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Antologia Canina

 

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Antologia

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CANINA

 

Extrato       Conto       Crônica

 

 

 JOSÉ SARAMAGO

Achado

 

RUBEM BRAGA

Histórias de Zig

 

LUIS  FERNANDO VERÌSSIMO

Os cachorros

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Um experimento editorial

O título da obra expressa seu objetivo: recolher e divulgar os melhores contos e crônicas caninas p.p. ditas e alguns  embutidos nos romances. São partes do texto extraídos de  romances, que adquiriram vida própria como conto. Foi o que fizeram com Baleia, uma  parte extraída do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, que adquiriu vida própria como conto e tornou-se um clássico.

Assim, fizemos com José Saramago, Paul Auster, Ciro Alegria, Tibor Déry, Jack London e Virginia Woolf. Muitos destes cães protagonistas aparecem em diversas partes do romance ou se constituem no ator principal. No entanto extraímos apenas uma parte contínua do texto, onde o nosso “fiel amigo” aparece em sua melhor forma.  

Trata-se de um experimento editorial para verificar sua aceitação pública. Vamos continuar recolhendo tais “pérolas” literárias tendo em vista a compilação de uma antologia canina.  

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 Achado

 José Saramago

   

     Vou a um negócio de homens, desta vez tens de ficar em casa, disse Cipriano Algor ao cão, que correra para ele quando o viu aproximar-se da furgoneta. É claro que o Achado não necessitava que o mandassem subir, bastava que lhe deixassem aberta a porta do carro o tempo suficiente para perceber que não o expulsariam depois, mas a causa real da sobressaltada corrida, por muito estranho que possa parecer, foi ter ele suposto, em sua ansiedade de cão, que o iam deixar sozinho. Marta, que saíra para o terreiro conversando com o pai e o acompanhava à furgoneta, tinha na mão o sobrescrito com os desenhos e a proposta, e embora o cão Achado não tenha idéias claras sobre o que são e para que servem sobrescritos, propostas e desenhos, conhece da vida, em todo o caso, que as pessoas que se dispõem a entrar em carros costumam levar consigo coisas que, em, geral, mesmo antes de para eles subirem, atiram para o banco de trás. Instruído por estas experiências, percebe-se que a memória do Achado o tenha levado a pensar que Marta iria acompanhar o pai nesta nova saída da furgoneta. Apesar de estar aqui há poucos dias, não tem dúvidas de que a casa dos donos é a sua casa, mas o seu sentido de propriedade, por incipiente, ainda não o autoriza a dizer, olhando em redor, tudo isto é meu. Aliás, um cão, seja qual for o tamanho, a raça e o carácter, jamais se atreveria a pronunciar palavras tão brutalmente possessivas, diria, quando muito, tudo isto é nosso, e ainda assim, revertendo ao caso particular destes oleiros e dos seus bens móveis e imóveis, o cão Achado nem daqui a dez anos será capaz de ver-se a si mesmo como terceiro proprietário. O máximo a que talvez consiga chegar quando for cão velho é ao obscuro e vago sentimento de participar em algo arriscadamente complexo e, por assim dizer, de escorregadias significações, um todo feito de partes em que cada uma é, ao mesmo tempo, a parte que é e o todo de que faz parte. Idéias aventurosas como esta, que o cérebro humano, grosso modo, é mais ou menos capaz de conceber, mas que logo tem uma enorme dificuldade em trocar por miúdos, são o pão nosso de cada dia nas diferentes nações caninas, quer de um ponto vista meramente teórico quer no que se refere às suas consequências práticas. Não se pense, contudo, que o espírito dos cães é como uma nuvem bonançosa que levemente passa, uma alvorada primaveral de suave luz, um tanque de jardim com cisnes brancos vogando, se o fosse não teria o Achado começado, de repente, a ganir lastimeiro, E eu, e eu, dizia ele. Para responder a tal desgarramento de alma aflita, não tinha achado Cipriano Algor, apreensivo como ia pela responsabilidade da missão que o levava ao Centro, melhores palavras que desta vez ficas em casa, o que valeu ao angustiado animal foi ter visto Marta dar dois passos atrás depois de ter entregado o sobrescrito ao pai, assim ficou o Achado ciente de que não o iriam deixar sem companhia, na verdade, mesmo constituindo cada parte, de per si, o todo a que pertence, como cremos que já deixámos demonstrado por a + b, duas partes, desde que estejam unidas, fazem muita diferença no total. Marta acenou ao pai um cansado gesto de adeus e voltou para casa. O cão não a seguiu logo, ficou à espera de que a furgoneta, depois de descer a ladeira para a estrada, desaparecesse por trás da primeira casa da povoação. Quando daí a pouco entrou na cozinha, viu que a dona estava sentada na mesma cadeira em que tinha trabalhado durante estes dias. Passava os dedos pelos olhos uma, e outra vez como se precisasse de aliviá-los de uma sombra ou de uma dor. Decerto por estar no tenro verdor da mocidade, Achado não teve ainda tempo de adquirir opiniões formadas, claras e definitivas sobre a necessidade e o significado das lágrimas no ser humano, no entanto, considerando que esses humores líquidos persistem em manifestar-se no estranho caldo de sentimento, razão e crueldade de que o dito ser humano é feito, pensou que talvez não fosse desacerto grave chegar-se à chorosa dona e pousar-lhe docemente a cabeça nos joelhos. Um cão mais idoso, e por essa razão, supondo que a idade está obrigada a suportar culpas duplicadas, mais cínico do que o cinismo que não pode evitar ter, comentaria com sarcasmo o afectuoso gesto, mas isso deveria ser porque o vazio da velhice o teria feito esquecer-se de que, em assuntos do coração e do sentir, sempre o demasiado foi melhor que o diminuído. Comovida, Marta passou-lhe devagar a mão pela cabeça, acariciando-o, e, como ele não se retirava e continuava a olhá-la fixamente, pegou num carvão e começou a riscar no papel os primeiros traços de um esboço. Ao princípio, as lágrimas impediam-na de ver bem, mas, pouco a pouco, ao mesmo tempo que a mão ganhava segurança, os olhos foram aclarando, e a cabeça do cão, como se emergisse do fundo de uma água turva, apareceu-lhe na sua inteira beleza e força, no seu mistério e na sua interrogação. A partir deste dia, Marta vai querer tanto ao cão Achado como sabemos que já lhe quer Cipriano.

