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Antologia canina

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Antologia

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 CANINA

 

Extrato       Conto       Crônica

 

 

 

 TIBOR DÉRY

Niki  

 

MOREIRA CAMPOS

O Cachorro

 

JOÃO LABRADOR

O vigilante rodoviário

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 Um experimento editorial

O título da obra expressa seu objetivo: recolher e divulgar os melhores contos e crônicas caninas p.p. ditas e alguns  embutidos nos romances. São partes do texto extraídos de  romances, que adquiriram vida própria como conto. Foi o que fizeram com Baleia, uma  parte extraída do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, que adquiriu vida própria como conto e tornou-se um clássico.

Assim, fizemos com José Saramago, Paul Auster, Ciro Alegria, Tibor Déry, Jack London e Virginia Woolf. Muitos dos cães protagonistas aparecem em diversas partes do romance ou se constituem no ator principal. No entanto extraímos apenas uma parte contínua do texto, onde o nosso “fiel amigo” aparece em sua melhor forma.  

Trata-se de um experimento editorial para verificar sua aceitação pública. Vamos continuar recolhendo tais “pérolas” literárias tendo em vista a compilação de uma antologia canina.  

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Niki

Tibor Déry

“Até onde era possível enxergá-lo no lusco-fusco crepuscular do jardim, tratava-se de um fox-terrier, provavelmente mistura de pêlo-de-arame com pêlo liso. Seu corpo esguio era coberto por uma pelagem branca, curta e lisa, sem nenhuma, mancha ou pinta, com exceção das orelhas, que eram castanhas e tinham na base uma listra preta. Por um desses caprichos da natureza as orelhas e a área em volta apresentavam desenhos diferentes, com a distribuição de cores variando de uma para a outra. Da orelha esquerda a mancha castanha semicircular descia pela cabeça, alcançando as pestanas. Abaixo da orelha direita a meia face era de um branco puro, mas a faixa negra recuava da base da orelha - como se provendo um equilíbrio brincalhão para a meia face branca - até bem embaixo, no pescoço, um pouco além daquela linha onde os cães usam a coleira, alargando-se ali num quadrado negro bastante regular, pelo menos em termos do que a natureza é capaz de criar no que diz respeito a quadrados e outras formas igualmente regulares. Juntemos a isso dois grandes olhos brilhantes ao longo da base da cabeça triangular alongada, e na parte inferior um narizinho negro com o mesmo brilho, parecendo ter recebido uma pincelada de verniz de calçado, e então, apesar de um tanto superficialmente, como num esboço, teremos acabado de descrever essa pequena formação graciosa que se instalara aos pés de Ancsa”.

