

       “Verusca: O destino bateu à minha porta. Veio dizer que é mais tarde do que eu pensava. Não é um cretino? Por razões tantas, Verusca, está chegando a hora da verdade. O tempo corre, há que aproveitar, agora, o que a vida deve dar. 12/12/74”.

       Foi quando fiquei sabendo que ele estava com câncer no pulmão. Estava fazendo uma palestra em Portugal e teve uma hemoptise. Foi para Paris fazer os exames e constataram o câncer. Queria porque queria voltar ao Brasil, onde seria operado.

       Começou a peleja. Os militares não queriam que ele viesse. Pedi ao Abgar Renault que me ajudasse, ele era amigo do Golbery.

       Dois ou três dias depois, desembarcava ele. No camburão da polícia que o conduzia ao hospital, pediu para dar uma voltinha por Copacabana a fim de ver o calçadão.

      Depois, no hospital, ele ficou fingindo tranqüilidade, disfarçando. Num determinado momento, chamou-me num canto e disse:

       – Filha, você vai prometer uma coisa. Pretendo continuar ajudando o Brasil, na educação dos jovens. E estou precisando escrever mais uns livros. Quero viver mais vinte anos, no mínimo. Mas, se eu já estiver com metástase, você vai me contar, porque eu não sou homem de ficar pedindo à vida mais uns meses, dias emprestados,

       Disse-lhe:

       – Por que você não pede isso ao Oscar? O irmão dele, Paulo Niemeyer, é médico e ele terá mais acesso a essas informações do que eu.

       Ele olhou-me, sério, e encerrou o assunto:

       – Será você quem irá me contar, ponto final.

       Começou a tragédia. O cara do Dops (eram três que se revezavam, dia e noite) me controlava o tempo todo; ouvia as minhas conversas ao telefone, era uma marcação cerrada. No dia seguinte, o Darcy foi fazer novas radiografias, a pedido do Dr.Jessy Teixeira, médico que iria operá-lo. O cara do Dops foi atrás. E entrou na sala de Raio X. O Darcy ficou uma fera, aprontou a maior confusão.

       Véspera de Natal, a vizinhança a ouvir pelo rádio “Noite Feliz” e eu, ali, pensando o que, além da angústia da cirurgia, estaria sentindo um homem como o Darcy que, amando o seu país como poucos e ausente dele há tanto tempo, ouvia aquela música no seu idioma, exatamente numa noite daquelas.

       Rezei e pedi a Deus que lhe desse, no futuro, noites de Natal realmente felizes, para compensar aquela noite trágica.

       Lembrei-me de uma frase do grande historiador inglês, Arnold Toynbee, referindo-se ao Darcy: “Rico e pobre país é o Brasil. Rico, porque possui filhos como este. Pobre, porque os exila”.

       É incrível, mesmo. Um país que tem tudo para ser um dos maiores do mundo com esses intervalos ridículos. Esta marcha à ré histórica.

       Um dia, quando cheguei, a enfermeira me disse que ele estava muito deprimido. Que eu devia vir mais cedo porque, quando eu chegava, era como se o sol entrasse no quarto. Fiquei muito preocupada e resolvi contar-lhe casos engraçados para distraí-lo, fazê-lo rir.

       Ele estava sentado, pela primeira vez, numa poltrona, cercado de almofadas. Quando contei a história da mãe de uma amiga minha, que pesava cento e quarenta quilos e para quem a filha mandara fazer uma banheira especial e que, um dia, tomando banho, se distraiu, soltou a água e ficou presa por sucção, o Darcy teve um acesso de riso e se contraiu todo, de dor. A enfermeira pegou os travesseiros, atordoada, com medo de que os pontos rebentassem e eu, espavorida, pedi-lhe:

       – Darcy, lembre-se, depressa, de seu pai morto.

       Aí, então, foi que ele não agüentou mesmo. Saí em disparada pelo corredor, com um medo enorme dele piorar por minha causa, e só me tranqüilizei quando soube que ele estava dormindo.

       Um dia ele me disse:

       – Filha, você não acha uma coisa seríssima a gente tirar um pulmão?

       Pensei um pouco e me saí com esta:

       – Mas, pensando bem, Darcy, para que intelectual precisa de dois pulmões? Para ler e escrever? Um só dá, perfeitamente.

