A FRONTEIRA ONDE JORGE LUIS BORGES ENCONTRA O BRASIL
- vestígios de uma travessia -
Carmen Maria Serralta
Este texto surgiu atendendo a um amável e honroso convite da senhora Marlene T. C. R. Pedroso, presidente da Academia Santanense de Letras, para duas palestras na cidade de Sant’Ana do Livramento. A primeira teve lugar na sede da Academia Santanense de Letras dirigida a seus membros e, a segunda, aberta ao público em geral, realizou-se um ano depois na Prefeitura Municipal de Livramento, no dia 08 de maio de 2008. Ambas versaram sobre o escritor argentino Jorge Luis Borges. Embora algo mais tenha sido acrescentado ao exposto nas duas ocasiões, não houve modificação essencial quanto ao assunto. É provável que o escrito ora apresentado esteja demasiado preso ao registro inicial de oralidade. Ainda assim, mantenho o formato de conversa, que tive com o público muito especial de minha terra: o da fronteira Sant’Ana do Livramento – Rivera. O que agora apresento é o resultado, pois, dos dois encontros. Meu tema se focalizou então, em notas e comentários a respeito não só da notável vinda de Borges até nossa fronteira em janeiro de 1934, como também nos vestígios por ela deixados no Borges biográfico e no ficcionista, baseados em informações oferecidas principalmente pelo próprio autor, como se verá.
Todas as traduções ao português são minhas e foram realizadas exclusivamente para aquelas palestras, as de terceiros foram e serão devidamente indicadas.
É, sobretudo, na qualidade de antiga e fiel leitora de Borges que me apresento diante de vocês para uma conversa que quer ser o mais à vontade possível. É meu desejo assinalar alguns aspectos que parecem relevantes quando de sua passagem pelos campos da região noroeste do Uruguai - espaço próximo e em parte contíguo à linha de fronteira com o Brasil - até desembocar na significativa visita a nossa cidade. O assunto é, pois, Borges - o homem e o escritor - na fronteira Brasil-Uruguai. Desejo ainda esclarecer que não tenho nem a pretensão nem a intenção de fazer qualquer análise crítica do trabalho literário do escritor. Isso cabe, e tem sido feito exaustivamente com altíssima competência por críticos, pensadores e escritores do mundo inteiro. Tentarei, portanto, me restringir ao tema proposto. Antes, porém, gostaria de lembrar alguns dados, ainda que sucintos, de sua vida e obra.
Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Suarez nasceu em Buenos Aires - na casa de seus avós maternos – em um frio 24 de agosto de 1899, e faleceu ao amanhecer (na hora em que “a luz risca o ar”) do sábado 14 de junho de 1986, em Genebra – uma de suas, por ele assim chamadas, cidades. Borges está mundialmente consagrado como um dos maiores escritores do século XX, sendo já considerado um clássico da literatura ocidental, isto é, alguém que criou não somente uma obra, mas sim um universo - um sistema literário. Assim como o rei Midas da mitologia grega convertia tudo o que tocava em ouro, Borges transmudou toda sorte de criação humana (doutrinas religiosas, filosofia, cosmogonias, etc.) em literatura. Tudo, para ele, era passível de tornar-se matéria ficcional: do hinduísmo à cabala judaica; de certos dogmas do cristianismo à teologia; do budismo aos mitos clássicos, e aí por diante. O mundo, o universo, o próprio homem, a realidade toda, em suma, como que lhe servia de pretexto – pré-texto – para a criação de seu próprio texto literário.
Borges foi contista, ensaísta, poeta e, a partir de 1946, em razão de um sério contratempo motivado por questões políticas - episódio que será lembrado mais adiante - também foi conferencista. Não se pode esquecer, portanto, que existe um brilhante Borges oral, desdobrado em entrevistas, reportagens, diálogos e conversas. Ele foi o que se usa chamar em francês, um grande causeur: alguém que fala bem e tem o gosto da conversação. Muitas dessas entrevistas e conversas – algumas nascidas para serem publicadas em livros – acrescentam valiosas informações à sua obra, ao seu pensamento e a aspectos de sua vida. Em geral, são opiniões expressas de modo informal e espontâneo, às vezes com respostas irônicas, sobretudo em matéria política quando provocado por algum entrevistador inconveniente, embora ele soubesse isso lhe iria custar violentas críticas. Do contrário, respondia de bom grado e simpatia a qualquer assunto perguntado, contanto que lhe interessasse. Valho-me desse rico material para lhes passar informações interessantes ao tema que agora nos ocupa. Isso explicaria, mas talvez não chegue a me eximir, do uso e abuso premeditado que faço de citações.
Sob certo aspecto, acho até que na mera condição de leitora, mantenho-me bastante próxima ao nosso autor, já que ele preferia se reconhecer em primeiríssimo lugar como leitor, depois como poeta e, por último, como escritor de narrativas. Lembro, a propósito, esta confissão sua em poema: “outros que se vangloriem dos livros que escreveram, eu, orgulho-me dos livros que li” (1) . E ainda: “dediquei uma parte de minha vida às letras, e creio que uma forma de felicidade é a leitura; outra forma de felicidade menor é a poética, ou o que chamamos criação, que é uma mescla de esquecimento e de recordação do que lemos” (2).
