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Antologia canina

vol. 8

Antologia

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CANINA

   

Extrato         Conto          Crônica

 

 

MACHADO DE ASSIS

Miss Dollar

 

MARIO BENEDETTI

Acabou-se a raiva

 

JOSÉ CARLOS DE OLIVEIRA

Cãomício no calçadão

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Miss Dollar

 

   Machado de Assis

 

1º Capítulo

Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que encheriam o papel sem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentar-lhes Miss Dollar.

Se o leitor é rapaz e dado ao gênio melancólico, imagina que Miss Dollar é uma inglesa pálida e delgada, escassa de carnes e de sangue, abrindo à flor do rosto dous grandes olhos azuis e sacudindo ao vento umas longas tranças louras. A moça em questão deve ser vaporosa e ideal como uma criação de Shakespeare; deve ser o contraste do roastbeef britânico, com que se alimenta a liberdade do Reino Unido. Uma tal Miss Dollar deve ter o poeta Tennyson de cor e ler Lamartine no original; se souber o português deve deliciar-se com a leitura dos sonetos de Camões ou os Cantos de Gonçalves Dias. O chá e o leite devem ser a alimentação de semelhante criatura, adicionando-se-lhe alguns confeitos e biscoutos para acudir às urgências do estômago. A sua fala deve ser um murmúrio de harpa eólia; o seu amor um desmaio, a sua vida uma contemplação, a sua morte um suspiro.

 

A figura é poética, mas não é a da heroína do romance.

Suponhamos que o leitor não é dado a estes devaneios e mel ancolias; nesse caso imagina uma Miss Dollar totalmente diferente da outra. Desta vez será uma robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas arredondadas, olhos vivos e ardentes, mulher feita, refeita e perfeita. Amiga da boa  e do bom copo, esta Miss Dollar preferirá um quarto de carneiro  a  uma página de Longfellow, cousa naturalíssima quando o estômago reclama, e nunca chegará a compreender a poesia  do  pôr-do-sol. Será uma boa mãe de família  segundo a doutrina de alguns padres-mestres da civilização, isto é, fecunda e  ignorante.

Já não será do mesmo sentir o leitor que tiver passado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem recurso. Para esse, a Miss Dollar verdadeiramente digna de ser contada em algumas páginas, seria uma boa inglesa de cinqüenta anos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportando ao Brasil em procura de assunto para escrever um romance, realizasse um romance verdadeiro, casando com o leitor aludido. Uma tal Miss Dollar seria incompleta se não tivesse óculos verdes e um grande cacho de cabelo grisalho em cada fonte. Luvas de renda branca e chapéu de linho em  forma de cuia, seriam a última demão deste magnífico tipo de ultramar.

Mais esperto que os outros, acode um leitor dizendo que a heroína do romance  não é nem foi inglesa, mas brasileira dos quatro costados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga é rica.

A descoberta seria excelente, se fosse exata; infelizmente nem esta nem as outras são exatas. A Miss Dollar do romance não é a menina romântica, nem a mulher robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica. Falha desta vez a proverbial perspicácia dos leitores; Miss Dollar é uma cadelinha galga.

Para algumas pessoas a qualidade da heroína fará perder o interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apesar de não ser mais que uma cadelinha galga, teve as honras de ver o seu nome nos papéis públicos, antes de entrar para este livro. O Jornal do Comércio e o Correio Mercantil publicaram nas colunas dos anúncios as seguintes linhas reverberantes de promessa:

       "Desencaminhou-se uma cadelinha galga, na noite de ontem, 30. Acode ao nome de Miss Dollar. Quem a achou e quiser levar à rua de Mata-cavalos no..., receberá duzentos mil-réis de recompensa. Miss Dollar tem uma coleira ao pescoço fechada por um cadeado em que se lêem as seguintes palavras: De tout mon coeur."