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Extraído de: SARAMAGO, José. A Caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 85-87.

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Histórias de Zig

 

                                                                                         Rubem Braga

    

Um dia, antes do remate de meus dias, ainda jogarei fora esta máquina de escrever e, pegando uma velha pena de pato, me porei a narrar a crônica dos Braga. Terei então de abrir todo um livro e contar as façanhas de um deles que durou apenas 11 anos, e se chamava Zig.

     Zig - ora direis - não parece nome de gente, mas de cachorro. E direis muito bem, porque Zig era cachorro mesmo. Se em todo o Cachoeiro era conhecido por Zig Braga, isso apenas mostra como se identificou com o espírito da Casa em que nasceu, viveu, mordeu, latiu, abanou o rabo e morreu.

     Teve, no seu canto de varanda, alguns predecessores ilustres, dos quais só recordo Sizino, cujos latidos atravessam minha infância, e o ignóbil Valente; que encheu de desgosto meu tio Trajano. Não sei onde Valente ganhou esse belo nome; deve ter sido literatura de algum Braga, pois hei de confessar que só o vi valente no comer angu. E só aceitava angu pelas mãos de minha mãe.

Um dia, tio Trajano veio do sítio ... Minto! Foi tio Maneco. Tio Maneco veio do sítio e, conversando com meu pai na varanda, não tirava o olho do cachorro. Falou-se da safra, das dificuldades da lavoura .

     - Ó Chico, esse cachorro é veadeiro.

     Meu pai achava que não; mas, para encurtar conversa, quando tio Maneco montou sua besta, levou o Valente atrás de si com a coleira presa a uma cordinha. O sítio não tinha três léguas lá de casa. Dias depois meu tio levou a cachorrada para o mato, e Valente no meio. Não sei se matou alguma coisa; sei apenas que Valente sumiu. Foi. a história que tio Maneco contou indignado a primeira que vez voltou no Cachoeiro; o cachorro não aparecera em parte alguma, devia ter morrido ...

     - Sem-vergonhão!

     Acabara de ver o Valente que, deitado na varanda, ouvia a conversa e o mirava com um olho só.

     Nesse ponto, e só nele, era Valente um bom Braga, que de seu natural não é povo caçador; menos eu, que ando por este mundo a caçar ventos e melancolias.