* * *

     Não existe terror maior e mais traiçoeiro que o amor. Unindo-se à fraqueza e à dependência, derrota a versão e até mesmo a indiferença. O homem não é capaz de furtar-se ao seu apelo, e o animal só raras vezes o consegue. Não é possível combatê-lo com arma alguma, pois ele torna sem efeito até mesmo a própria negação. E junte-se a isso o fato de que a mudez do animal, que o impede de colocar o problema em discussão, é algo muito mais terrível que o mais irretorquível dos argumentos. Pois o que posso eu responder a um silêncio que ataca não apenas alguns pontos de vista meus, mas toda a minha existência?
      E o que eu diria a esse silêncio? Que não acredito na sinceridade de sua afeição, pois é impossível gostar do que ainda não conhecemos? Ela poderia alegar, caso me considerasse merecedor de uma resposta, que me cheirou, portanto me conhece. Sua paixão encontrou em mim toda a superfície de aderência, de que necessita. A afeição não deve levar em conta o mérito, senão vira regateio.
      Ou então, poderia dizer-lhe apenas que a única obrigação atribuível à natureza humana é gerar descendentes, e que seria um embuste da minha parte adotar um cão como filho. Ainda estou na força da idade, em pleno vigor, não é mesmo? Assim, não me seria difícil providenciar alguns descendentes saudáveis. Em lugar deles vou apresentar perante o julgamento da história, um jovem fox totalmente imprestável? E falando do próprio fox imprestável, talvez ele se envergonhasse se soubesse que me agradava pela falta que eu sentia, e não por sua pessoa - isso mesmo, por sua pessoa. Que ele se satisfizesse com a pálida luz emprestada de um coração preocupado com outras coisas, em lugar do brilho imediato e direto da afeição de que era merecedor? Ele teria de reconhecer que a relação que se estabelecera entre nós seria duplamente doentia. Além disso considero uma impertinência essa intromissão na minha vida sem me consultar e sem que eu tenha permitido; essa violência cometida com a arma ignóbil de sua afeição, para a qual não tenho antídoto. O espaço que ele descaradamente conquista dentro de mim me fará falta. Tenho preocupações e dificuldades suficientes e não pretendo desperdiçar a minha força - aliás, a minha fraqueza - com animais importunos e repulsivos.
      Ancsa - como vemos - tinha uma imagem exata e confiável da moral humana, cuja validade estendia a toda a natureza viva. Sentia-se tão responsável pelos animais e plantas quanto por seus semelhantes. É de se supor que ao longo da vida caísse amiúde nessa armadilha por ele mesmo preparada e que com certeza em várias ocasiões se debatesse romanticamente nela e precisasse espernear bastante para conseguir escapar-lhe, mas cada um constrói o seu inferno e o seu paraíso da forma como pode.
      Porém a cachorra nada sabia a respeito de tudo isso, e mesmo que soubesse olharia para o engenheiro tão admirada como quando ele a expulsou pela primeira vez da casa. Além disso, tinha o que fazer. O casal não viu a cor dela por três dias. Reapareceu inesperadamente numa quinta-feira, bem depois da chegada do ônibus - que aliás chegou de novo sem o engenheiro. No final de março os dias se alongavam sensivelmente; a mulher estava sentada lá fora no jardim crepuscular, num banco à frente do portão, e enquanto esperava pelo marido passava os olhos num livro. De repente a cachorra apareceu atrás do portão. Num piscar de olhos rastejou com facilidade através da fenda, que entretanto não alargara, e correu em direção à mulher. Parou só por um instante em frente dela. Mostrou o corpo emagrecido desfilando algumas vezes em frente do banco com a graça de urna manequim; depois disparou de repente em direção ao portão, passou novamente pela fenda e num trote rápido desapareceu pela estrada que fazia urna curva para a esquerda. Nem pelo tempo necessário para se informar com mais pormenores sobre o paradeiro do engenheiro ela queria deixar sozinhos os filhotes.
      Ancsa passou aquela noite no escritório, na capital, retomando só no dia seguinte, tarde da noite. Mas chegou com tanta coisa para contar que já era madrugada quando a mulher pôde relatar-lhe a visita da cachorra.
      Naquele dia estatizaram as indústrias com mais de cem operários e ele foi designado gerente da Fábrica de Máquinas para Minas. János Ancsa descendia de uma família de mineiros; o pai fora mineiro, e assim, graças à sua origem, ele era julgado confiável, apesar de intelectual. Obteve o diploma de engenheiro de minas em dezenove, e apesar de durante a ditadura do proletariado (1) de dezenove ter sido um dos primeiros a entrar para o Partido Comunista, mesmo assim, após um jejum de uma década, foi nomeado professor na Escola Superior de Sopron. Quando eclodiu a guerra, no final de 1939, entrou para o Partido Social Democrata.