Mas, retomando o nosso tema, foi em Sant’Ana que Borges viveu uma experiência nova e estranha e, sem dúvida, marcante - aqui ele assistiu pela primeira vez à morte de um homem em um café, com dois tiros, à queima-roupa. E para usar suas palavras: “lá vi matar a um homem perto de mim e esse fato me impressionou muito” (3) . Interessa também, a viagem - travessia pelos campos do norte uruguaio, campos lindeiros e similares aos da campanha santanense – em razão das inesquecíveis impressões deixadas em sua pessoa e aludidas em alguns celebrados contos seus. Borges estava, na época em que viajou até a fronteira Rivera-Livramento, passando uma temporada de verão na casa de uma prima sua, Esther Haedo, na cidade de Salto no Uruguai. Essa prima era casada com o escritor uruguaio Enrique Amorim. De lá, e sempre com Amorim, foi Borges até a estância do mesmo anfitrião, localizada no departamento (noção equivalente a município) de Tacuarembó. Naquela região Borges viveu “experiências inéditas oferecidas pela gauchada: violência cotidiana, um agressivo primitivismo anacrônico” (...) (4), uma realidade, enfim, diferente das que estava acostumado a conviver. Da fazenda, rumaram então até as cidades gêmeas de Rivera e Sant’Ana do Livramento. Borges comenta, como se verá, a proximidade daqueles campos de Amorim com a fronteira do Brasil na qual não se distinguem os limites. Quanto às duas cidades mencionadas - singulares, indivisas física e naturalmente (como sabem os que aqui habitam) -, não há nenhum acidente geográfico que indique uma separação, apesar de pertencerem a dois países distintos. Essa particularidade também foi destacada pelo próprio Borges em muitas ocasiões.
Sempre que possível, darei a palavra ao escritor, uma vez que ele foi pródigo em entrevistas e conversas a escritores, poetas e jornalistas do mundo todo, não constituindo exceção os fartos comentários a respeito da referida viagem. Além disso, não existe melhor maneira de evocar o acontecimento, e com maior fidelidade, do que ouvi-lo diretamente do autor, sem esquecer, é claro, o prazer oferecido pela leitura de seu texto, mesmo que fragmentado. Somando-se aos depoimentos registrados pelo próprio Borges, possuo mais três que me foram transmitidos oralmente em momentos diversos, os quais serão comentados ao fim dessa conversa.
PARTE I
“Na ordem da literatura como nas outras,
não há ato que não seja coroação de
uma infinita série de causas e fonte
de uma infinita série de efeitos”
(Jorge Luis Borges)
(1) Motivos da Visita
Uma primeira pergunta que se impõe: qual motivo teria tido um dos maiores escritores do século XX para vir até cá, cidade de fronteira, pequena, provinciana, situada no extremo sul do Rio Grande, nos confins do Brasil, e enfrentar uma viagem pelas estradas penosas, poeirentas e quase desertas das paragens campestres naquele longínquo verão de janeiro de 1934?
Em um sentido bem amplo, a causa remota dessa visita pode ser encontrada nos fortes laços afetivos que o uniram ao Uruguai, decorrência do vínculo de parentesco, sobretudo pelo lado materno, sua avó materna era uruguaia (5), nutrido pelo estreito convívio com familiares residentes no vizinho país. Ligação muito intensa na infância, a qual se prolongou regularmente durante mais de oitenta anos (6), tanto quanto no imaginário pessoal, como se verá. E a causa próxima, por assim dizer, deve-se a que Borges era hóspede, como de hábito naqueles tempos, na Villa nas Nuvens propriedade do casal anfitrião - os já nomeados Esther Haedo e Enrique Amorim. Aconteceu que seu anfitrião teve então alguns assuntos a tratar na cidade de Rivera, e Borges o acompanhou numa viagem que, diga-se de passagem, talvez prometesse não mais do que os ingredientes do trivial e do cotidiano.
O ano de 1934 registra mais uma estada de Borges na casa dos mesmos hospedeiros de onde remeteu ao pai correspondências datadas de 13 e 22 de novembro. Na primeira mensagem enviou uma foto da casa dos Amorim assinalando a efígie de uma mulher no parque da casa: “Esse fantasma de mulher que observarás é uma figura de proa num pedestal”; e na segunda, informa estar trabalhando num ensaio sobre Nietszche - seu tema era o tempo infinito e o eterno retorno - o qual avançava “sem inspiração, mas sem demora” e ainda comenta que somente a piscina “mitiga e domestica o verão.” (7) Alguns amigos íntimos de Borges e alguns biógrafos não hesitam em marcar os anos de 33, 34 e seguintes, como bem dolorosos para ele em razão, entre outras, de intensas desilusões amorosas. Ademais, apontam para um amor frustrado, jamais identificado claramente, relacionado com uma mulher possivelmente inglesa, a quem ele dedicou, em inglês, não só a Historia Universal de la Infamia (8) como também dois poemas intitulados Prose Poems for I. J.(9)
Pareceu-me oportuno fazer essas pequenas indicações, embora sem aprofundar o assunto, para melhor situar o escritor em relação ao que o preocupava e/ou ocupava à época em que esteve aqui.
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(2) Causa Próxima
Na verdade, como comentei há pouco, Borges viera de carro desde a cidade de Salto, acompanhando seu anfitrião que tinha assuntos particulares a tratar na vizinha Rivera, onde ficaram ambos hospedados por uns dias. Esther, além de prima, foi a única companheira a participar dos jogos e brincadeiras de infância de Norah, irmã do escritor, e do menino Borges. E foi para Amorim que nosso autor dedicou seu primeiro conto: Hombre de la esquina rosada, publicado na revista Crítica em 1934 e, no ano seguinte, na Historia Universal de la Infâmia. Um dado adicional curioso é o de que fora, por intermédio desse novelista uruguaio, que a Sociedade Argentina de Escritores (SADE) criou (como desagravo por ter-lhe sido negado em 1942, o Prêmio Nacional de Literatura) o Grande Prêmio de Honra (10) para outorgá-lo a Borges no ano de 1944, com Ficciones.
Vale a transcrição parcial de dois prólogos para as edições de 35 e 54 por indicarem o gênero de literatura que manejava Borges na época, bem como uma discreta, mas reveladora confissão de seus sentimentos quando escreveu Historia Universal de la Infâmia, omitida na primeira edição. Pois, como se sabe, quando a ferida sangra é difícil falar nela, ainda mais em se tratando de homem tímido e recatado. No prólogo para a edição de 35 escreve: “Os exercícios de prosa narrativa que integram este livro foram executados de 1933 a 1934. (...) Abusam de alguns procedimentos: as enumerações díspares, a brusca solução de continuidade, a redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas. (Esse propósito visual rege também o conto Hombre de la Esquina Rosada). Não são, não tratam de ser, psicológicos”. No prólogo à reedição de 1954 afirma: “Já o excessivo título destas páginas proclama sua natureza barroca. Atenuá-las equivaleria a destruí-las; por isso prefiro, desta vez, invocar a sentença quod scripsi, scripsi (João, 19, 22) e reimprimi-las, ao cabo de vinte anos, tal qual. São o irresponsável jogo de um tímido que não se animou a escrever contos e que se distraiu em falsear e alterar algumas vezes sem justificação estética, histórias alheias. Desses ambíguos exercícios passou à laboriosa composição de um conto direto – Hombre de la Esquina Rosada. (...) O homem que o executou era bastante infeliz, mas se entreteve escrevendo-o; tomara que algum reflexo daquele prazer alcance alguns leitores”.