     Houve, certamente, lá em casa, outros cães. Mas vamos logo ao Zig, o maior, deles, não apenas pelo seu tamanho como pelo seu espírito. Sizino é uma lembrança vaga, do tempo de Quinca Cigano e da negra Iria, que cantava O Crime da Caixa-d'Água e No Mar Desta Vida, em cujo mar afirmava encontrar às vezes "alguns escolhos", e eu tinha a impressão de que "escolhos" eram uns peixes ferozes piores que tubarão.

     Ao meu pai chamavam de coronel, e não o era; a mim muitos me chamam de capitão, e não sou nada. Mas isso mostra que não somos de todo infensos ao militarismo, de maneira que não há como explicar o profundo ódio que o nosso bom cachorro Zig votava aos soldados em geral. A tese aceita em família é que devia ter havido, na primeira infância de Zig, algum soldado que lhe deu um pontapé. Haveria de ser um mau elemento das forças armadas da Nação, pois é forçoso reconhecer que mesmo nas forças armadas há maus elementos, e não apenas entre as praças de pré como mesmo entre os mais altos ... mas isto aqui, meus caros, é uma crônica de reminiscências canino-familiares e nada tem a ver com a política.

     Deve ter sido um soldado qualquer, ou mesmo um carteiro. A verdade é que Zig era capaz de abanar o rabo perante qualquer paisano que lhe parecesse simpático (poucos, aliás lhe pareciam) mas a farda lhe despertava os piores instintos. O carteiro de nossa rua acabou entregando as cartas na casa de tia Meca. Volta e meia tínhamos uma "questão militar" a resolver, por culpa de Zig.

     Tão arrebatado na vida pública, Zig era, entretanto, um anjo do lar. Ainda pequeno tomou-se de amizade por uma gata, e era coisa de elevar o coração humano ver como aqueles dois bichos dormiam juntos, encostados um ao outro. Um dia, entretanto, a gata compareceu com cinco mimosos gatinhos, o que surpreendeu profundamente Zig.

     Ficou muito aborrecido, mas não desprezou a velha amiga e continuou a dormir a seu lado. Os gatinhos então começaram a subir pelo corpo de Zig, a miar interminavelmente. Um dia pela manhã, não agüentando mais, Zig segurou com a boca um dos gatinhos e sumiu com ele. Voltou pouco depois, e diante da mãe espavorida abocanhou pelo dorso outro bichinho e sumiu novamente. Apesar de todos os protestos da gata, fez isso com todas as crias. Voltou ainda, latiu um pouco e depois saiu na direção da cozinha. A gata seguiu-o, a miar desesperada. Zig subiu o morro, ela foi atrás. Em um buraco, lá no alto, junto ao cajueiros estavam os cinco bichos, vivos e intactos. A mãe deixou-se ficar com eles e Zig voltou para dormitar no seu canto.

     Estava no maior sossego quando a gata apareceu novamente, com todas as crias atrás. Deitou-se ao lado de Zig, e novamente os bichinhos começaram a passear pelo seu corpo.

     Um abuso inominável. Zig ficou horrivelmente aborrecido, e suspirava de cortar o coração, enquanto os gatinhos lhe miavam pelas orelhas. Subitamente abocanhou um dos bichos e sumiu com ele, desta vez em disparada. Em menos de cinco minutos havia feito outra vez a mudança, correndo como um desesperado morro abaixo e morro acima. Mas as mulheres são teimosas, e quando descobrem o quanto é fraco e mole um coração de Braga começam a abusar. O diabo da gata voltou ainda cinicamente com toda a sua detestável filharada. Previmos que desta vez Zig ia perder a paciência. O que fez, simplesmente, foi se conformar, embora desde então esfriasse de modo sensível sua amizade pela gata.

     Mas não pensem, por favor, que Zig fosse um desses cães exemplares que freqüentam as páginas de Seleções, somente capazes de ações nobres e sentimentos elevados, cães aos quais só falta falar para citarem Abraham Lincoln, e talvez Emerson. Se eu afirmasse isso, algumas dezenas de leitores de Cachoeiro de Itapemirim rasgariam o jornal e me escreveriam cartas indignadas, a começar pelo Dr. Lofego, a quem Zig mordeu ignominiosamente, para vergonha e pesar do resto da família Braga.

      De vez em quando aparecia lá em casa algum sujeito furioso a se queixar de Zig.