      Considerava que a estatização das grandes empresas e a nomeação para gerente da fábrica representariam a grande guinada de sua vida. Sendo um tipo honesto, parecia-lhe imperativo resolver, na medida do possível, todas as questões que ao longo da vida deixara pendentes, relegadas por comodismo ou fraqueza, para poder dar início, com todo vigor e tranquilidade, à entusiasmante tarefa nova. E entre essas questões pendentes estava sua relação com a cachorra, até então sem definição. Como sentisse que acabara meio inferiorizado na luta surda entre os dois, incumbiu a mulher de visitar o dono da cachorra e indagar-lhe se ele aceitaria separar-se do cão e sob que recompensa material. É óbvio que sua resolução foi influenciada pela narrativa carinhosamente colorida da esposa, que com emoção feminina no olhar e um sorriso jovial relatou a visita familiar da cachorra. Sua fantasia de mulher foi seduzida sobretudo pela faceirice inocente da jovem cachorra-mãe, em seu desfile para cima e para baixo em frente ao banco, com seus revolteios altivos de manequim, com os quais pretendia chamar a atenção para a esbelteza recuperada, ou seja para a saudável diminuição de peso.
      Embora essa emoção proviesse sem dúvida daquele elemento impuro que atraía o casal sem filhos para o jovem animal, naquele momento o engenheiro, prestes a assumir novas e importantes tarefas, e talvez em vista deles, pediu absolvição à sua consciência. Considerava que, se aplicado com crueldade com seus pormenores, o princípio da pureza podia se tornar desumano e até contrário à vida.
      Na tarde do dia seguinte a mulher fez uma visita ao dono da cachorra, o coronel reformado. Apesar de há muito querer se livrar da fox imprestável, dada por um parente que deixara o país clandestinamente, ele respondeu com evasivas à comunista senhora Ancsa. Já prometera a outrem, disse; volte daqui a uma semana para ver se a levaram ou não. De resto, poucos dados novos a conversa acrescentou à biografia da cachorra; a mulher ficou sabendo apenas que sua idade era no máximo um ano e meio e que todos os filhotes, menos um, já haviam sido sacrificados. Ao se retirar do jardim ela lançou olhares ao redor, mas em vão; não viu a cachorra em lugar algum. Ela a estava esperando em casa, na escada em frente à porta. Contrariando seus hábitos, deu alguns poucos vôos, tomou apressadamente o leite com o pão esmigalhado e logo em seguida foi para casa a galope, juntar-se ao filhote que lhe restava.
      Durante a noite, enquanto esperava pelo marido, a mulher, com o coração ainda jovem tomado por uma angústia a um tempo doce e dolorosa, imaginava entre outras coisas se o instinto sabia fazer contas ou pelo menos somar e subtrair. Se tirassem um dos cinco filhotes a cachorra perceberia? Se tirassem dois? Ou três? Se deixassem só um teria ela apenas a impressão de que diminuiu a agitação à sua volta, que o grunhido está mais fraco, com menos filhotes para limpar e que apenas uma das muitas mamas seria utilizada para amamentar? Ou ela registraria, observando filhote por filhote, os que estão faltando? Pois o que vale um amor materno que - até mesmo do ponto de vista da natureza, ávida por multiplicar-se - se satisfaz com uma parte quando poderia pretender o todo? No dia seguinte a mulher passou por acaso em frente do jardim do coronel. A cachorra estava deitada no gramado ensolarado, não muito distante da cerca; levemente virada para um lado, abraçava com uma das patas dianteiras uma bolinha de pêlo branco com manchas pretas que, acompanhada por movimentos raivosos do rabinho, se pôs a trabalhar numa das mamas como um colérico motor sugador. Notando a presença da mulher, a cachorra levantou a cabeça, lançou-lhe por baixo dos cílios brancos seu negro olhar brilhante e deu duas ou três batidas com o rabo; parecia estar satisfeita, tranquila e feliz. A mulher soltou um suspiro e reiniciou a caminhada. Durante as semanas que se seguiram, quando a senhora Ancsa já passava mais tempo na companhia da cachorra - algumas vezes esta chegou a acompanhá-la em seus passeios -, ela pôde constatar também que sua vontade de viver não havia se abalado nem um pouco. Apenas uma languidez espiritual de curta duração pôde ser notado após a perda do último filhote presenteado pelo coronel a um de seus amigos, um deputado pelo Partido dos Pequenos Proprietários Rurais, morador de uma cidadezinha das vizinhanças.
      Um novo capítulo começou na vida de Niki quando pela primeira vez Ancsa chamou-a pelo nome. Como já mencionamos, o casal se referia a ela, mesmo entre si, como "o cão", seu nome de espécie ou, na melhor das hipóteses, como o "fox"; só a mulher, quando muito, deixava às vezes escapar seu verdadeiro nome, mas mesmo isso ocorreu apenas depois que a relação entre eles, devido à paciente insistência da cachorra, foi aos poucos se tornando mais íntima. Legalmente, porém, o nome só passou a fazer parte do vocabulário do casal ao se legitimar o relacionamento. Na realidade o coronel não lhes deu a cachorra; preferiu presenteá-la às pressas a um camponês que morava no fim da aldeia e que após alguma persuação aceitou a boa perseguidora de ratazanas, porém Niki fugiu dele dois dias depois, e como o coronel a enxotasse do jardim ela se refugiou imediatamente nos Ancsa. Por dez florins a mulher comprou-a do camponês.