Seria bom lembrar que Borges, em 1934, com trinta e poucos anos - época em que visitava com assiduidade seus parentes no Uruguai -, estava longe da consagração mundial que conheceu nos anos sessenta, e do mito que se tornaria lá por 1970. Longe, portanto, dos compromissos impostos pela fama que dele fizeram o que os antropólogos definem como herói cultural – aquela figura mítica ou real que representa uma entidade muito importante para sua comunidade. No caso, é evidente, a comunidade intelectual ocidental.
O que eventualmente poderá instigar a curiosidade das pessoas que desconhecem o elo mantido desde sempre pela família Borges com esse país do Prata, e também dos que ignoram a situação particular de simbiose existente entre as cidades de Sant’Ana do Livramento e Rivera, é o fato de o escritor, tão aclamado internacionalmente, ter “escolhido” um recanto do Rio Grande do Sul, rural, fronteiriço e interiorano como porta de entrada para o Brasil. Na realidade, mais parece ter sido ele “escolhido” pelas circunstâncias do que o contrário. Sua vinda foi: casual. O motivo: banal (acompanhar o amigo). Sua visita: aleatória.
Mais duas vezes veio o escritor argentino ao nosso país, passagens rápidas e, a meu ver, menos significativas do que aquela primeira de 1934, como atesta o grande número de comentários concedidos pelo próprio Borges a amigos e entrevistadores de todo o canto do mundo e ao longo de toda sua vida - em que somente faz, até onde sei, referência à vinda a Sant’Ana do Livramento. A segunda visita ao Brasil aconteceu em 1970, quando recebeu em São Paulo o prêmio Matarazzo Sobrinho oferecido pela Fundação Bienal. E a terceira foi assim comentada: “Da segunda passagem (grifo meu) pelo Brasil, em 1984, restou um belo livro-homenagem Borges no Brasil, organizado por Jorge Schwartz, no qual o leitor pode encontrar vários cruzamentos que a literatura brasileira estabeleceu com um dos maiores escritores do século XX” (11). Se em lugar de Brasil tivesse sido nomeada a cidade de São Paulo, nada haveria a acrescentar quanto ao registro do número de estadas do famoso autor no Brasil. Pelo visto, parte da intelligentsia brasileira desconhece a vinda de Borges ao sul do país. Exceção feita a uma matéria publicada na revista Piauí, (12) “Três encontros com Borges”, (13) de autoria de Pedro Correia do Lago. Ao longo da conversa com o escritor argentino, aponta Lago: “[Borges] Repetiu-me o que vim a ler mais tarde em muitas outras entrevistas concedidas a brasileiros: lera e admirava Os Sertões, de Euclides da Cunha, e fora em Santana do Livramento que vira pela primeira vez matar um homem (grifo meu). Perguntei-lhe por que em seus contos as más notícias, frequentemente, vinham do Brasil. Não adiantou: ele só falou do que queria”.
Uma provável resposta à pergunta formulada pelo entrevistador poderia, quem sabe, ser encontrada nas impressões experimentadas e descritas posteriormente pelo autor na travessia pelos campos da fronteira uruguaia com o Brasil e, também, no fato surpreendente e insólito de haver ele assistido num café em nossa Sant’Ana do Livramento ao assassinato de um homem. Aliás, esse foi um acontecimento inesquecível tanto para o ficcionista quanto para a sua pessoa, para os dois Borges, a saber, o homem comum, pessoa do cotidiano [o eu] e o outro, a persona poética, o eu poético, imaginário e imaginante. A esse duplo que ele mesmo nomeia em página antológica de 1960,
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(3) Conversações com o escritor - Borges conta a viagem
3.1 Para María Esther Vázquez
Maria Esther Vázquez conheceu Borges em 1957, e da relação de amizade que se seguiu nasceram muitos trabalhos conjuntos, entre os quais: “Introdução à literatura inglesa” e “Literaturas germânicas medievais”. No livro Borges Esplendor y Derrota (14), no capítulo com o subtítulo Nas Nuvens, é narrada com detalhes a vinda do escritor até nossa fronteira. Vale a longa citação porque reproduz com fidelidade muitas outras que relatam com quase idênticas palavras a viagem em questão:
3.2 Para Roberto Alifano
Um relato dos acontecimentos da viagem de 1934 é feito por Borges a Alifano, amigo pessoal, companheiro de viagem e colaborador em traduções de R.L. Stevenson e Hermann Hesse. No livro Borges, Biografia Verbal, o escritor explica como lhe surgiu a ideia de escrever o conto El Muerto:
3.3 Para Carlos Peralta
Em 1964 em Paris, Borges concede a Peralta uma entrevista em francês, L’électricité des Mots, na qual narra em tom bem coloquial, a mesma cena da morte do homem:
3.4 Para os Commentaries no The Aleph and Other Stories
Nos “Comentários” para o conto “O Morto” no “O Aleph e Outras Histórias” (17) lê-se a impressão que lhe causou a viagem pelo norte do Uruguai, beirando a fronteira brasileira:
Borges, até janeiro de 1934, jamais tinha tido experiências de violências pessoais. A violência era ainda um componente narrativo como os da História Universal da Infâmia. A fascinação pelas brigas de punhal, faca, as lutas de espada, e a participação que ele via épica de seus antepassados - nas guerras pela independência sul-americana, nas guerras civis, no cerco de Montevidéu, onde um avô seu então muito jovem, com quinze anos, a defendeu contra Oribe (aliado do ditador Rosas) - faziam parte de sua mitologia particular. No Autobiographical notes, o escritor argentino conta que tem antepassados militares e isso talvez explique sua nostalgia de um destino épico que as divindades lhe negaram, sem dúvida sabiamente.