      Assisti a duas dessas cenas: o mordido lá embaixo, no caramanchão, a vociferar, e minha mãe cá em cima, na varanda, a abrandá-lo. Minha mãe mandava subir o homem e providenciava o curativo necessário. Mas se a vítima passava além da narrativa concreta dos fatos e começava a .insultar Zig, ela ficava triste: "Coitadinho, ele tão bonzinho ... é um cachorro muito bonzinho." O homem não concordava e ia-se embora ainda praguejando. O comentário de mamãe era invariável: "Ora, também ... Alguma coisa ele deve ter feito ao cachorrinho. Ele não morde ninguém ... “.

     "Cachorrinho" deve ser considerado um excesso de ternura, pois Zig era, sem o mínimo intuito de ofensa, mas apenas por amor à verdade, um cachorrão. E a verdade é que mordeu um número maior de pessoas que o necessário para manter a ordem em Cachoeiro de Itapemirim. Evitávamos, por isso, que ele saisse muito à rua, e o bom cachorro (sim, no fundo era uma boa alma) gostava de ficar em casa; mas se alguém saía ele tratava de ir atrás.

     Contam que uma de minhas irmãs perdeu o namorado por causa da constante e apavorante companhia de Zig. Quanto à minha mãe ela sempre teve o cuidado de mandar prender o cachorro domingo pela manhã, quando ia à missa. Às vezes, entretanto, acontecia que o bicho escapava; então descia a escada velozmente atrás das pegadas de minha mãe. Sempre de focinho no chão, lá ia ele para cima; depois quebrava à direita e atravessava a Ponte Municipal. Do lado Norte trotava outra vez para baixo e em menos de quinze minutos estava entrando na igreja apinhada de gente. Atravessava aquele povo todo até chegar diante do altar-mor, onde oito ou dez velhinhas recebiam, ajoelhadas, a Santa Comunhão.

     Zig se atrapalhava um pouco - e ia cheirando, uma por uma, aquelas velhinhas todas, até acertar com a sua dona. Mais de uma vez o padre recuou indignado, mais de uma vez uma daquelas boas velhinhas trincou a hóstia, gritou ou saiu a correr assustada, como se o nosso bom cão que fuçava, com seu enorme focinho úmido, fosse o próprio Cão de fauces a arder.

     Mas que alegria de Zig quando encontrava, afinal, a sua dona! Latia e abanava o rabo de puro contentamento, e não a deixava mais. Era um quadro comovente, embora irritasse, para dizer a verdade, a muitos fiéis. Que tinham lá suas razões, mas nem por isso ninguém me convence de que não fossem criaturas no fundo egoístas, mais interessadas em salvar suas próprias e mesquinhas almas do que em qualquer outra coisa.

     Hoje minha mãe já não faz a longa e penosa caminhada, sob o sol de Cachoeiro, para ir ao lado de lá do ria assistir à missa. Atravessou a ponte todo domingo durante muitas e muitas dezenas de anos, e está velha e cansada. Não me admiraria saber que Deus, não recebendo mais sua visita, mande às vezes, por consideração, um santo qualquer, talvez Francisco de Assis, fazer-lhe uma visitinha do lado de cá em sua velha casa verde; nem que o Santo, antes de voltar, dê uma chegada ao quintal para se demorar um pouco sob o velho pé de fruta-pão onde enterramos Zig.

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Crônica escrita em 1948 e extraída de BRAGA, Rubem. 200 Crônicas Escolhidas. Rio de Janeiro: Editora Record. 1978.

 

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Os cachorros

                                                                         Luis Fernando Veríssimo

    

O primeiro a chegar é o general aposentado com o seu cachorro policial, Atlas. O general solta Atlas que dá três voltas em alta velocidade pela pracinha, faz pipi, com alguma solenidade, contra a mesma árvore e depois senta junto ao banco do general. Sempre o mesmo banco.

     Quando começam a chegar as babás e as crianças, Atlas fica inquieto. Dá alguns latidos e ameaça levantar. O general o adverte:

     - Quieto.

     Atlas treme, mas se controla. Só sairá do lugar com uma ordem do dono. Uma vez desobedeceu. Uma bola de borracha chegou ao alcance dos seus dentes e ele a estraçalhou diante do olhar horrorizado das crianças e das babás. Houve protestos mas o general assegurou que aquilo não se repetiria. Agora, sempre que uma bola chega perto de Atlas há um silêncio de expectativa na pracinha. Atlas treme, mas se controla.

     Depois de Atlas e do general chegam Rex, um Boxer, e o comendador. O comendador deixa Rex solto. De vez em quando levanta do banco que compartilhará, durante toda a manhã, com o general e procura Rex com o olhar. Rex é brincalhão e nervoso. Não tem lugar certo para fazer pipi. O general e o comendador conversam. O comendador afaga a cabeça de Atlas.