       Ele sorriu e não disse mais nada.

       A Berta ficava no saguão, recebendo as visitas e eu ficava no quarto, quase o tempo todo. A todo o instante a enfermeira precisava de ajuda, ou precisava sair para ir à copa, e ele não podia ficar só. À tarde eu ia para a casa da minha irmã e a Berta passava a noite com ele.

       Quando se recuperou, Darcy voltou para Lima, já com passaporte, para poder voltar ao Brasil e fazer novos exames.

       Em 1982, foi eleito, junto com Leonel Brizola, Vice-Governador do Estado do Rio. Quando, anos depois, o Darcy foi eleito senador, veio morar na minha casa. Tenho uma casa de hóspede na minha chácara. Fiz, exatamente, para hospedar os amigos. Já estiveram hospedados: Millôr Fernandes, Cora Rónai, Zanine, (o projeto é dele), Carlos Scliar, Roberto Salmeron, Alfredo Ceschiatti e muito mais gente, não me lembro de todos.

       Darcy e eu discutíamos tudo o que havia no mundo. Os bons escritores que existiam e os que estavam surgindo. E os péssimos também, alguns fazendo sucesso. As músicas, os cantores, as novelas. Os bons e maus políticos. Eu lia o jornal à tarde, para poder comentar com ele, à noite. Víamos o Jornal Nacional e... mais comentários. Criticávamos demais.

       Ele acreditava, sim, na existência de Deus. E achava linda a oração: “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade”.

       Falava dos seus projetos, muitos, com o maior entusiasmo. Falava dos índios, também. Adorava contar os casos daquela época em que conviveu com eles.

        Certa noite, na minha varanda, ele tirou uns papeis do bolso e começou a ler uns poemas para mim. Cada uma pior que o outro. Eu perguntei:

        – De quem são?

        Ele, todo feliz:

      - Meus, não são ótimos?

         Eu disse:

       – Não, são péssimos. Desista, Darcy, você não vai querer publicar estas loucuras. Tudo tem um limite na vida! A sua inteligência estava de férias, quando você fez estes poemas?

       – Eu estou pensando, sim, em publicá-los.

       – Você teria coragem de colocar o seu nome nesse livro?

       – Eu coloco Marcos Silveira.

       – Quem é?

       – Sou eu. Na minha certidão de batismo o meu nome todo é Marcos Darcy Silveira Ribeiro. Quando os meus pais me levaram para ser batizado o padre disse que Darcy não era um nome cristão, tinha que ser o nome de um santo.

       – E por quê você não usou o Marcos?

       – Porque lá em Montes Claros tinha muitos Marcos. Darcy, só eu.

       Em 1994 teve um problema de saúde muito grave. Esteve internado no Hospital Samaritano, no Rio, quase morto. Depois deu uma melhorada e fugiu do hospital.

       Outra conversa louca:

       – Filha, eu estou namorando uma moça que fala quatro idiomas.

       – Ela é do Itamaraty?

       – Não sei.

       – É simpática? Ela tem um papo interessante, inteligente?

       – Não.

       – Vamos ver se eu entendi: você está me dizendo que está namorando uma mulher sem assunto em quatro idiomas, é isto mesmo?

       Ele deu uma boa gargalhada e nunca mais falou na poliglota.

      Ficou aqui em casa durante uns sete meses, enquanto o Pompeu de Souza desocupava o apartamento do Senado, onde iria morar.

       Em junho de 1996, ligou-me, pela manhã, dizendo:

      – Filha, acordei às seis e meia da manhã e escrevi uma carta de amor a você.

      – Que bom. Então eu vou passar aí para pegar.

      – Não venha não, porque está manuscrita e você não vai entender nada. Quando a minha secretária chegar, mandarei digitar para você.

       Fique emocionada com a carta, lindíssima:

 

       Brasília, hoje de junho, de 1996

 

       “Vera: Naveguei a noite toda pelos mares bravios da memória. Quase morri. Ondas me arrastaram nas areias do fundo do mar. Ondas leves, espumosas, me alçaram às alturas do céu.

       Vivi, outra vez, vívido meus dissabores maiores: exílios, prisões, dores. Eles dariam para arrasar qualquer coração capaz de infelicidades. Mas revivi também, gozozo, meus prazeres e alegrias.

