Volta para a capa
Especulação III

 

Darcy Ribeiro

Antropólogo-Literato ou Literato-Antropólogo?

 

                                                                                                Euclides Dourado

 

 

     Parece uma especulação à toa, mas não é. E vale a pena fazê-la de modo a conhecer um pouco mais esse brasileiro excepcional em vários sentidos. Quem conheceu Darcy Ribeiro sabe que ele exerceu muito bem as duas atividades. Outros, que não conhecem ou não apreciam sua literatura, conheceram apenas o grande antropólogo que foi; os mais jovens, não afeitos à antropologia, conheceram apenas o literato de Maíra, a partir de 1977; outros, apenas o educador, reitor da Universidade de Brasília e reformador de universidades; outros, como os cariocas, conheceram apenas o político, como vice-governador do Brizola, multi-secretário de Estado, criador do Sambódromo e dos CIEP’s, a escola de período integral do Rio de Janeiro e, finalmente, como senador. Pois Darcy era assim mesmo: polivalente, atuante e competente.

 

     Mas o caráter literário esteve presente desde jovem. “Na verdade, eu tive sempre uma aspiração de fazer um romance. Escrevi o primeiro de minha vida com 18 anos... Uma história horrível de um jovem cego que entra numa gruta. Mandei para um concurso da José Olympio. Felizmente não ganhei e pude fazer toda uma carreira científica que curti muito” (1). E não era uma historinha de adolescente, o romance abortado com o título de Lapa grande tinha cerca de 250 páginas. Aliás, prolixo e profícuo são adjetivos que lhe caem muito bem.  O processo civilizatório (1968), que deu inicio aos Estudos de Antropologia da Civilização,* foi traduzido em todo o mundo, e em grandes tiragens. Só esta obra, em 6 volumes, que ajudou a desmistificar a antropologia, já lhe garantiria o título de cientista-escritor. Alguns de seus volumes, particularmente o 4º (Os brasileiros) foi reeditado diversas vezes.

 

     Além disso, escreveu uma divertida e instrutiva “enciclopédia”  intitulada O Brasil aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu (1985), que ajudou bastante o público juvenil (e adulto também) a entender e gostar de história do Brasil. Enveredou pela memória e publicou Migo (1988) e Confissões (1997) Até na poesia o homem se meteu e em 1998 saiu o livro póstumo Eros e tanatos: a poesia de Darcy Ribeiro.

     Então, pode-se dizer que era um escritor mais ou menos completo. Mas seu forte literário era mesmo o romance. Alceu Amoroso Lima, um crítico rigoroso, chegou a compará-lo a Gonçalves Dias em termos de literatura indígena (ou indianista?). Depois de Maíra, que seria suficiente para lhe garantir a vaga na Academia Brasileira de Letras, escreveu O mulo (1981), outro romance de caráter etnológico, agora descrevendo a moral e os costumes do homem do sertão brasileiro. Um livro concebido, conforme ele mesmo disse, “para expressar a brasilianidade, o bruto abridor de fazendas, neto de senhor de escravos, capaz de tratar povo como coisa, gente como objeto, com essa distância social tremenda que caracteriza o brasileiro” (1). Sobre este livro, Mario Carelli declarou: “Em duas décadas de literatura brasileira (1964-1984) O mulo é o único romance que eu chamaria de obra prima”.    

     Pois bem, para concluir a especulação poderíamos perguntar: o desejo de escrever um livro que todo mundo goste é um desejo mais próprio de um antropólogo ou de um escritor? Para arrematar, mais tarde ele confidenciou num ensaio intitulado por ele mesmo de O romancista: “A experiência de romancista é das mais fortes de minha vida. No romance se alcança com leitores e leitoras, um grau de comunicação bem próximo do que só se experimenta no amor”. (3)O protagonista é um fazendeiro típico, e representa uma pessoa repulsiva, impiedosa no trato com os criados. Porém a construção do personagem é feita com habilidade tal que fez com que o público leitor chegasse a gostar do tipo, o que revela a competência do escritor em agradar o público. E esse desejo de agradar o público foi revelado explicitamente: “Francamente, o que eu queria mesmo como escritor era dar uma de Jorge Amado. O que queria mais ainda era fazer uma novela de televisão” (1).  Depois publica Utopia Selvagem (1982), ”uma espécie de fábula brincalhona em que, parodiando textos clássicos e caricaturando posturas ideológicas, retrato o Brasil e a América Latina” (3).  

     Na época do lançamento de Maíra, Clarice Lispector perguntou como lhe veio vontade de escrever ficção. “A tentação me roia há anos. Não resisti. E gostei mito. Foi um barato meter num enredo o meu sentimento de gozo de viver e da tristeza que é ser índio nesse mundo. Creio também que escrevi um romance para ser intelectual...” Clarice retrucou: “Eu sou romancista e não sou intelectual”. E ele emendou: “Só os romancistas são intelectuais... Agora, como romancista posso dar palpite em qualquer coisa, saiba ou não do assunto. Romancista é assim: voz e boca do povo. Eu você e o Antônio Callado, não é?” (2). Essa convicção era também um desejo expresso em mais de uma vez. “Eu me reservaria, se pudesse, para alguma coisa que fosse mais massiva do que Maíra. Talvez eu nunca possa fazer, porque esse é um talento especial que não tenho. Mas gostaria de fazer aquele livro que todo mundo gostasse de ler (1).

________________

 

Notas:

 

*Estudos de Antropologia da Civilização

  1- O processo civilizatório. Rio de Janeiro: Civilização 

      Brasileira, 1968.

  2- As américas e a civilização. Rio de Janeiro: Civilização

      Brasileira, 1970. 

  3- Os índios e a civilização. Rio de Janeiro: Civilização  

      Brasileira, 1970.

  4- Os brasileiros: teoria do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e   

      Terra, 1972.

  5- O dilema da América Latina. Rio de Janeiro: Editora Vozes,

      1978. 

  6- O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São

      Paulo: Companhia das Letras, 1995.  

 

 

(1) Darcy Ribeiro fala de Maíra. Entrevista concedida à Maria

     Angélica  Carvalho. O Globo, 18/05/1978.  

 

(2) O cientista Darcy Ribeiro. Entrevista concedida à Clarice

     Lispector. Fatos & Fotos, 14/03/1977.

 

(3) RIBEIRO, Darcy. O romancista. “Caderno Idéias” do

     Jornal do Brasil, 25/01/1997.  

Leia Também:

- Nietzsche: Filósofo-Literato ou Literato-Filósofo?
- Glauber Rocha: Cineasta-Literato ou Literato-Cineasta?

- Gilberto Freyre: Sociólogo-Literato ou Literato-Sociólogo?

- Sartre: Filósofo-Literato ou Literato-Filósofo?

- Euclides da Cunha: Jornalista-Literato ou Literato-Jornalista?

- Umberto Eco: Semióloog-Literato ou Literato-Semiólogo?

- Freud: Psicanalista-Literato ou Literato-psicanalista?