Todas as pessoas que sentiam necessidade urgente de duzentos mil-réis, e tiveram a felicidade de ler aquele anúncio, andaram nesse dia com extremo cuidado nas ruas do Rio de Janeiro, a ver se davam com a fugitiva Miss Dollar. Galgo que aparecesse ao longe era perseguido com tenacidade até verificar-se que não era o animal procurado. Mas toda esta caçada dos duzentos mil-réis era completamente inútil, visto que, no dia em que apareceu o anúncio, já Miss Dollar estava aboletada na casa de um sujeito morador nos Cajueiros que fazia coleção de cães.

Capítulo II

Quais as razões que induziram o Dr. Mendonça a fazer coleção de cães, é cousa que ninguém podia dizer; uns queriam que fosse simplesmente paixão por esse símbolo da fidelidade ou do servilismo; outros pensavam antes que, cheio de profundo desgosto pelos homens, Mendonça achou que era de boa guerra adorar os cães.

Fossem quais fossem as razões, o certo é que ninguém possuía mais bonita e variada coleção do que ele. Tinha-os de todas as raças, tamanhos e cores. Cuidava deles como se fossem seus filhos; se algum lhe morria ficava melancólico. Quase se pode dizer que, no espírito de Mendonça, o cão pesava tanto como o amor, segundo uma expressão célebre: tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo.

O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico. Não era. Mendonça era um homem como os outros; gostava de cães como outros gostam de flores. Os cães eram as suas rosas e violetas; cultivava-os com o mesmíssimo esmero. De flores gostava também; mas gostava delas nas plantas em que nasciam: cortar um jasmim ou prender um canário parecia-lhe idêntico atentado.

Era o Dr. Mendonça homem de seus trinta e quatro anos, bem apessoado, maneiras francas e distintas. Tinha-se formado em medicina e tratou algum tempo de doentes; a clínica estava já adiantada quando sobreveio uma epidemia na capital; o Dr. Mendonça inventou um elixir contra a doença; e tão excelente era o elixir, que o autor ganhou um bom par de contos de réis. Agora exercia a medicina como amador. Tinha quanto bastava para si e a família. A família compunha-se dos animais citados acima.

Na memorável noite em que se desencaminhou Miss Dollar, voltava Mendonça para casa quando teve a ventura de encontrar a fugitiva no Rocio. A cadelinha entrou a acompanhá-lo, e ele, notando que era animal sem dono visível, levou-a consigo para os Cajueiros.

Apenas entrou em casa examinou cuidadosamente a cadelinha, Miss Dollar era realmente um mimo; tinha as formas delgadas e graciosas da sua fidalga raça; os olhos castanhos e aveludados pareciam exprimir a mais completa felicidade deste mundo, tão alegres e serenos eram. Mendonça contemplou-a e examinou minuciosamente. Leu o dístico do cadeado que fechava a coleira, e convenceu-se finalmente de que a cadelinha era animal de grande estimação da parte de quem quer que fosse dono dela.

-Se não aparecer o dono, fica comigo, disse ele entregando Miss Dollar ao moleque encarregado dos cães.

Tratou o moleque de dar comida a Miss Dollar, enquanto Mendonça planeava um bom futuro à nova hóspede, cuja família devia perpetuar-se na casa.

O plano de Mendonça durou o que duram os sonhos: o espaço de uma noite. No dia seguinte, lendo os jornais, viu o anúncio transcrito acima, prometendo duzentos mil-réis a quem entregasse a cadelinha fugitiva. A sua paixão pelos cães deu-lhe a medida da dor que devia sofrer o dono ou dona de Miss Dollar, visto que chegava a oferecer duzentos mil-réis de gratificação a quem apresentasse a galga. Conseqüentemente resolveu restituí-la, com bastante mágoa do coração. Chegou a hesitar por alguns instantes; mas afinal venceram os  sentimentos de probidade e compaixão, que eram o apanágio daquela alma. E, como se lhe custasse despedir-se do animal, ainda recente na casa, dispôs-se a levá-lo ele mesmo, e para esse fim preparou-se. Almoçou, e depois de averiguar bem se Miss Dollar havia feito a mesma operação, saíram ambos de casa com direção a Mata-cavalos.