      Antes porém foi a Budapest, à Praça Rudolf, onde o partido lhes providenciou um apartamento, e andou pelas redondezas verificando se havia lugar para passear com a cachorra e se ela disporia de uma área nas proximidades para dar suas corridas. Em frente ao prédio havia um pequeno jardim público, porém com muitas crianças brincando; parecia-lhe bem mais adequado, e até mesmo um passeio de primeira ordem, o cais Rudolf, à margem do Danúbio, que, de frente para as belas montanhas de Buda, se prestaria também para a diversão humana. De resto, o apartamento, resultado da divisão em dois de um outro maior, ainda não estava pronto, e, de acordo com os cálculos da mulher, antes de junho ou julho o casal não conseguiria se instalar nele, podendo assim passar a bonita primavera e o início do verão ainda em Csobánka.
      As qualidades e os defeitos, corporais e mentais da cachorra só se fizeram conhecer de fato após terem estabelecido uma convivência mais estreita. O engenheiro pouco sabia a respeito; a cada dois ou três dias passava também a noite preso à sua mesa de trabalho em Budapest, e quando dormia em Csobánka chegava tão cansado e ocupado com seus próprios assuntos que no máximo podia oferecer apenas à esposa um pouco de afago e algum interesse preocupado. Praticamente só via a cachorra nas tardes de domingo, pois as manhãs ele também passava na indústria.
      Numa dessas tardes a cachorra ofereceu-lhes uma exibição completa de sua destreza, força, coragem e resistência física. Eles estavam passeando pelas colinas acima do povoado, entre terras aradas, quando de repente pulou do trigal uma lebre, supostamente a primeira na vida de Niki. Não era tanto uma lebre, era mais um deslizar rápido cor da terra que por um instante sobressaiu por entre as espigas estremecidas e depois, mostrando uma cintilante mancha branca mais sólida por baixo do rabo, voltou a desaparecer entre as ondas que se cerravam. Em geral os cachorros observam tudo que lhes chame a atenção e se põem a perseguir o que tenta escapar-lhes. Não foi obviamente a visão em si, cujo sujeito ela não podia conhecer, e sim, o seu súbito desaparecimento que logo fez Niki exercitar da forma mais ligeira possível os músculos de sua perna. Num piscar de olhos ela desapareceu dentro do trigal.
      Por um longo tempo não deu notícias. Os Ancsa aguardavam-na um pouco, depois continuaram o passeio. Tinham andado já um bom pedaço quando lhes chegou ao ouvido um latido distante, mas que se aproximava rapidamente. Primeiro foi a lebre que pulou para o sopé da colina, coberto de capim ralo, onde aqui e acolá um arbusto de relva selvagem ou um pilriteiro guardava sua sombra embaçada; o alongado corpo branco da cachorra saltou de repente do bosque de pequenas acácias que povoavam o cume, alguns metros atrás da lebre. Dirigiam-se direto à vereda por onde os Ancsa andavam. Em seu pavor cego o animal perseguido parecia não os ter notado. O casal parou; a surpresa repentina e a alegre espera em seguida reteve não somente o próximo passo, latente nas pernas, mas até a respiração nos pulmões; imobilizados, olhavam assombrados a perseguição que se aproximava vertiginosamente. Niki corria numa velocidade irreal; suas pernas um pouco compridas demais e fora do padrão, capazes de arrancar uma gargalhada de escárnio de qualquer criador de fox-terrier que se prezasse, a cada salto a aproximavam, contrariando a natureza, da lebre que tentava escapar. Certamente o terreno aberto e em declive também a auxiliava. Quando o perseguido alcançou a vereda, bem próximo dos pés do casal e com um grande salto atravessou a urtiga espessa que crescia à margem do caminho, nervosa a mulher deu um grito; apenas um salto separava o focinho da cachorra do rabo curto e enrijecido da lebre; o cheiro de pele crua de seu corpo excitado atingiu-os em cheio. Com um movimento brando e apaziguador o engenheiro segurou a mão da mulher.
      - Não tenha medo - disse -, essa é uma lebre velha e experiente; a cachorra não a alcançará.
      O único herói desta história é uma cachorra totalmente imprestável à sociedade, um artigo de luxo; os Ancsa são meros acessórios, dela participando como coadjuvantes. Assim, não seria nossa tarefa a descrição minuciosa dos estados de alma do engenheiro. Apesar disso, devemos observar que o espírito masculino de Ancsa estava animado por dois sentimentos opostos: de um lado pelo desejo humanitário de que a paz espiritual de sua meiga esposa não fosse comprometida com a visão sangrenta da lebre estrangulada, e do outro pelo desejo selvagem que subia de suas entranhas, de que o caçador alcançasse a caça, atirasse-se à sua garganta, derrubasse-a no chão, cravasse os dentes em sua garganta extertorante e lambesse com a língua vermelha o sangue que escoava da boca do animal derrotado, mantendo sobre seu cadáver as patas dianteiras. Naturalmente, esse incivilizado desejo masculino passou-lhe pela alma apenas por um instante, quase despercebido, e de qualquer modo sem efeito e conseqüência sobre seu comportamento moral, o que aliás se comprova pelo fato de que no momento em que a lebre, bem em frente de seus pés, atravessou com um pulo a urtiga e num piscar de olhos desapareceu numa cavidade, ele, de certo aliviado, por duas vezes apertou impetuosamente as mãos da esposa.
