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Inédito

 

Voz Viva da América Latina

Darcy Ribeiro

 

Nota do editor:

Em 1978 Darcy Ribeiro foi convidado pela UNAM-Universidad Nacional Autónoma de México para integrar a galeria de grandes personalidades da América Latina, através da gravação de um disco LP. A gravação foi realizada e até o momento só foi transcrita, traduzida e publicada nos Cadernos do Parlatino (Parlamento Latino-Americano), nº 13, em janeiro de 1998. Como se trata de uma publicação interna, com distribuição restrita na época, podemos afirmar que trata-se de um texto inédito de Darcy Ribeiro, que divulgamos agora para conhecimento dos brasileiros. Na época eu trabalhava no Centro de Documentação do Parlatino e me empenhei em obter a fita de gravação junto a FUNDAR-Fundação Darcy Ribeiro, onde o Long-play se encontra arquivado.

                                                                                                       J.D. Brito

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    Viver é ir deixando troços, pedaços de alguém pelo mundo. Unhas que se cortam, cabelos que se aparam, palavras, sobretudo, palavras. Palavras que tem uma vida muito breve, um fulgor entre uma boca e um ouvido, às vezes muito emocionadas, mas que depois de ditas, desaparecem para sempre. Agora me pedem que exatamente esta coisa rápida, esta coisa que se perde, a palavra, exatamente ela, querem prender, prender em um nó eletrônico, para que fique aí vibrando, depois de mim, e fique viva quando eu não mais estiver, e eu acho que isso é algo terrível e sinistro.
    Eu imagino aquele homem que num futuro muito longínquo estará me escutando, como eu escutaria uma mariposa batendo as asas e se pergunta: O que é que esse homem está dizendo? E que língua ele fala: catalão? Não, catalão não é. Galego? Não, não é galego. Português não é, com certeza e, espanhol, também não. Mas, então, que língua ele fala? Aquele homem perplexo que se pergunta não sabe que eu falo "espanhoguês" ou "portunhol", eu não sei bem. É uma língua que eu estou inventando, e é uma língua de certa forma, cômoda. Eu suponho mesmo que, é possível que estejamos gravando o primeiro documento da língua da América Latina integrada. Eu imagino o ano de 2100, por exemplo: uma América Latina de 1 bilhão de latino-americanos integrados em uma pátria conjunta; latinoamencanos já "desmexicanizados" "desbrasileirizados", desargentinizados", tornando-se uma coisa comum. E falarão que língua? Esta língua que eu estou falando. Esta língua: "portunhol" ou "espanhoguês". A língua do futuro da América Latina. Assim, os que me escutam agora devem me escutar com respeito e como se estivessem frente a um documento vivo: a primeira gravação da língua do futuro.
    Suponho que uma forma possível de começar este monólogo é falar algo sobre mim. E imagino isto porque gosto muito de falar de mim. Vejamos: nasci há muito tempo - sou do signo de escorpião - em uma cidadezinha do centro do Brasil, Montes Claros, uma cidade que hoje, só existe no meu coração. Naquela época tinha 2 mil, talvez 3 mil habitantes. Agora, a pobre cidade se alegra de ter 100 mil. O que fizeram, com tanto progresso, foi acabar com a minha cidade. Eu posso andar por ela em sonhos e acordado, como quem anda através das suas recordações. Eu me vejo, andando em suas ruas que já não existem a não ser em mim. Eu me lembro bem de doze árvores que existiam; eu as conhecia pessoalmente. Hoje, não existe mais nenhuma, todas foram derrubadas. No lugar das árvores existe asfalto, terras, construções.
    Daquela cidade saí para a minha aventura no mundo mas, ainda que ela já não exista a que existe hoje é uma outra cidade que foi construída sobre ela, eu também tenho por esta outra um pouco de ternura, e como não teria? A principal avenida da parte nova da cidade tem o nome da minha mãe, mas não o seu nome da batismo: Josefina Maria da Silveira Ribeiro. A avenida se chama Mestra Fininha, porque é o nome familiar com que é conhecida na cidade. E como foi a principal professora de primário que alfabetizou mais crianças, decidiram pôr o seu nome na principal avenida.