Naquele tempo ainda o Barão do Amazonas não tinha salvo a independência das repúblicas platinas mediante a vitória de Riachuelo, nome com que depois a Câmara Municipal crismou a Rua de Mata-cavalos. Vigorava, portanto, o nome tradicional da rua, que não queria dizer cousa nenhuma de jeito.

A casa que tinha o número indicado no anúncio era de bonita aparência e indicava certa abastança nos haveres de quem lá morasse. Antes mesmo que Mendonça batesse palmas no corredor, já Miss Dollar, reconhecendo os pátrios lares, começava a pular de contente e a soltar uns sons alegres e guturais que, se houvesse entre os cães literatura, deviam ser um hino de ação de graças.

Veio um moleque saber quem estava; Mendonça disse que vinha restituir a galga fugitiva. Expansão do rosto do moleque, que correu a anunciar a boa nova. Miss Dollar, aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima. Dispunha-se Mendonça a descer, pois estava cumprida a sua tarefa, quando o moleque voltou dizendo-lhe que subisse e entrasse para a sala.

Na sala não havia ninguém. Algumas pessoas, que têm salas elegantemente dispostas, costumam deixar tempo de serem estas admiradas pelas visitas, antes de as virem cumprimentar. É possível que esse fosse o costume dos donos daquela casa, mas desta vez não se cuidou em semelhante cousa, porque  mal o médico entrou pela porta do corredor surgiu de outra interior uma velha com Miss Dollar nos braços e a alegria no rosto.

- Queira ter a bondade de sentar-se, disse ela designando uma cadeira à Mendonça.

- A minha demora é pequena, disse o médico sentando-se. Vim trazer-lhe a cadelinha que está comigo desde ontem...

-Não imagina que desassossego causou cá em casa a ausência de Miss Dollar...

- Imagino, minha senhora; eu também sou apreciador de cães, e se me faltasse um sentiria profundamente. A sua Miss Dollar...

- Perdão! interrompeu a velha; minha não; Miss Dollar não é minha, é de minha sobrinha.

- Ah!...

- Ela aí vem.

Mendonça levantou-se justamente quando entrava na sala a sobrinha em questão. Era uma moça que representava vinte e oito anos, no pleno desenvolvimento da sua beleza, uma dessas mulheres que anunciam velhice tardia e imponente. O vestido de seda escura dava singular realce à cor imensamente branca da sua pele. Era roçagante o vestido, o que lhe aumentava a majestade do porte e da estatura. O corpinho do vestido cobria-lhe todo o colo; mas adivinhava-se por baixo da seda um belo tronco de mármore modelado por escultor divino. Os cabelos castanhos e naturalmente ondeados  estavam penteados com essa simplicidade caseira, que é a melhor de todas as modas conhecidas; ornavam-lhe graciosamente a fronte como uma coroa doada pela natureza. A extrema brancura da pele não tinha o menor tom cor-de-rosa que lhe fizesse harmonia e contraste. A boca era pequena, e tinha uma certa expressão imperiosa. Mas a grande distinção daquele rosto, aquilo que mais prendia os olhos, eram os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite.

Mendonça nunca vira olhos verdes em toda a sua vida; disseram-lhe que existiam olhos verdes, ele sabia de cor uns versos célebres de Gonçalves Dias; mas até então os olhos verdes eram para ele a mesma cousa que a fênix dos antigos. Um dia, conversando com uns amigos a propósito disto, afirmava que se alguma vez encontrasse um par de olhos verdes fugiria deles com terror.

- Por quê? perguntou-lhe um dos circunstantes admirado.

- A cor verde é a cor do mar, respondeu Mendonça; evito as tempestades de um; evitarei as tempestades dos outros.