       Nesta navegação celeste e abissal, um traço grosso, horizontal, cortava todas as ondas: Era você. Verusca. Você menina. Você moça feita. Você mulher. Você madura. Você agora. Sempre a meu lado, mão na minha mão. Às vezes, raras vezes, boca na boca, não mais. Pobres de nós. Coitadinho de mim.

       A primeira imagem me devolve Verinha em uniforme de colégio, entre seus irmãos. Sobretudo no bonde cheio de meninas, aflita para me saudar com a mão, apesar dos pitos da freira. Ainda naqueles tempos está você, quase zarolha de ciúme me vendo cortejar sua irmã que nos veio, paulista, com seu chapelão de palha.

       As ondas me levaram vida a fora. Angustiado, querendo suicidar, afoito, escrevendo romances. Pretensioso, filosofando. Depois fui exportado para São Paulo. Fui ser baiano no meio de tantos gringos. Lá me fizeram todo. Sobretudo a alma, que deu de querer cientificidades antropológicas. Nesta quadra você me vem já moça, seiúda, discretamente bunduda, mas sem coragem de si mesma, me dá a mão fugidia para retirar logo, discreta.

       Viro antropólogo. Antes ainda de virar vejo você, invejoso, dando prum italiano. Assim ao menos me pareceu. Falava alto, fumava exibida e era linda e perigosa. Mandava no Ministro bestão, que só tinha olhos para sua cantora e ouvidos pros barrocos antigos. Você, entendidíssima dessas dissonâncias, mal me vê. Mas de esguelha, me deixava saber que eu existia, veemente, para você.

       As ondas nos rolaram para Brasília nascente. Você era funcionária letra O, candelária. Eu brigava contra Deus e o mundo para fazer a Universidade dos meus sonhos, você olhava e ajudava, sempre me vendo, me destacando entre os homens todos como o não-irmão, queridíssimo, sem saber porquê.

       Nasce a UnB de nossas mãos, querendo ser esplêndida, de um esplendor que só nós víamos. Nós dois e Rosa Maria. Logo se juntou gente em multidão pedindo carona em nosso sonho.

       Lembra-se de meu desespero pedindo socorro a você para reger meus loucos? Sobretudo os matemáticos que não são desse mundo. Precisavam, urgentemente, de um timoneiro que os fizesse baixar o chão do mundo. Veio você, pôs o barco sob as ondas navegando. Um dia teve que salvar um deles que decidira se suicidar porque a mulher o proibira de foder com uma arquiteta que ele experimentara e disse a ela que era muito melhor que ela. Sei que você se lembra.

       Eu, desembargado de minha nau reitora, fui ser Ministro da Educação, você comigo no Gabinete, ordenando em arroubos para arrancar leite daquela burocracia vadia. Deu mais leite do que sabia.

       Voltei com você à Universidade e logo fui chamado à minha aventura maior: passar o Brasil à limpo. Não vi você. Não via ninguém, só conduzia a barcaça enorme do destino nacional, atônito, lúcido de doer.

       Soube de você, Verinha minha, carregada de filhos que não pariu mas queria como a leoa às suas crias.  Fui-me embora para a ante-passárgada, meu primeiro exílio. Você ficou aqui namorando os exilados. Mais tarde foi me ver, me consolar de meus fracassos que eu repetiria outra vez e sempre na luta minha maior para que o Brasil, afinal dê certo.

       A dor que mais me doeu nos primeiros anos de exílio foi ver a nossa Universidade de Brasília ser desmontada pela ditadura. Foi saber dos duzentos e quarenta professores  que levei para lá, na diáspora mais dolorosa da história brasileira, terem que sair à procura de outra Universidade que os quisesse, porque sua dignidade não permitia permanecerem na Universidade humilhada. Tudo isso acompanhei por suas cartas. Lembro-me que, no desespero em que estava cheguei a escrever uma carta, que mandei a você me colocando à disposição dos carrascos para voltar preso ao Brasil se aceitassem esse preço para deixar livre nossa UnB.       Desvarios meus.

       Volto à Patrinha quando os meninos marchavam no Rio. Achava que se eles ofereciam seus jovens corações à bala, eu devia oferecer ao menos o meu fígado, porque já não tinha coração. Vivemos tempos tempestuosos. Jogados daqui prá lá como casquinhas de toletes de cana chupados. Fui preso. Recebi suas cartas doidas de não estar lá presa, comigo, na Fortaleza de Santa Cruz.