    Um outro gesto que eu nunca poderia esquecer é que em 1964, eu integrava o governo de João Goulart que foi derrubado por um golpe militar, e logo após o golpe diziam-se as piores coisas sobre mim: que eu era a eminência parda, um agente de Moscou, o comunista que tentava fazer a reforma agrária, a contenção da exploração estrangeira, e tantas outras coisas. A Câmara da cidade se reuniu para discutir isto e decidiram mandar uma pessoa ao governador do Estado para dizer que concordavam, que se eu era comunista deveria ser punido, algo assim. Mas, a cidade pedia que deixassem que ela desse a punição, que me prenderiam lá mesmo. Ou seja, estas coisas tão simpáticas da cidade de origem, para cada pessoa tem um significado. Mas, eu às vezes penso que para mim significa mais, minha cidade é melhor que a sua. Certamente melhor. E o ouvinte que está me escutando e que tem o seu orgulho, também, mas não existe uma cidade como Montes Claros. A minha é certamente melhor.
    Saí desta cidade para a minha aventura no mundo. Tentei primeiro ser médico, mas fracassei, me tornei antrop610go. Como tal, consegui o primeiro emprego da minha vida, um bom emprego. Passei os dez anos seguintes vivendo em aldeias indígenas na Amazônia, ou seja, vivendo em uma rede, dormindo em redes e em esteiras na Amaz8nia. Mais tarde me tornei professor de antropologia, num esforço pouco frutífero de fazer antropólogos melhores do que eu. Um dia me declararam educador, e com esta qualidade fui encarregado de projetar um novo modelo de universidade. Foi a Universidade de Brasília da qual eu fui o primeiro reitor e onde tentei repensar a universidade como instituição.
    Entre uma coisa e outra, entre a minha vida de estudante, de etnólogo entre indígenas, de ministro de Estado ou de reitor da universidade, o que existe de constante é que eu sempre estive "politicando". "Politicando" em militância de esquerda ou em responsabilidades de governo. Ou seja, sempre assumindo papéis, sempre tomando posição frente às opções que se apresentavam. Tanto insisti em participar que um dia meu país me proibiu de participar e me colocou no exílio por dez anos. Esses dez anos permitiram que me tornasse latino-americano através dos uruguaios, que me domesticaram. Eu era um provinciano brasileiro e eles me ensinaram a ser latino-americano. E ali escrevi inúmeros livros e comecei a minha carreira pela América Latina.
    E fui nesta carreira, não com muita alegria que, afinal o exílio não é uma experiência fácil, nem gratificante, mas ia bastante bem quando caí do cavalo. Câncer, imagine câncer. Descobri na França, estava lá e descobri olhando a cara dos médicos. É uma doença com um prestígio infernal: os próprios. médicos se apavoraram e não queriam me dizer. Depois explicaram: não se diz aos intelectuais que eles têm câncer porque eles costumam se suicidar. E os franceses não acreditavam que eu queria utilizar o câncer como veículo para voltar ao Brasil. A ditadura não podia me impedir de voltar. E voltar ao Brasil para me operar. Achavam que não ia operar, mas fui, me operei, e com isso pude voltar ao meu país depois de dez anos de exílio, o que não é um bom negócio, mas é uma coisa que se pode aceitar.
    A impressão que eu tenho hoje, passada a experiência, é a de que posso viver perfeitamente sem o pulmão que me falta. Este ar tão "leve" do México, 2 mil e quantos metros? Eu posso respirar aqui muito bem. E, às vezes, eu penso que, talvez, sobrava o pulmão que me tiraram. Por 50 anos, imagine, eu andei inspirando e expirando, inspirando e expirando, dia e noite, sem descanso, com um pulmão dispensável. Hoje me sinto livre deste pulmão, livre também daquele medo da morte que foi uma experiência que fez com que, de alguma forma, eu repensasse a minha vida. Eu acho que, com alguma influência, na minha concepção das coisas, sou hoje, o homem que caiu do cavalo.