     - Como vai essa fera?

     O general responde por Atlas. - Vai bem. E Rex?

     - Ótimo.

     Os dois trocam histórias dos cachorros. Quando ouve falar o seu nome, Atlas empina as orelhas.

     Vive na esperança de uma ordem do general. Atacar! Mas a ordem nunca vem.

     - O Rex anda um pouco rebelde. É a vida em apartamento ...

     - O Atlas não tem esse problema. Ou, se tem, não demonstra. Disciplina.

     O comendador suspira. Rex não é mais o mesmo. Tudo começou depois do acasalamento. Rex não se acostumou mais com a vida pacata da casa. Vive sonhando com aventuras. O comendador não sabe o que fazer.

     Chega Frufru, um Pequinês e Dona Romária. O general e o comendador não se sentem à vontade com aquele pequeno animal dado a ataques de histeria. Dona Romária fala com Frujru sem parar.

     - O que é, minha negra? Conta pra mamãe, conta. Está contente, não é, biju? Vai brincar com o Atlas, vai. Conta pra ele o que você andou fazendo dentro de casa, conta, sua sem-vergonha. Vai, lindeza.

    Frufru corre para brincar com Atlas. O policial fica impassível. Olha para seu dono como que implorando uma ordem para acabar com o tormento. Frufru pula em redor de Atlas e late, esganiçada.

    Baixinho, para que Dona Romária não ouça, o comendador comenta para o general:

     - Frufru ...

     - O que a gente tem que agüentar ...

     - E esse não é dos piores.

     - O que eu não agüento é cachorro com nome diferente.

     - Sei o que você quer dizer.

     - Outro dia apareceu uma dona aqui com um Basset chamado Édipo. Édipo!

     - Não dá. Nome engraçadinho, não dá.

     O comendador levanta para procurar Rex. Onde andará seu cachorro? O general continua:

     - Cachorro tem que ter nome de cachorro. Atlas. Tupi.

     - Rex ...

     - Rex. Tapir.

     - Tapir, não sei não.

     - No máximo Tapir.

     Chega um par de Cocker Spaniel, novos na praça. Com eles um homem estranho. Alto, de barba bem aparada, a camiseta colada ao corpo e calças jeans muito justas. Senta no mesmo banco com o comendador e o general.

     - Bons-dias!

      O comendador e o general se entreolham. O recém-chegado solta seus cachorros da coleira dupla e recomenda.

      - Allez, allez. A vida social é muito importante. Misturem-se.

      Para o general e o comendador, ele explica: - Os dois são muito tímidos. Os dois saem trotando, sem muito entusiasmo. - Não são umas graças?

      Só Dona Romária concorda. O general, o comendador e Atlas ficam mudos. O recém-chegado continua:

     - É uma luta para tirá-los de casa. Se pudessem ficariam atirados no tapete persa o dia inteiro. São uns lânguidos! Uns lânguidos!

     O general limpa a garganta. Pergunta: - Como é o nome deles?

     - Um se chama Rimbaud e o outro Verlaine.

     - Sim.

     Alguma coisa no tom de voz do seu dono faz Atlas ficar alerta. Talvez agora venha a ordem que ele espera há tanto tempo. Atacar! Estraçalhar! Mas quem fala é o comendador.

     - Onde é que está o Rex?

     O Boxer desapareceu. O comendador sai a procurá-lo por toda a praça. Rex foi visto pela última vez seguindo uma cadela vira-lata, rua acima. O dono dos Cocker Spaniel comenta:

     - Quem me dera que os meus fossem assim, despachados. Mas são uns bobocas. O Rimbaud ainda tem personalidade, mas o Verlaine ...

     O general murmura:

     - Atlas ...

     Atlas prepara-se. É só receber a ordem. Liquidará primeiro a Frufru e depois sairá na caça a Verlaine e Rimbaud. Por um instante a pracinha paira à beira da tragédia. Finalmente, o general recua.

     - Quieto.

     Rex é recuperado e levado para casa, arrastado. O general também volta para casa mais cedo, descrente de tudo. Atlas vai na frente. Até chegar à beira da calçada ainda terá que agüentar Frufru pulando nas suas patas.

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Fonte: VERÍSSIMO, Luis Fernando. O analista de Bagé. 43ed. L & PM, 1982.

 

 

 

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