       Parto para o meu segundo exílio pela porta que você me abriu, com Berta, obrigando Abgar a forçar jeitoso a ditadura para me deixar sair. Lá fui eu, para além dos Andes, para o mar grosso do outro lado do mundo, para Lima horrible, onde nunca chove jamais, mas cai cada mês em estado, menstrua. Tão forte é a maresia que transcende. Você lá foi ter comigo, viu Lima arcaica e Lima nova, até fez um boneco na praia com a espuma do Pacífico, grossa como a neve.

       Segui meus descaminhos, agora feito romancista, li para você meus primeiros escritos de Maíra. Berta nos olhava sempre suspeitosa. Tanta amizade parecia inverossímil, e era.

       Rodei mundo e em Paris topei, tropecei com meu destino: câncer. Voltei ao Peru pedindo passagem para o Brasil. O câncer era meu cavalo. Pensava com ele voltar à Pátria, mal montado, é verdade, mas posto entre os meus. Meus amigos todos se juntaram, você no meio deles para que a ditadura consentisse que eu voltasse para morrer no Brasil. Custaram a consentir, achavam que mesmo canceroso eu era um perigo.   Por fim autorizaram, quando o meu câncer já ameaçava ficar inoperável.

       Você lá estava com o Mirza no carro do chefe de polícia para me arrancar do avião para a beneficência. Pedi, você se lembra? Pedi para ver a praia de Copacabana alargada e iluminada. Fui, vi, feliz. Depois fui morrer no Hospital.

       Mas não era isso que eu queria. Jessy me arrancou fora um pulmão excedente. Fiquei com o que necessitava para aspirar os ares do mundo e expirar a morte que se aninhava no meu peito.

       Você, Verusca, lá estava me trazendo flores e frutas. No hospital, para os policiais, você era minha irmã, com direito a estar que não davam aos meus amigos. Para a Berta não, você disputava com ela o doente dela, futuro morto dela de que só ela seria a viúva. Feias brigas vocês brigaram ali à beira da minha cama. Mas eu precisava de vocês duas. Brigavam tanto a ponto de assustar mamãe na casa do Max, para onde fui convalescer.

       Voltei depois às andanças por casas alheias e depois, afinal, para a minha casa de Copacabana, a casa da Berta. Minha querida Berta que lá está hoje, morrendo de seu câncer. Eu mal podia andar, a cicatriz ainda visível eu mostrava a meus sobrinhos, filhos do Mário, dizendo que era uma mordida de tubarão. Eles acreditavam. Vivi tão cercado de policias que me incomodava mais que a convalescência. Diziam que estavam me protegendo contra os terroristas da própria ditadura. Mirza achava verossímil.

       Tive de aceitar, obrigado, meu terceiro exílio e as novas tarefas de reformador de universidade e de namorador. Retorno ao Brasil brevemente para lançar o Processo Civilizatório e depois lançar Maíra. Você a meu lado orgulhosa de mim que era seu e dos livros que também eram seus. E não eram?

       Retornando, por fim definitivamente, me meti outra vez na política, para seu desconsolo. Me elegi vice-governador. Criei o Sambódromo e muitas coisas mais. Entre elas meus quinhentos CIEPs, cuja agonia nas mãos do nosso governo me dói tanto quanto a da UnB. Você, orgulhosa de mim, mais orgulhosa agora, do que preocupada.

       Alcanço a idade provecta e viro, como é próprio, Senador da República. Venho prá Brasília e você me dá casa. Primeiro, um apartamento alçado no telhado alto, belo, belo. Depois, na esplêndida casa zanínica em que morei. Tomando café de manhã, almoçando e jantando com você e passando à limpo, em longas conversas, toda a nossa vida, nos perguntando sobre tudo o que há neste mundo. Ainda temos muito que nos ver, nos olhar, nos beijar, nos falar. Verusca, minha amada namorada.

       Me dói muita saudade de nós.

                                                                                                                                                                                                                              Darcy

 

       Tudo começou com o problema da próstata. Darcy começou o tratamento e, nada de melhorar. Uma tarde, no seu apartamento, passou muito mal, ficou branco e frio. Chamei o Aloysio Campos da Paz que ficou preocupado e levou-o para o Hospital Sarah.