      Como era de esperar, sua profecia de que a cachorra jovem não venceria a velha e experiente lebre se cumpriu. Apesar de ter continuado ainda por algum tempo a corrida dos dois graciosos animais, com movimentos tão belos c harmônicos que em vez de uma luta séria de vida ou morte pareciam um balé didático. Mas algum tempo depois a lebre obteve de súbito tão larga vantagem que se tornou difícil a cachorra alcançá-la. Ao chegar à margem de urna mata fechada ela repentinamente deu meia-volta, passando pela cachorra que corria na direção oposta e não pôde frear a tempo, depois deu um grande salto arqueado e sumiu entre os arbustos. Apesar de se ouvir ainda por um bom tempo, cada vez mais longe, o latido irritado de Niki, que tinha se posto a persegui-la, aparentemente o ágil animalzinho manhoso foi mais vivo que a cachorra tola, Só depois de uma boa meia hora Niki voltou a se juntar ao casal, ofegante, a língua estirada para fora, mancando numa das patas traseiras, tendo na cara branca uma expressão abobada devido ao insucesso.
      Mas o seu mal humor envergonhado, que poderíamos chamar mais corretamente de abatimento físico e espiritual, não durou muito. Em não mais que alguns minutos, ela extraiu das reservas infinitas da sua juventude tanta alegria física e espiritual que a pradaria parecia ter se animado à sua volta, como se todo seu pequeno mundo, cada partícula viva quisesse participar de uma brincadeira com Niki. Aqui um cintilante rabo de lagartixa cor de esmeralda levava-a a se arrastar consigo o narizinho negro que farejava impetuosamente, mais adiante uma libélula num vôo rasante a fazia saltar no ar e à visão de uma abelha suas orelhas esvoaçantes se empinavam. O vento quente da tarde de verão ora lhe desgrenhava os pêlos do rabo ora soprava direto para dentro de sua boca aberta, bem embaixo da língua que suava profusamente. Uma abelha desenhava círculos diante de seu nariz, e zombeteira, com um jazz suave levava-lhe o queixo a uma dança entremeada de estalos ferozes. Depois, fez-se silêncio, um tórrido silêncio de verão, onde se podia ouvir até mesmo o deslizar das sombras pelo gramado, e nesse silêncio soou uma voz, inaudível para o ouvido humano, fazendo a cachorra parar de repente, eriçar os pêlos e emitir um ganido dolente, longo e gutural, que lhe saía da garganta como se fosse a escala cromática da própria morte. A mulher olhou-a assustada. Mas no instante seguinte a cachorra já havia retomado à sua juventude confiante e saltando obliquamente, à moda dos bodes, pôs-se a perseguir um besouro que acabara de levantar vôo tal qual um helicóptero.
      A saúde sempre nos seduz, mesmo que apareça da forma mais trivial. A história de Niki na realidade não é nada além de uma narrativa precisa sobre a saúde. I Estamos agora naquele período de sua vida em que a graça da juventude complementa a saúde, já de si bela, e em que nos agrada justamente aquilo que está por se manifestar: a perfeição madura do corpo e do espírito, ainda por vir. Os movimentos excessivos e desajeitados que ao errarem o alvo nos fazem rir, a curiosidade ávida com que enfia o nariz em todos os buracos e de onde às vezes o retira assustada, espirrando, a timidez que dura apenas um momento, a deselegância e o desalinho que são garantias da uniformidade e da força que ela ainda terá, tudo isso faz sentir-nos tão alegres e confiantes que provavelmente convenceria mesmo a experiente e amargurada velhice do absurdo de seu choro convulsivo de profeta. O calor da tarde de verão, que agora se aproximava do crepúsculo, mergulhou em cores fortes reflexas a paisagem acidentada da região e fez crescer bastante a saudável vontade de viver da jovem cachorra. Ela matou a sede numa nascente, lambendo e sorvendo ruidosamente; de sua barbinha pingava cintilante a água fresca. Deu alguns latidos fracos para a água, como se quisesse manifestar sua satisfação. Uma brisa fresquinha vinda do cimo da montanha agitou as folhas externas dos arbustos; Niki parou, a cabeça pendida para o lado, aguçou os ouvidos e então latiu para as folhas. Olhou, examinou tudo; seu musculoso e incansável corpinho não sossegou um só segundo, e se às vezes ela parava por um instante e auscultava o mundo, mantendo enquanto isso uma das patas dianteiras graciosamente erguida, suas pequenas narinas fuliginosas se movimentavam tão agitadas e rápidas como se quisessem inventariar todos os odores e fragrâncias da região montanhosa. Era bem patente que ela se comprazia com a vida,
      O engenheiro também se sentia bem. Atravessava um período de vida comparável ao da jovem cachorra, na medida em que apesar dos cabelos grisalhos, e mais da calvice, vinha fazendo sucessivas descobertas sobre o mundo relevantes não só do ponto de vista de sua própria edificação como também do proveito que traziam para os que o cercavam. O trabalho o satisfazia, e apesar de deparar com inúmeras dificuldades técnicas e obstáculos emocionais ainda maiores, seu tranqüilo entusiasmo masculino crescia com a complexidade da tarefa. A construção da nova sociedade estimulava-lhe por igual a inventiva de engenheiro e o humanitarismo.