Por contraste, a morte de que foi testemunha em Sant’Ana – arbitrária e bárbara, – agregada à novidade de um primitivismo humano anacrônico, já antes observado por ele na região da campanha, não somente impressionaram o visitante Borges como deixaram reflexos em vários contos seus, apontados como se viu há pouco por María Esther Vázquez, entre outros.
Uma viagem que prometia ser corriqueira, quem sabe até monótona e desinteressante, acabou sendo uma experiência que lhe revelou, de maneira insuspeitada, uma realidade de vida gauchesca diferente, tanto da realidade familiar da sua Argentina natal como da sua também conhecida região sul do Uruguai. Enquanto Borges percorria aqueles campos do norte uruguaio, vizinhos à fronteira brasileira, sentiu uma forte impressão de anacronismo – como se o tempo houvesse se anulado e o passado estivesse se perpetuando no presente. E, alguns dias depois, para culminar aquela sensação de primitivismo, ele assiste, por puro acaso, num café do lado de cá, a brutal cena da queda de um corpo morto, após o inesperado disparo de dois tiros. A vida própria e alheia valiam tão pouco que se matava por uma irritação casual e momentânea; às vezes por menos. (19)
Não se pode esquecer nem minimizar o fato de o escritor conhecer a fundo o tempo histórico da época descrita por Sarmiento em seu livro clássico Facundo. Tempos do famoso conflito argentino entre “civilização e barbárie”. Por isso não é difícil imaginar que Borges, ao “presenciar” de forma concreta e surpreendente, a barbárie reencarnada nos gaúchos avistados na vasta extensão daqueles campos, tenha tido a sensação de reatualização de um passado remoto, de revivência do choque entre “civilização e barbárie” que marcou também, e muito, sua história particular familiar. Para reforçar a impressão de cenas que lhe evocavam aqueles tempos violentos, ele constata, não sem assombro, a impunidade do assassino, “intocável para a justiça”, comprovada por ele e Amorim no dia seguinte e no mesmo local. Lá o assassino “tomava um trago” ou “jogava cartas”- variantes do episódio –, fato que, certamente, veio realimentar a impressão de uma viagem ao passado, tantas vezes por ele assim lembrada. Além disso, só com o passar do tempo, Borges chegou a se dar conta de que aquelas terras “fronteiriças e selvagens o haviam impressionado ‘muito mais que todos os reinos do mundo e sua glória’”.(20)
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Essa foi a porta - nada estreita - pela qual Jorge Luis Borges entrou pela primeira vez no Brasil. E, tal acontecimento se deu - busco usar suas palavras, mesmo pertencendo a outro contexto - devido a uma inusitada trama de circunstâncias e a uma intrincada concatenação de causas e efeitos. Aliás, esse tema de uma armação de causas e efeitos, cujo sentido escapa aos seres humanos e determina possibilidades infinitas de conseqüências, é um motivo recorrente em Borges.
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(4) Causa Remota
Pinço, quase ao acaso, alguns exemplos que demonstram a familiaridade de nosso autor com o país vizinho. Esse convívio íntimo lhe chegou desde a mais tenra idade, sustentado pelas frequentes viagens realizadas a esse país do Prata pela família Borges - pai, mãe e irmã - especialmente no verão, época de férias do pai. Periodicidade, a rigor, jamais interrompida. Penso, já, nas palavras com que o escritor abre sua autobiografia: “Não posso precisar se minhas primeiras lembranças remontam à margem oriental ou ocidental do turvo e lento rio da Prata; se me vem de Montevidéu, onde passávamos longas e ociosas férias na chácara de meu tio Francisco Haedo, ou de Buenos Aires”. Também me ocorre a intensa e comovente dedicatória a Leonor Acevedo de Borges (21), na qual o filho lhe agradece, entre outros bens recebidos, “as manhãs del Paso del Molino”, antigo bairro montevideano. Por esse viés, pode-se vislumbrar a causa remota, isto é, a causa invisível, do complexo e imprevisível concurso de circunstâncias que o trouxe até a nossa cidade e o fez testemunha acidental da morte de um homem.
No livro Borges, sus dias y su tiempo, o escritor, respondendo à pergunta sobre suas primeiras lembranças da irmã Norah, confidencia:
Ao responder a Cezar Fernández Moreno pelas lembranças da infância, em Farto dos labirintos, (22) diz:
Fernández Moreno insiste: “Me impressionou isso que você disse no começo sobre não saber diferenciar bem entre os dois lados, oriental e ocidental, do Rio da Prata.” Ao que Borges responde: “Isso também corresponde ao meu sangue, também por meu avô (23) ... Além disso, vejo os dois [lados] tão unidos”.
O interlocutor prossegue: “Poderia distinguir na sua personalidade elementos uruguaios e argentinos, elementos orientais e ocidentais? São muito parecidos? Você não encontra nenhum matiz de diferença?”
Borges bem-humorado, entre jocoso e sério, responde:
Na mesma entrevista, Fernández faz notar ao escritor que certa vez ele havia dito que o Paisano Aguilar, de Enrique Amorim, era melhor que Dom Segundo Sombra, de Leopoldo Lugones.