Eu deixo ao critério do leitor esta singularidade de Mendonça, que de mais a mais é preciosa, no sentido de Molière.

Capítulo III

Mendonça cumprimentou respeitosamente a recém-chegada, e esta, com um gesto, convidou-o a sentar-se outra vez.

- Agradeço-lhe infinitamente o ter-me restituído este pobre animal, que me merece grande estima, disse Margarida sentando-se.

- E eu dou graças a Deus por tê-lo achado; podia ter caído em mãos que o não restituíssem.

Margarida fez um gesto a Miss Dollar, e a cadelinha, saltando do regaço da velha, foi ter com Margarida; levantou as patas dianteiras e pôs-lhas sobre os joelhos; Margarida e Miss Dollar trocaram um longo olhar de afeto. Durante esse tempo uma das mãos da moça brincava com uma das orelhas da galga, e dava assim lugar a que Mendonça admirasse os seus belíssimos dedos armados com unhas agudíssimas.

Mas, conquanto Mendonça tivesse sumo prazer em estar ali, reparou que era esquisita e humilhante a sua demora. Pareceria estar esperando a gratificação. Para escapar a essa interpretação desairosa, sacrificou o prazer da conversa e a contemplação da moça; levantou-se dizendo:

- A minha missão está cumprida...

- Mas... interrompeu a velha.

Mendonça compreendeu a ameaça da interrupção da velha.

- A alegria, disse ele, que restituí a esta casa é a maior recompensa que eu podia ambicionar. Agora peço-lhes licença...

As duas senhoras compreenderam a intenção de Mendonça; a moça pagou-lhe a cortesia com um sorriso; e a velha, reunindo no pulso quantas forças ainda lhe restavam pelo corpo todo, apertou com amizade a mão do rapaz.

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Fonte: ASSIS, Machado de. Contos Fluminenses, In: Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.

Nota: A rigor este conto de Machado de Assis não entraria na antologia, pois o animal não é o protagonista da história. Miss Dollar,  como declara o autor no final, é apenas “a causa indireta de todos estes acontecimentos”. Porém, como teve a gentileza de  dar seu nome ao título do conto e tecer algumas considerações sobre seu “caráter”, foi incluído devido mesmo ao fato de se tratar de uma obra de Machado de Assis.  

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Acabou-se a raiva

 

Mario Benedetti

     Embora a perna do homem pouco se movesse, Fido, debaixo da mesa, apreciava aquela carícia por perto de seu focinho. Aquilo era quase tão agradável quanto ganhar pedacinhos de carne assada diretamente das mãos do dono. Havia já dois anos que, contrariando sua vocação e sua constituição (patas grossas e firmes, cangote robusto, orelhas afiladas), Fido se convertera num cão de apartamento, condição que parecia ser mais adequada aos totós efeminados, histéricos e mijões.

    Fido não pertencia a uma raça definida, mas era um animal disciplinado, consciente, que em geral adiava suas necessidades até o meio-dia, hora em que o levavam à calçada para que passasse em revista as árvores. Sabia, também, como se equilibrar em duas patas até receber a ordem de descanso, trazer o jornal na boca todas as manhãs, emitir um latido barítono quando tocava a campainha e servir de capacho para seu dono quando ele voltava do trabalho. Passava a maior parte do dia isolado num canto da sala de jantar ou sobre os ladrilhos do banheiro, dormindo ou simplesmente contemplando o verde calmante da banheira.

    Em geral, não incomodava. É verdade que não sentia um afeto especial pela mulher, mas como era ela que se ocupava de preparar-lhe a comida e renovar-lhe a água, Fido, hipocritamente, lhe lambia as mãos uma vez por dia, afim de não perturbar serviços tão vitais. Seu preferido era, naturalmente, o homem e quando ele, depois de almoçar, acariciava a nuca ou a cintura ou os seios da mulher, o cão se agitava, ciumento e medroso, num canto mais sombrio da sala de jantar.