      A evidente felicidade de Niki também alimentava sua satisfação. Ele observava sorridente o espernear brincalhão e frenético do animal. Quando tomaram o rumo de casa chamou-a com um assobio. Pela primeira vez em sua vida! A cachorra, que estava caçando no longínquo cume, parou imediatamente e com as pernas enrijecidas, a cabeça tombada de lado, olhou para baixo, para o caminho que serpeava o vale. Ao ouvir o segundo assobio já se pôs a correr atropeladamente, terminando a corrida num salto de alegria selvagem que quase derrubou o engenheiro. Apaziguador, ele pôs a mão em sua cabeça e chamou o animal pelo nome. Um agradecido olhar que veio lá de baixo em resposta ao engenheiro, descansando longamente em seu rosto, encerrou, como um sentimental acorde final, esse bonito passeio de uma tarde de verão.
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Extraído do romance: DÉRY, Tibor. Niki, a história de um cão. São Paulo, Editora Veredas, 2002. p. 18-31.

Nota:
(1) Revolução de 1919. Com idéias semelhantes as da Revolução de 1917 na Rússia, teve duração efêmera, apenas de alguns meses.

 

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O Cachorro

Moreira Campos

Ora, o diabo do cachorro me estragou o resto da tarde! Havia bem dois meses que não nos víamos. Eu vinha pela calçada do mercado quando ele me avistou, e foi uma festa! Atirou-se contra mim, patas erguidas, o rabo parecia um espanador, porque ele é felpudo. Segurei-o pelas orelhas, apertando-lhe a cabeça com ternura, como sempre fiz. Isso como que o enlouqueceu: eram os amigos que se reencontravam. Talvez há muito tempo fizesse a si mesmo esta pergunta: “Aonde ele anda?” Embaraçava-se nas minhas pernas, correu até a esquina, onde levantou a perna e urinou, claro de alegria: uma inocência de criança. Não me deixou mais, vinha ao meu lado.

     A dona dele é Marta. Criou-o desde pequeno, como me disse. Recebeu-o numa caixa de papelão e lhe dava o leite na mamadeira, ela ou a preta Nicota.