Em um encontro organizado por Orlando Barone entre Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato, no livro Diálogos, a certa altura, este diz: “Todos os países são mais ou menos imaginários. Quem sabe seu Uruguai, Borges”. Borges assente e parece buscar algo com seus olhos, faz uma longa pausa e diz: “Está feito de lembranças minhas da infância. Sim, é um Uruguai imaginário. Mas também meu Buenos Aires. Apenas terei percorrido uma vez ou outra, três ou quatro bairros”. (24)
No livro Genio y Figura de Jorge Luis Borges, de Alicia Jurado, amiga, escritora e parceira em Que es el budismo, estão, mais uma vez, narradas suas vivências da infância:
Na vida adulta, à época da ditadura do general Perón, em momentos difíceis para o cidadão e o escritor, o Uruguai desempenhou um papel, no mínimo, solidário. Em 1946, destituído pelo peronismo do cargo de bibliotecário municipal de Buenos Aires e tendo sido nomeado para o ofensivo posto de inspetor de avicultura (aves, frangos, galinhas e coelhos) nas feiras e mercados, e, em outras versões, para a escola de apicultura, Borges renuncia imediatamente à aviltante indicação. Começou a partir daí a viver uma nova fase em sua vida. Desempregado, aos quarenta e sete anos teve de aceitar convites para proferir palestras e conferências. Sendo ele tímido, não lhe foi tarefa fácil. Ouçamo-lo em entrevista a Roberto Alifano:
A roda da fortuna, por ironia da sorte, girou no sentido contrário ao pretendido castigo imposto ao escritor. O ato de destituição da biblioteca lhe deparou um novo caminho mais emocionante que o anterior. Passou não apenas a ganhar mais como conferencista, como também a usufruir do novo trabalho, sentindo-se justificado, segundo confessa para a revista The New Yorker. Caprichos do destino, diz o lugar-comum, no entanto, destino é um outro grande tema borgiano. Na História Universal da Infâmia está escrito: “O destino, tal é o nome que aplicamos à infinita operação incessante de milhares de causas emaranhadas, não o resolveu assim”. (Borges, 1967, p.40)
Curioso rumo dos acontecimentos: a observação feita na narrativa ficcional poderia, anos depois, ser aplicada ao dia-a-dia de nosso autor, particularmente à injuriosa destituição experimentada naquele momento. Curiosa ironia da vida exposta antes na ficção. Aliás, essa mescla entre o real e o fictício é um traço peculiar do escritor Borges. Mais um sugestivo exemplo do jogo das coincidências e das conexões que, de um modo especial, sempre chamou sua atenção. É bom lembrar que a par da idéia de destino corre a de seu reverso: a do acaso. Constituem duas noções formando uma combinação: a do predeterminado e a do imprevisível. Duas faces da mesma moeda. Na introdução aos Nueve ensayos dantescos, lê-se: “O acaso (salvo que não há acaso, o que chamamos acaso é nossa ignorância da complexa maquinaria da causalidade) me fez encontrar três pequenos volumes na livraria Mitchell’s...” (Vázquez, 1996, p. 316).
Para encerrar, uma última referência à ligação de Borges com Montevidéu. Transcrevo um poema, em português, de uma entrevista concedida pelo poeta a Alessandro Porro. Pergunta o jornalista a Borges se naquele momento estava ele escrevendo. “Sim, muito, e com pressa. Tenho pouco tempo. (...) E, além disso, poesia, muita poesia, antes que ‘Ela’ a morte, chegue. ‘Ela’ agora está perto.” A longevidade não é coisa rara em sua família, diz Porro. Sua mãe morreu aos 99 anos. Faz alguns meses, o senhor disse que estava escrevendo um poema pensando nessa chegada. Ao que Borges responde: “Sim, e ficou muito bom. Uma bela página, escute”:
Entre as lembranças da infância e o que exprime o poeta aos 81 anos, passaram-se muitos anos, quase todas as idades... e Montevidéu perdurou em Borges como uma de suas cidades. Uma leitura, agora, de um outro poema seu em “Luna de Enfrente” (segundo livro de poesias datado de 1923) pode ser, nesse sentido, ilustrativa. Transcrevo o poema no original por não me atrever, sem dúvida sabiamente, a traduzir poesia. Não haverá, estou certa, qualquer impedimento à sua leitura em espanhol, uma vez que todo o público aqui presente – gente da nossa fronteira tão singular – a domina ou com ela tem grande familiaridade. Escutemos o jovem poeta então com 24 anos:
Montevideo
Resbalo por tu tarde como el cansancio por la piedad de un declive.
La noche nueva es como un ala sobre tus azoteas.
Eres el Buenos Aires que tuvimos, el que en los años se alejó quietamente.
Eres nuestra y fiestera, como la estrella que duplicará las águas.
Puerta falsa en el tiempo, tus calles miran al pasado más leve.
Claror de donde la manãna nos llega, sobre las dulces águas turbias.
Antes de iluminar mi celosia tu bajo sol bienaventura tus quintas.
Ciudad que se oye como un verso.
Calles con luz de patio.
(Borges, 1974,p. 63)
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(5) Visita dos dois Borges
Desejo ainda, para fechar esta parte da nossa conversa, voltar aos dois Borges a que fiz menção anteriormente: o da persona poética e, o outro, o da pessoa do cotidiano. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o homem Borges viveu na confluência de dois mundos: o da leitura e da imaginação criativa por um lado, e o do mundo real e do homem comum, por outro. Ou para dizer como ele mesmo declara, existe um Borges pessoal, íntimo, que não mudou desde criança, exceto que em criança não sabia se expressar, e, um outro, personagem que muito lhe desagrada, e é o mesmo, só que com gostos e desgostos exagerados. (27) Ao levar em conta que foram os dois que nos visitaram, já que ambos em vida são inseparáveis, fico tentada a ler “Borges e Eu” na íntegra, pela sedução e prazer encontrados nesse texto de múltiplas leituras, aliás, como todo Borges; também por ser revelador do seu eu biográfico e íntimo no cruzamento com sua persona poética.