       Daí em diante, só problema, um atrás do outro. Começou a sentir dores nas pernas, enjôo, por causa das aplicações, tonteiras, um monte de coisas. Perdeu os cabelos, ficou completamente careca. Sentia, além das dores, fraqueza nas pernas e passou a andar de cadeira de rodas. O câncer já havia atingido a garganta, mas eu não deixei que o médico lhe contasse, ele entraria em desespero. Certa tarde, disse-me: 

       – Filha, estou com uma bolota aqui na testa e com medo de que já seja metástase. Se eu começar a falar muita bobagem, você tome uma providência.

       – Como é que eu vou distinguir, Darcy? Você fala bobagem o tempo todo.

       Ele ficou sério, não estava para brincadeira. Eu ficava tentando não levá-lo muito a sério, ele sempre achou graça nas minhas loucuras e, muitas vezes, consegui distraí-lo.

       Era uma quinta feira. Ele falou muito da mãe, do irmão, da família toda. Falou, pela segunda vez, da visita que o Joãozinho Trinta lhe havia feito, no seu apartamento, e na força que lhe deu, mesmo estando enfrentando um problema sério, de derrame, com seqüelas. E repetiu algumas frases que o haviam impressionado muito. O Joãozinho Trinta não tem idéia do bem que fez ao Darcy e do quanto ele ficou grato com a sua visita, as suas palavras, o seu exemplo.

       Falou de Belo Horizonte, dos amigos, dos companheiros de pensão. Dos mineiros que deram certo, dos que ameaçaram muito e não fizeram nada. Estava meio retrospectivo, estranho. Num determinado momento, disse- me:

       – Você foi e é amiga querida das pessoas mais interessantes do nosso país. E você sabe escrever e contar as coisas com graça, humor e realismo. São privilégios que poucas pessoas possuem. Escreva, filha, e conte o lado humano dessas criaturas. Mas deixe de ser preguiçosa, escreva um livro grosso, que fique em pé na estante. Os seus livros só ficam deitados.

       Chegou o momento da novela e  assistimos, juntos. Quando terminou, eu voltei para casa. Na sexta feira ele já estava um pouco melhor, mais corado. E ligava para um e outro, combinando o encontro de segunda feira, o da Amazônia, Projeto Caboclo.

       Mais novela, à noite, último capítulo do Rei do Gado. Ele amou. No sábado, já o encontrei meio desanimado. Levei o livro de poesias da Cora Coralina e fiquei lendo para ele, que adorava poesia.

       Estava fazendo muito calor e ele suava muito. Chamei a enfermeira para esticar o lençol, que estava todo emaranhado. Abracei-o e o coloquei sentado na cama, para que ela pudesse esticar. Estávamos assim, abraçados, e ele disse:

       – Filha, vamos trocar?

       – Trocar, como, Darcy?

       – Você morre e eu fico vivo.

       – É pra já, meu querido. É só Deus dizer amém, eu me deito aí e você se levanta. Você é muito mais útil ao mundo do que eu.

       A enfermeira terminou o trabalho, não aconteceu nenhuma modificação em mim, ou nele, então, olhando bem nos seus olhos para deitá-lo, de novo, fui dizendo:

       – Chega de sofrimento, meu filho. Vá embora. Desligue. Vá conhecer a outra dimensão. Você não havia dito que não pretendia pedir meses, dias emprestados à vida?

        Ele me olhou, tristonho, e fechou os olhos para dormir. No dia seguinte, já amanheceu muito mal.

        Na segunda feira, morreu.

_________

Vera Brant nasceu em Diamantina, completando seus estudos em Belo Horizonte. No Rio de Janeiro, para onde se transferiu a seguir, exerceu o cargo de Inspetora de Ensino do Ministério da Educação. Mudou-se para Brasília em 1960, trabalhando então ao lado de Darcy Ribeiro no esforço de criar a Universidade de Brasília. Demitida pelo golpe militar em 1964, hoje é empresária do ramo imobiliário. Além de Ensolarando Sombras, Vera Brant publicou ainda A Ciclotímica, A Solidão dos outros e Carlos , meu amigo querido, que reúne treze anos de correspondência com o poeta Carlos Drummond de Andrade. Recentemente, publicou dois livros: JK - O reencontro com Brasília, da Editora Record e Darcy, da Editora Paz e Terra.