    Os grandes momentos do dia eram sem dúvida as duas refeições, o passeio diurético pela rua e, em especial, aquela tranqüilidade depois do jantar, quando o homem e a mulher conversavam, distraídos, e ele sentia junto ao focinho o roçar afetuoso das calças de flanela.

    Mas naquela noite Fido estava estranhamente inquieto. O tremor das costas não era, como em outras sobremesas, um sinal de carinho e reconhecimento, um truque habitual de cachorro velho. Naquela noite o passado imediato pesava sobre ele. Uma série de imagens, bastante recentes, se acumulara em seus olhinhos chorosos e experientes. Em primeiro lugar: o Outro. É, uma tarde em que estava sozinho no apartamento, dormindo sua sesta em frente à banheira, a mulher chegou acompanhada do Outro. Fido latira sem timidez, comportara-se como um profeta. O fulano chamara por ele repetidas vezes num falsete carinhoso, mas não lhe agradavam nem aquelas cortantes calças pretas nem o antipático cheiro do homem. Duas ou três vezes conseguiu se controlar e se aproximou farejando, mas afinal retirou-se para seu canto da sala de jantar, onde o cheiro da fruteira era mais forte do que o do intruso.

    Daquela vez a mulher só tinha falado com o Outro, embora risse como nunca. Mas outro dia em que estava sozinha com Fido e o fulano apareceu, deram-se as mãos e acabaram abraçados. Depois, aquela cara redonda com bigodes pretos e olhos saltados, apareceu cada vez com mais freqüência. Nunca iam para o quarto, mas no sofá faziam as coisas que traziam a Fido enormes saudades das cachorrinhas de certa chácara onde transcorrera sua cachorrice.

     Uma tarde – sabe-se lá por quê – voltaram a notar sua presença. Desde o início, Fido compreendera que não deveria se aproximar, que seus latidos proféticos do primeiro dia não se poderiam repetir. Para seu próprio bem, para a continuidade dos serviços vitais, pelo ansiado passeio pela calçada. Não lambia as mãos de ninguém, mas também não incomodava. Eles, entretanto, perceberam sua presença. Na verdade, foi a mulher, e era natural, porque com o fulano nada tinha em comum. Talvez ela tomasse especial consciência de que o cão existia, de que estava presente, de que era uma testemunha, a única. Fido nada tinha a reprovar-lhe, ou melhor, não sabia que tinha algo a reprovar-lhe, mas estava ali, no banheiro ou na sala, olhando.    

    E sob aquele olhar úmido, remelento, a mulher acabou ficando inquieta e não tardou em ser tomada por um ódio violento, insuportável.

     Naturalmente, pouco de tudo isso chegara a Fido. Mas uma coisa o atingira e era o rancor com que era tratado, a raiva incomum com que era admitida sua obrigatória vizinhança.

     E agora que recebia a cota diária de afeto, agora que sentia junto ao focinho o roçar e o cheiro preferidos, sabia-se protegido e seguro. Mas, e depois? Seu problema era uma lembrança, a mais próxima. Há uns dias, dois, três – um cão não rotula o passado -, o fulano precisara sair com pressa (por quê?) e deixara esquecida a cigarreira, uma coisa linda, dourada, muito dura, sobre a mesa da sala de estar.

   A mulher a guardara, também apressada (por quê?), sob uma cortina da despensa. E lá, tão logo se viu sozinho, foi farejá-la Fido. Aquilo tinha o cheiro desagradável do fulano, mas era duro, metálico, brilhante, uma coisa cômoda de lamber, de empurrar, de fazer soar contra as tábuas do piso.

    A perna do homem não se moveu mais. Fido entendeu que por hoje a festa havia acabado. Preguiçosamente foi esticando as patas e se levantou. Ainda lambeu um pedaço de tornozelo que estava descoberto, entre a meia listrada e a calça. Depois se foi sem grunhir ou ladrar, com passo lento e reumático, para seu canto tranqüilo.