PARTE II
(6) A fronteira como revelação
Quando Jacques Leenhardt (28) reflete sobre o conceito de fronteira, ele lembra a definição da palavra latina limes – daí limite – e explica que ela é menos uma linha do que um espaço. A limes (o limite) designa um intervalo, uma borda, uma margem sem apropriação, embora possuindo todos os valores políticos, simbólicos e religiosos que, segundo ele, a figura de Hermes da mitologia grega resume. Hermes é o deus protetor das fronteiras, da passagem, da mobilidade, dos acordos, também ladrão de rebanhos e o que está ao lado dos heróis. É ainda, entre outros, um embrulhador de pistas e guia dos viajantes. No mesmo ensaio Leenhardt assinala a sutileza de Borges ao se referir à fronteira: “Quando Jorge Luis Borges tenta figurar a subversão de todos os lugares e de todas as linguagens inventando um universo desconhecido, Tlön, quando ele descreve esse universo paradoxal por meio de suas paisagens e de sua metafísica, ele diz do mensageiro pelo qual a cultura de Tlön foi conhecida uma só coisa: ‘ninguém sabia nada do mensageiro morto senão que vinha da fronteira. ’” Acrescenta - o pensador francês - que a língua desse planeta não pensa o mundo através de substantivos (essências), mas por meio de verbos. Assim é a estrutura do universo de Tlön: ações sem suporte essencial. E Leenhardt volta ao seu conceito de fronteira, às bordas, às franjas sem apropriação, para retomar a definição de limes como caminho entre dois territórios não pertencendo nem a um nem a outro e sim aos dois. É esse o espaço da fronteira - espaços sem substância que dependem (para existir) de um fazer ancorado em uma cultura: pastagens de animais (ovelhas ou vacas) nos campos limítrofes. E conclui: “O limes é esse espaço utópico inteiramente definido por uma prática e não por uma lei”.
Não é difícil imaginar o Borges - enquanto percorria aqueles vastos campos de Tacuarembó - ir sentindo a presença física da fronteira próxima e, ao mesmo tempo, ir enriquecendo-a de mil e uma conotações que, assim me parece, poderiam ser simbolizadas na evocação do multifacetado deus grego. Este jovem deus, mensageiro de Zeus (o soberano dos deuses) é ainda apresentado como mestre das entradas e das técnicas de conjunção e de articulação, unindo a terra e o céu, os vivos e os mortos. Quando o nosso ficcionista-viajante lá divisou uma vida campeira diferente – estranha e selvagem - deixou-se seduzir pelo lugar. Vejamos o que Vázquez nos conta do que ele lhe contou:
Borges biográfico experimentou a vivência da fronteira não só na extensão da planície - horizontalmente vertiginosa - como nas coxilhas e também na cidade. E a partir dessa experiência vívida e vivida transfigurou-a graças ao seu processo criativo, em alguns contos magistrais. Neles, a realidade de fronteira, a nossa, há de persistir aludida e refletida para sempre - ao menos enquanto existirem leitores de Borges – em criações que levam a marca do gênio.
Desde aquele distante verão de 1934, a cidade de Rivera, como bem assinalou o escritor, segue se confundindo com a brasileira Sant’Ana do Livramento. A chamada linha divisória entre os dois países ainda continua sendo, no sentir dos habitantes fronteiriços, mais um espaço aberto do que uma linha de demarcação geopolítica de limites. Quanto aos costumes e usos do homem da nossa região, entrevistos pelo poeta cego, tanto no campo (nos gaúchos barbudos e nas barbas descuidadas) como na cidade (na morte violenta, despótica, impune do infeliz bêbado) - muita coisa mudou de lá para cá. O mundo globalizado do século XXI é definitivamente outro. Nós, definitivamente, outros. Mas a ideia de fronteira como potencializadora de significados permanece tão inesgotável quanto no passado. Acho lícito pensar a fronteira como uma entidade mítica (essa, presumo, ser também a de Borges), tal qual a caatinga de Graciliano Ramos e o sertão de Guimarães Rosa.
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PARTE III
(7) Vestígios de uma travessia
Breves notas sobre alguns contos que de alguma forma aludem ou evocam nossa fronteira. Por ordem de publicação:
7.1 Tlön, Uqbar, Orbis Tertius (Sur-1940; El Jardin de senderos que se bifurcan -1941; Ficciones-1944).
Tlön é um planeta ficcional, Uqbar é também um lugar ficcional, vagamente situado na Ásia Menor, Orbis Tertius vem do latim: orbis o mundo e tertius, terceiro. O conto fala da descoberta de um planeta “labirinto inofensivo, sem um Minotauro à espreita para nos devorar” (Bloom, 2001, p.54) que irá substituir o nosso. Nesse conto ocorrem duas intrusões do mundo fantástico no mundo real. A segunda intrusão, vale notar, aparece na Coxilha Negra – nome de um lugar limítrofe da zona da campanha onde, na realidade, ele e Amorim pernoitaram à época em que atravessaram aquelas largas distâncias. Cito o trecho no qual Borges, aqui como personagem-narrador, fala daquela intrusão:
Não por acaso Borges escolheu como mensageiro de Tlön alguém que “vinha da fronteira”. E suponho, não por acaso, esse jovem mensageiro, encontrado morto de madrugada no corredor, havia alternado durante toda a noite, incompreensíveis insultos com breves períodos de milongas. Lembremos apenas, en passant, que ao inteligente, astucioso Hermes (afora ser o mensageiro de Zeus, como já se viu), os gregos atribuíram a invenção da lira, portanto da música.
Sabe-se que Borges funda na ficção suas próprias regras de verossimilhança, usando muitas vezes como personagens, e é este o caso de Tlön, pessoas reais, tais como ele próprio, amigos e pessoas de seu convívio. Menciona neste conto, entre muitos outros, a Bioy Casares e a Enrique Amorim; nomeia lugares por ele vividos e visitados. Borges nesta obra-mestra literária se apresenta como narrador e nessa condição lembra de uma conversa que tivera com outro personagem sobre o Rio Grande do Sul: “Falamos de vida pastoril, de capangas, da etimologia brasileira da palavra gaucho (que alguns antigos orientais ainda pronunciam gaúcho).” Esta é uma narrativa que se mostra bem topográfica. Nela, quase ao final, está escrito: 1940. Salto Oriental, referindo-se à cidade de Salto, e oriental à República Oriental do Uruguai. São essas algumas das ardilosas estratégias usadas pelo escritor para dissipar a linha divisória entre o mundo real e o da ficção. Borges elimina desse jeito, (tal qual um autêntico homem das nossas fronteiras), os limites entre aqueles dois universos.