                                                        ***
    Falar de universidade, para mim, é voltar a um tema tão familiar que, de tão familiar, torna-se cansativo. Tantas vezes pensei a universidade, tantas vezes repensei a universidade, tantas vezes projetei a universidade, tantas vezes propus a reforma da universidade. Dando um parecer sintético agora, eu diria: a universidade é o útero na qual a classe dirigente se reproduz, e se reproduz com enorme eficácia; 99% das pessoas que saem da universidade saem com a sua carreira, qualificados socialmente para não ser povo; é uma máquina de fazer com que as pessoas se convertam em "não-povo", e saem todos para serem perfeitos guardiões do sistema: para se casar, para se comportar bem.
    Mas existe aquele momento de glória em que uma pessoa está na universidade, não assumiu ainda a responsabilidade da vida, e é um momento em que a sociedade se passa a limpo, porque gente da geração dos seus pais, se encontra com a nova geração e se discute o mundo. O importante na universidade talvez seja mais o que se passa fora da sala de aula, do que o que se passa dentro da sala de aula e isto está mudando profundamente.
    Foi uma instituição e ela é por sua natureza elitista mas até tende a não ser. A educação está mudando em todo o mundo a um ritmo secular: primeiro vimos a extensão da educação primária, a universalização da educação primária, depois a do segundo grau, e neste momento está sendo feita a da educação superior. Hoje em dia, por exemplo, as universidades estão invadidas pelas mulheres que vão à universidade um pouco como uma agência matrimonial. Onde procurar um noivo da sua classe se não existem clubes, se a família já não convive? Em uma cidade massificada vão à universidade. Esta grande expansão da universidade é por causa da invasão das mulheres que dobraram o número de pessoas.
    Mas, de fato, a sociedade já está aprendendo a usar a universidade de uma forma não profissionalizante, ainda que a pr6pria universidade não saiba fazer isso, sem oferecer programas profissionalizantes. Ela é muito capaz de preparar um físico ou um dentista, um farmacêutico ou um advogado, mas a maior parte das pessoas que entra na universidade hoje, passa af alguns anos, sai mais ou menos qualificada para a vida, mas vai fazer o quê? Vai vender ações de banco, vai trabalhar na administração de uma estrada. Esta gente com formação genérica, tem uma maior preparação e elasticidade mental, de versatilidade mental que a universidade lhe dá. O problema da universidade hoje é repensar-se como tal; repensar-se como a instituição pela qual tendem a passar todas as pessoas; é a instituição cuja finalidade é fazer do ser humano comum o herdeiro do patrim6nio cultural humano total.
    Também é certo que se deve preparar alguns para serem profissionais, mas o fundamental é dar a cada ser humano a oportunidade de ser herdeiro de um patrim6nio cultural e de comunicar"se e de exercer uma atividade naquele período da vida que está completando a sua formação. Neste momento, a universidade experimenta mudanças fundamentais, e ela está em transição, de uma instituição elitista para poucos, para uma instituição de massas. Isto assusta muito gente, a gente da classe dominante, da classe dirigente se assusta com este assalto à universidade. Todos querem ir à universidade. Parece absurdo mas, por exemplo, na América do Norte, 70% da juventude está passando por um curso universitário. E os cubanos - são pretensiosos estes cubanos - os cubanos pretendem que nos anos 80 todos passem pela universidade em Cuba. Que fizeram os cubanos? Primeiro, generalizaram o primário, depois o secundário, agora estão generalizando a universidade. Para isso, eles desclausuraram a universidade, a universidade foi ao encontro dos estudantes, enquanto trabalhem no campo médico, social ou educativo em que a pessoa quer se graduar. Esta universidade é desclausurada; esta universidade fora dos seus muros; essa universidade popularizada é a universidade do futuro, eu suponho. E é para ela que nós devemos nos dirigir, com coragem de deixá-Ia crescer e também com a coragem de deixar que ela se inquiete, que ela faça agitações, que ela se pronuncie sobre as coisas, que ela assuma responsabilidades, que a classe dirigente se tranquilize: nenhuma revolução foi feita na universidade e não vai ser feita na universidade, é uma agitação dos "filhotes" que depois vão assumir os seus papéis, mas deixem os "filhotinhos" latirem; deixem que eles treinem; deixem que eles assumam suas responsabilidades. Alguns deles irão se salvar.