    Mas algo inesperado ocorreu então. A mulher entrou no quarto e voltou em seguida. Ela e o homem falaram, a princípio relativamente calmos, depois aos gritos. Logo, a mulher se calou, tirou a bolsa do cabide, colocou-a a tiracolo e – sem que o homem fizesse qualquer gesto para impedi-la – saiu para a rua, batendo a porta com tanta violência que o cão não teve outro remédio senão ladrar.

     O homem ficou nervoso, concentrado. Ocorreu a Fido que aquele era o momento. Nada de vingança; na verdade não sabia que era, mas o instinto lhe mostrava que aquele era o momento.

    O homem estava tão ensimesmado que não percebeu logo que o cachorro o puxava pelas calças. Fido precisou recorrer a três curtos latidos. Sua intenção era clara e o homem, depois de vacilar, seguiu-o entediado. Não foi muito longe. Até a despensa. Quando o cão afastou a cortina, o homem só conseguiu retroceder, depois abaixou e apanhou a cigarreira.

    Na verdade, Fido nada esperava. Para ele, o achado não tinha muita importância. De modo que, quando o homem deu aquele terrível soco na parede e começou a gritar e chorar como um totó do segundo andar, não soube fazer outra coisa além de, ele também, retroceder assustado diante da comoção que provocara. Ficou em silêncio, colado à soleira da porta, e de lá observou como o homem, com os dentes apertados, gritava e gemia. Então decidiu aproximar-se e lambê-lo com ternura, como era seu dever.

    O homem ergueu a cabeça e viu aquele rabo movediço, aquele importuno que vinha consolá-lo, aquela testemunha. Fido ainda arfou satisfeito, mostrando a língua úmida e escura. Depois se acabou. Era velho,  era fiel, era confiante. Três pobres razões que o impediram de se espantar quando o pontapé lhe arrebentou o focinho.

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Fonte: COSTA, Flávio Moreira da. Os melhores contos de cães & gatos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.

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Cãomício no calçadão

 

José Carlos de Oliveira

Reunidos no calçadão central da Avenida Atlântica, entre as Ruas Souza Aguiar e Sá Ferreira, dezenas de cães participaram sábado à tarde de um comício autorizado, em princípio, pela Administração Regional de Copacabana. Eram cachorros das mais variadas raças e dos mais diferentes tamanhos, desde Pastores Alemães até miniaturas Pintcher. Junto ao meio-fio, no local da concentração, um carro-choque do Batalhão de Gatos, armados de unhas e dentes, garantia a ordem.

O primeiro a subir ao tablado, que era um engradado de refrigerantes emborcado, foi um Poodle branquinho, de rabinho cotó.

- Nossos donos são irresponsáveis! - gritou ele

- Abaixo os donos irresponsáveis! - respondeu a multidão raivosa (embora toda ela vacinada)

- Todo poder aos cachorros! - prosseguiu veemente o Poodle branco, cujo focinho lembrava vagamente o de Jane Fonda, e que era tido, entre o Posto 6 e o Posto 4, como o líder inconteste do Dog-Power.

Em seguida pediu a palavra um Weimaraner azulado, de olhos tristes. Do alto do caixote, falou ponderadamente:

- Meus modos if... if... (estava chorando o coitado)... Meus modos refletem o do meu dono... Não quero mais passar vergonha sujando a calçada!

- Nós também não! - responderam em uníssono os manifestantes caninos. Lá do meio do povo, alguém latiu com voz de Pointer:

- Nossos donos precisam aprender que lugar de cachorro fazer suas "coisas" é em casa!

- Bravo! Apoiado! - concordou a cãonalhada.