Este conto, um dos prediletos do crítico Harold Bloom, foi também escolhido para integrar a coletânea Os melhores contos fantásticos (30) do premiadíssimo Flávio Moreira da Costa - um de nossos grandes escritores contemporâneos, reconhecido como o melhor antologista da língua portuguesa hoje - e ainda, cidadão santanense honorário.
7.2 La forma de la espada (Ficciones - Artificios, 1944)
O narrador conta a história de Vincent Moon, um desprezível e covarde delator na guerra da independência irlandesa e atribui a este uma série de crimes. Ao final, porém, o narrador confessa ser ele o próprio Vincent Moon. “O inglês vinha da fronteira do Rio Grande do Sul; não faltou quem dissesse que no Brasil tinha sido contrabandista” “Saímos, depois de comer, a olhar o céu. Havia desanuviado, mas por trás das coxilhas do sul, sulcado e riscado de relâmpagos, armava-se outra tormenta”. Moon “cobrou os dinheiros de Judas e fugiu para o Brasil”. “Esta é a história que contou, alternando o inglês com o espanhol, e ainda com o português” (31). Percebem-se neste conto cruel, violento, alusões ao cenário fronteiriço: misterioso e ilimitado. O efeito final deste conto é direto e incisivo, atingindo o leitor de forma penetrante como a lâmina afiada de uma faca ou punhal.
7.3 El Muerto (El Aleph, 1949)
Sobre El Muerto comenta Borges para Roberto Alifano (32) : “Prefiro que este conto seja lido como uma espécie de aventura. Acho um exagero tomá-lo como uma alegoria deliberada da vida humana. A alegoria, talvez esteja dada apesar de mim; todos, tal como o pobre Otálora, recebemos as coisas para que no momento de morrer nos sejam arrebatadas”.
Otálora é um compadrito (33), de um subúrbio de Buenos Aires que vai para Montevidéu e de lá segue com Azevedo Bandeira, chefe dos contrabandistas, rumo ao norte do país. O protagonista “resolve suplantar” a Bandeira. No momento em que consegue alcançar tudo o que mais deseja, isto é, o poder do chefe, dormir com sua mulher, montar seu cavalo e usar os seus arreios, é traído e morto pelos companheiros. Ao final, como acontece em outros contos de Borges, o personagem tem a revelação de seu destino – assim como numa tragédia grega. “Otálora compreende, antes de morrer, que desde o princípio o traíram, que foi condenado à morte, que lhe permitiram o amor, o mando e o triunfo, porque já o davam por morto, porque para Bandeira já estava morto”. (34)
O conto está parcialmente ambientado na nossa fronteira. Escolho algumas das muitas menções feitas à citada região: “[Otálora] morreu na sua lei, de um balaço, nos confins do Rio Grande do Sul”. Ele é morto pelo capanga do chefe. “Fala muito pouco e de uma maneira abrasileirada. Otálora não sabe se atribui sua reserva à hostilidade, ao desdém ou à mera barbárie” A respeito do chefe dos contrabandistas, alguém no conto comenta: “Bandeira nasceu do outro lado do Cuareim (35) no Rio Grande do Sul; e isso, que deveria rebaixá-lo, obscuramente o enriquece de selvas populosas, de banhados, de inextricáveis e quase infinitas distâncias”. (36) “Ocorre em campos de Tacuarembó um tiroteio com gente rio-grandense”. O conto traça de modo contundente e esquemático a paisagem humana e geográfica do espaço da fronteira visitada, ainda que a história, e isso pouco importa, esteja situada entre 1891 e 1894.
7.4 La Otra Muerte (El Aleph, 1949)
Borges, no epílogo de El Aleph, escreve: “La Otra Muerte é uma fantasia sobre o tempo que urdi à luz de alguns argumentos de Pier Damiani”. Este conto perfeito é um bom exemplo de um gênero engenhosamente explorado por Borges, no qual ensaio e ficção se misturam formando um amálgama. O conto propõe a idéia de um passado passível de ser modificado e apresenta duas versões alternadas da vida e morte de um homem: Pedro Damián. As testemunhas esquecem o comportamento covarde dessse personagem na sangrenta batalha de Masoller (37) e substituem essa lembrança por uma morte heróica sonhada por ele em seu delírio. O teólogo dizia que Deus pode modificar o passado, contrariando a Santo Thomas de Aquino que afirmava que: “nem Deus pode modificar o passado ou fazer com que ele não tenha sido”. O conto aborda, entre outros, o tema do tempo - mais uma grande obsessão borgiana.
Boa parte do relato desenrola-se na zona rural (Masoller), não muito distante de nossa cidade, - lá onde corre mais uma linha da fronteira política entre os dois países. Por outro lado, o lugar poderia referir a uma região polissêmica mais de ampliação do que limitação de espaços, o que nos remeteria ao já antes referido conceito de limes: um caminho entre dois territórios sem pertencer a um ou a outro, mas aos dois e definido por uma prática e não por uma lei. Não estamos longe do que o nosso ficcionista-viajante, Jorge Luis Borges, ao lembrar aquela viagem de 1934, contou: “Naqueles dias a fronteira entre o Uruguai e o Brasil, perto do campo de Amorim, existia, salvo por alguns acidentes naturais, somente nos mapas.” (Vázquez, 1996, p.132).
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PARTE IV
(8) Depoimentos orais:
A) O primeiro me foi dado por Julio Lopez, que fora coproprietário da antiga Casa América: bazar e livraria na cidade de Rivera. Livreiro perfeito à moda antiga, Julio juntava às recomendações literárias curiosidades e informações a respeito dos escritores. Assim fiquei sabendo, ao final dos anos 50 e início dos 60, da viagem realizada em 1934 e do crime testemunhado por Borges em terra santanense. A versão de Julio não era diferente das que mais tarde vim a conhecer através dos relatos do próprio escritor, exceto por um detalhe certamente desconhecido de Borges: o da localização do café onde se deu o crime. Segundo o livreiro o café achava-se na Rua dos Andradas nas imediações do antigo Cine-Teatro Colombo.