     Namorei Marta quase um ano. Menina tranquila, interessante, bem feita de pernas. Nasceu para ser mãe, tudo nela fala de maternidade, até a maneira como agarrava Japi, agarrando-o nos braços e deixando que ele lambesse o rosto. Namoro de janela. Depois passamos a freqüentar o banco da pracinha, porque as diversões aqui são poucas, o próprio cinema fechou. Japi nos acompanhava. Às vezes, Marta o prendia em casa, mas ele pulava a janela. Com o tempo, também me anunciava de longe. Evidente que Marta sabia a hora da minha chegada: daria os últimos retoques, a gota de perfume atrás das orelhas bem feitas, muito coladas à cabeça. Mas Japi dava o sinal: latia na porta, vinha ao meu encontro, acompanhava-me.

     Os pais de Marta aprovavam o namoro. Sou o funcionário novo do Banco. Fazia o segundo ano de Direito na capital, mas preferi o concurso do Banco e me designaram para o interior. O cumprimento respeitoso do pai de Marta, um bater de cabeça. Homem calado, sério. E funcionário público: dirige o posto fiscal. Um dia apertou-me a mão ali na janela. A mãe de Marta, muito simpática. O riso manso, grande ternura pela filha única, que ela discretamente examinava para saber se se preparava bem para receber-me.

     - Eu gosto mais daquela blusinha de gola alta.

     Marta tinha, e tem, independência:

     - Não, esta está bem.

     Ela própria me contava essas coisas, rindo.

     Eu já seria de dentro de casa. Em dia de folga, um domingo ou feriado, Nicota me trazia na bandeja a fatia de bolo, com o copo de refresco e o pequeno guardanapo em bico de renda, que eu apreciava. Requintes da mãe de Marta, dona Dadá, porque Nicota, por ela mesma, é preta velha solta dentro do vestido, um pé na chinela. Dona Dadá é admirável em trabalhos de agulha, bordados. Verdadeiras filigranas. O pai de Marta, Seu Alfredo, já brincava com a filha na minha presença e me indagava dos  negócios no Banco.

     Tive a desconfiança de que a mãe de Marta cuidava, com antecipação, de alguma peça do enxoval para a filha. Digo isso porque um dia surpreendi as duas na loja do Seu Eurico, e ambas se vexaram. Dona Dadá se explicava:

     - Ando aqui atrás de umas linhas.

     - Sei, sei.

     Acontece que apareceu Denise, na época das férias. Estuda em colégio de freiras na Capital e é filha do prefeito Aniceto, quase dono do município, com duas ou três fazendas por aí. Ele e o gerente do Banco são bons amigos. Tomam café no gabinete, riem, o gerente o acompanha até a porta.

             Denise é deliciosa. Em toda ela uma exuberância de interna que se libertou das freiras. A pele alva, os cabelos negros. Os olhos fogem, enquanto finge examinar o esmalte das unhas. Foi assim que a vi e conversei com ela em noite de retreta. Os encontros se repetiram. Apareço na janela de sua casa, que é uma casa grande na esquina, com varandas, ou passeamos pela calçada até o fim da outra rua, que é lugar calmo e deserto, a lâmpada do poste queimada. A mãe de Denise, também muito simpática. O prefeito sempre me atirou a mão de longe, expansivo.

     Denise me disse que não quer mais voltar para o colégio.

Foi difícil afastar-me de Marta. Pouparei detalhes. Houve a necessidade de mentiras e desculpas. Vexames. Tenho sabido que ela se nega a falar até com as amigas. Tranca-se no quarto. Em verdade, auxiliou-me muito a sua própria dignidade. O pai me evita. Quando me vê, torce caminho. Também faço o mesmo. E quando isso não é possível, passamos um pelo outro de olhos no chão, eu fingindo olhar os meus sapatos.

     Elvira, a amiga mais chegada de Marta, diz na pracinha que eu sou um “canalha”.

     - Deixa pra lá!

     E agora me aparece o diabo desse cachorro! A mesma alegria de sempre. Conversa! Alegria bem maior, imensa. Descobriu-me. Corre à minha frente, volta, gruda-se, acompanha-me os passos pela calçada que me leva à minha pensão. Pára de repente: parece estranhar tudo, como se quisesse dizer que a rua e a casa eram outras.

     Já na porta da pensão, termino por aborrecer-me. Enxoto-o, grito:

     - Vá embora! Vá embora!

     Ele permanece. Insisto:

     - Vá embora!