- Pipi-dog! Queremos pipi-dog! - Puseram-se a ladrar cadelinha Basser - cinco ou seis, provavelmente da mesma ninhada. - Somos moças de família, e portanto temos direito a um lugar no apartamento, onde possamos fazer a nossa toalete em que os intrusos invadam a nossa  privacidade"

- Muito bem! Falou! Podem crer! - entoaram em coro os cinco Dobermans que moram no Edifício Chopin, um dos mais luxuosos de Copacabana, e que fazem pipi - vejam só a heresia! - na piscina do Copacabana Palace, que fica ali ao lado.

Agora, estava no tablado um musculoso Boxer, com sua cara abobalhada e seu tradicional bom coração.

- Senhoras e senhores - disse ele - sejamos objetivos. Desejo colocar em votação uma proposta simples, de três pontos, a qual, se aprovada, será encaminhada aos nossos donos, em forma de abaixo-assinado. Primeiro ponto:

- "Quero meu pipi-dog no apartamento".

- Apoiado! - gritou a assembléia.

Segundo ponto: ... Mas, antes, para evitar tumulto, prefiro que os distintos companheiros, em vez de latirem, ladrarem, rosnarem e coisa e tal, balancem o rabo em sinal de aprovação. Aqueles que não mais possuem rabo poderiam uivar, mais docemente, pois uma de nossas preocupações principais há de ser a de não agravar a poluição sonora, de maneira a não indispor a opinião publica contra a nossa causa...

Todos balançaram o rabo, em silêncio. A questão do orador fora aceita. Ele então prosseguiu:

- Segundo ponto: - "Queremos fazer nosso cooper canino apenas no calçadão central da Avenida Atlântica..."

Rabinhos balaçaram para lá e para cá: aprovado.

- Terceiro ponto: "É preferível que não nos levem à praia, onde involuntatiamente causamos uma porção de doenças!"

Rabinhos alegres: de acordo.

- Desta forma - finalizou o Boxer - poderemos afirmar que somos felizardos e que temos donos educados!

- Nosso dono vai ser superlegal! - exclamou a assembléia, esquecendo a recomendação de só balançar o rabo.

Nessa altura, todos ali estavam com vontade de fazer cocô e pipi. Sendo assim, o Poodle branco decidiu dar por encerrada a reunião, recomendando que os manifestantes se dispersassem em ordem.

Mas nesse instante pulou no caixote um autêntico Vira-Lata, magrinho, de olhos famintos, as costelas aparecendos sob o pêlo ralo, o rabo entre as pernas.

- Irmãos! - bradou ele, ou melhor, essa palavra num gemido - Irmãos! Todos somos irmãos! Todos os cachorros são iguais! Portanto, o verdadeiro problema não está no pipi-dog doméstico nem no pinicão de apartamento. O necessário é que todos nós, os de pedigrees e os da rua, os de raça e os vira-latas, tenhamos, todos. direito aos cuidados veterinários periódicos, à vacinação gratuita, à alimentação farta e balanceada, à coleira protetora com sua placa de identificação, aos banhos seguidos de talcos contra pulgas.. Viva pois a revolução! Todo o poder aos cachorros, sem distinção de raça, cor ou credo!

-Uh! Fora! - gritaram os cães de luxo, que pertencen todos, naturalmente, à Diretia, e preferem que as coisas continuem como estão, no plano da justiça social. - Fora! Sarnento! Babão! Comedor de restos! Ralé!

A multidão de sócios do Kennel Club avançou na direção do anarquista, rosnando ameaçadoramente. Foi preciso que os gatos salvassem o Vira-Lata do linchamento inevitável, para o que o cercaram, dispersando a cachorrada com bomba de gás lacrimogéneo.

Em seguida, o Batalhão de Gatos levou o Vira-Lata para o lugar adequado a essa espécie agitador. ele agora está sendo processado e é capaz de passar o resto da vida num canil-presídio. Acusação: trata-se de um CÃOMUNISTA.

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Fonte: Para gostar de ler. vol. 7 - Crônicas. São Paulo: Editora Ática, 1987.

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