B) O segundo depoimento de que disponho tem a mesma procedência, isto é, também vem de Julio Lopez e foi narrado ao nosso conterrâneo (38) Fernando Fervenza. Fernando lembra, não do nome, mas da localização do café onde aconteceu o crime: Rua dos Andradas, aproximadamente na altura do atual Banco Bradesco.
C) Em viagem a Buenos Aires, no início dos anos oitenta, o amigo Fervenza visitou o escritor no seu famoso apartamento da Calle Maipú, tendo sido atendido por Fanny, a antiga empregada da família. Ao tomar conhecimento do lugar de origem do visitante, Borges foi logo disparando: “Sant’Ana do Livramento, lá vi pela primeira e única vez matar a um homem. Estava com Amorim num café quando chegou um pobre borracho falando inconveniências. Este se aproximou demais da mesa de um homem, um capanga, o qual se sentindo importunado disparou-lhe dois tiros à queima-roupa sem sequer sair do lugar. No dia seguinte, Amorim e eu voltamos ao mesmo café e, para nossa surpresa, o assassino lá estava”. Como se vê, o relato foi formulado em palavras quase idênticas às apontadas até aqui, proferidas pelo próprio escritor. Borges, é sabido, possuía uma memória prodigiosa - o intervalo de quase cinqüenta anos entre o ocorrido e o narrado a Fervenza é mais uma demonstração de sua imperturbável lucidez.
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NOTAS:
1) Borges, 1985, p. 379.
(2) Borges, 1979, p. 22.
(3) Alifano, 1988, p. 164.
(4) Vázquez, 1996, p.132.
(5) Leonor Acevedo Haedo nasceu em Mercedes, Uruguai, em 1837. Faleceu na cidade de Genebra, Suíça, em 1918 onde fora acompanhando a família Borges.
(6) “Toda minha vida modifica o livro que eu estou lendo”, dizia Borges em uma de suas últimas conferências de Montevidéu, realizada na Sala Verdi em 14 de novembro de 1981. Citado por Lisa Block de Behar no jornal Jaque em 09 de novembro de 1984.
(7) Williamson, 2006, p. 239/240 apud M. de Torre.
(8) Borges, 1967, p. 13.
(9) Vázquez, 1996, p.142 e ss.
(10) Jurado, 1980, p. 49. Renard, 1986, p.15.
(11)Entre Livros, junho de 2006, p. 42.
(12) Piauí, número 14, novembro de 2007.
(13) Ocorrido em 1978.
(14) Vázques, 1996, cap. 6, p.132-133.
(15) Cabe a explicação entre parênteses do termo guarda-costas para capanga, porque esta palavra não existe em espanhol e foi introduzida pelo escritor em alguns de seus contos após sua vivência fronteiriça.
(16) Tipo popular, provocador, metido a valentão.
17) Editado e traduzido para o inglês por N.T. di Giovanni. New York, Dutton, 1970, p. 271.
(18) Escrito em inglês na revista The New Yorker, 1970, segundo Borges, São Paulo: Globo, 2000, p. 7.
(19) Vázquez, 1996, p.132.
(20) Williamson, 2006, p. 241.
(21) Borges, 1974, p. 9.
(22) Versão original em francês, Borges par Lui-Même, 1967, aqui transcrita do livro Borges por Borges de Emir Rodriguez Monegal, tradução Ernani Ssó, p.152.
(23) Francisco Isidoro Borges Lafinur nasceu em Montevidéu em 1833 e faleceu em 1874 na Argentina.
(24) Barone, (org.) 1976, p.96.
25) Apelido dado pela família ao menino Jorge Luis e também usado pelos amigos íntimos.
(26) Luis Melián Lafinur, parente do pai do poeta – jurista e diplomata uruguaio a quem Borges deve o nome de Luis, segundo Vázquez, 1984, p. 327; e segundo Woodall, 1998, p.46.
Vázquez, 1984, p. 242 e Vázquez, 1996, p. 324.
(27) Vázquez, 1984, p. 242 e Vázquez, 1996, p. 324.
28) Teórico e pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais/EHESS e do CNRS, em Paris. Martins, 2002, p. 29-30.
(29) Oriental, sinônimo de uruguaio, que pertence à República Oriental do Uruguai.
(30) Costa, 2006, p. 553.
(31) Borges, 1968, p. 123, p. 124, p.129.
(32) Alifano, 1988, p.164.
(33) Argentina e Uruguai: tipo popular, vulgar, provocador e presunçoso.
(34) Borges, 1969, p.38/39.
(35) Denominação uruguaia para o rio Quaraí.
(36) Borges, 1969, p.31, p.36, p.34, p.37.
(37) Batalha ocorrida no Uruguai em 1904.
(38) Hoje M. D., P.h. D. e Professor da Mayo Clinic, Rochester, Minnesota, U.S.A.
REFERÊNCIAS:
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WOODALL, J. La vida de Jorge Luis Borges. Barcelona: Gedisa Editorial, 1998.
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Carmen Maria Serralta Hurtado
É natural de Sant'Ana do Livramento (R.S.) - na fronteira com Rivera (Uruguai) - onde reside até hoje. Professora primária e de música - ensino pianístico; terceiro grau incompleto.
Algumas atividades desenvolvidas em sua cidade natal:
Foi coproprietária da "Galeria Ponto d'Arte - promoções culturais (1984/1989), bem como curadora da "Coleção Maluh de Ouro Preto" do Museu de Arte da ASPES/URCAMP (1990/1995). De formação pouco ortodoxa nas línguas espanhola, francesa e inglesa, tem realizado traduções a partir desses três idiomas.
Fez parte do grupo da Aliança Francesa premiado - MENÇÂO ESPECIAL - no Concurso Internacional Paroles de Lecteurs (2001) organizado pela TV5 e CAVILAN da França. Integrou o grupo Club de Lectoras, que participou do Projeto FRONTEIRAS CULTURAIS (2002) organizado por Maria Helena Martins, diretora do CELP CYRO MARTINS de Porto Alegre. Desde 2006 é membro efetivo da Academia Santanense de Letras.
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Fonte:www.celpcyro.org.br
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