     Olha-me, baixa a cabeça e, por fim, toma o seu caminho. Acabo de limpar com o lenço, que trago sempre perfumado, o resto de lama que as suas pequenas patas deixaram nas minhas calças e entro na pensão. Pensão medíocre, anônima, onde, já aquela hora, os seres comem em silêncio, debruçados sobre os pratos.

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Fonte: CAMPOS, José Maria Moreira. Dizem que os cães vêem coisas. Fortaleza: Edições UFC, 1987.

 

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         O Vigilante Rodoviário

 

                                                                         João Labrador

 

      Como os menores de 50 anos dificilmente saberão quem foi o Vigilante Rodoviário, é preciso que se fale a respeito para que a história permaneça no "no ar". Trata-se do primeiro seriado de televisão apresentado pela TV Tupi nos anos 1961 e 1962, com direção e roteiro de Ary Fernandes e participação de Alfredo Palácios. A série foi vencedora do prêmio Roquete Pinto de melhor filme para TV em 1962.

     A bordo de sua moto Harley-Davidson ou de seu Simca Chambord, o Vigilante Rodoviário Carlos enfrentava todos os tipos de criminosos. Em seu trabalho, o vigilante era acompanhado pelo pastor alemão Lobo (King, morto em 1971 com 15 anos). Um cachorro muito esperto no combate ao crime, cuja missão era manter a lei nas rodovias de São Paulo. Era uma dupla que transmitia muita simpatia, inspirando proteção e segurança, além de veicular mensagens educativas. A série, patrocinada pela Nestlé, teve apenas 36 capítulos, mas fez tanto sucesso junto ao público infanto-juvenil (e adulto também) que até hoje existem fãs do herói espalhado pelo Brasil. Ainda em 1961, o sucesso do programa foi alargado para o gibi O Vigilante Rodoviário, da editora Outubro. Foi uma das primeiras histórias em quadrinhos inteiramente brasileira, ilustrada por Flavio Colin e Oswaldo Talo, com roteiro de Gedeone Malagola, seguindo o mesmo curso do seriado na TV.   

       Mais de 200 atores se candidataram ao papel do herói no piloto da série, mas nenhum agradou ao produtor e diretor Ary Fernandes. Até que num momento de desespero, resolveu testar um de seus assistentes de produção, Carlos Miranda. O resultado foi melhor que o esperado. O ator fez tanto sucesso, foi tão convincente e ficou tão marcado pelo papel que quando abandonou a carreira artística tomou-se um vigilante rodoviário na vida real até se aposentar como tenente da Polícia Rodoviária.

       Muitas foram as dificuldades enfrentadas pela produção da série idealizada para concorrer com os enlatados americanos. A equipe não tinha dinheiro para comprar os negativos de uma só vez, pois recebiam o apoio financeiro após a exibição de cada capítulo. Assim, iam comprando na Kodak aos poucos. As dificuldades eram muitas: não havia vídeo-tape, as filmagens eram feitas em filmes de 35mm, copiadas, montadas, dubladas e reproduzidas em 16 mm para serem transmitidas pela TV. Para piorar as coisas, três dias após a assinatura do contrato com a NestIé, Jânio Quadros assume a Presidência da República e taxou todos os produtos importados em 400%. Com isso a verba da Nestlé já não era suficiente, uma vez que a maioria dos materiais eram importados, inclusive o filme. Nesta época já havia inflação e o valor do contrato era fixo. Mesmo assim o projeto seguiu por mais um ano.

      O seriado terminou, por falta de dinheiro, quando mudou a Diretoria da Nestlé, que não quis arcar com os custos para dar continuidade à série, que custava dez vezes mais que as produções estrangeiras. Passados mais de 20 anos, o Curso de Cinema da UFF-Universidade Federal Fluminense filmou O Vigilante Rodoviário, um curta de 16mm com 36 minutos de duração. O filme teve a direção de Felipe Borges, Flavio Candido e Paulo Pepê Halm e foi patrocinado pelo DNER-Departamento Nacional de Estradas de Rodagem. Mais tarde, em janeiro de 2001, o tenente-coronel aposentado Carlos Miranda foi contratado pela Prefeitura de Rio Claro (SP) para iniciar um serviço de consultoria com o objetivo de reduzir o alto índice de acidentes de trânsito na área urbana da cidade.

 

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