                                                       ***
    Uma opinião sobre a América Latina, uma opinião global sobre a América Latina? É difícil. No meu modo de ver, o que caracteriza a América Latina de hoje, no plano da cultura é o súbito descobrimento de que tudo é questionável. As velhas explicações eram justificações. É necessário repensar tudo. Esta lucidez, que conseguimos de uma hora para outra não é, provavelmente, uma conquista da nossa racionalidade. Parece, isto sim, ser a projeção sobre a consciência latino-americana de alterações estruturais que estão acontecendo nos nossos países e no mundo todo. Só assim se pode entender porque tantos, ao mesmo tempo, sem qualquer comunicação entre si formulem por todos os lados da América Latina, as mesmas opiniões e elaborem os mesmos conceitos. É como se colhêssemos frutos de novos tempos que nós não cultivamos, mas que caem em nossas mãos, mais pelo nosso pesar do que pelo nosso esforço.
   Entre estas percepções abruptamente generalizadas, está a compreensão de que o atraso da América Latina não é nem natural nem necessário, mas sim que existe, persiste, porque fomos coniventes com os fatores que o causaram. Nada ficou das velhas explicações que atribuíam o nosso atraso ao clima tropical, às raças doentes, à mestiçagem, à origem ibérica, ao caráter católico-salvacionista dos conquistadores. Tampouco se mantêm de pé as explicações das causas que se atribuíam à exploração colonial e classista, porque em outras latitudes muitos povos enfrentaram estas mesmas contingências e, não obstante, conseguiram melhor desempenho. Conseqüentemente, não há como descartar a conclusão de que a causa está em nós mesmos, não em carências naturais, inatas ou históricas das quais não seríamos responsáveis, mas sim em nossas conivências e culpas.
     Com razão, ninguém hoje duvida que o projeto de exploração colonial e neocolonial da América Latina, desastroso para os nossos povos, que pagaram o seu custo em opressão, penúria e dor foi um grande sucesso para aqueles que o impuseram, que o comandaram como classes dominantes. As empresas aqui instaladas ao longo de quatro séculos foram as mais prósperas de que se tem notícia. Ainda hoje o são e conservam a sua característica fundamental, que é a de uma prodigiosa prosperidade empresarial não extensiva à população.
    Desta forma, descobrimos repentinamente, como uma revelação abrumadora que nós, como classe dominante e como seus associados e servidores intelectuais, que nós somos os verdadeiros responsáveis pelo atraso que nos oprime e envergonha. Foi o nosso projeto classista de prosperidade que nos induziu, ao sair da dominação colonial a procurar novas sujeições, porque esta era a forma de manter e ampliar velhos privilégios. Com este propósito foram ordenadas institucionalmente as nossas sociedades, de modo a manter a força de trabalho envolvida na podução na disciplina mais opressiva, comprimindo seu nível de vida até limites insuportáveis, obrigando-a a produzir o que não consumia, gerando excedentes para alimentar as regalias de uma pequena camada social superprivilegiada.
    O que eu quero dizer é que não podemos mais nos iludir de que estejam em outros e não em nós, a causa do desastre da América Latina. Nossos povos são povos de segunda categoria. De segunda categoria em um sentido terrível: são povos que não conseguiram realizar as suas potencialidades na civilização industrial, e povos que estão ameaçados de não realizá-Ia, também, na civilização futura. Dizemos povos de segunda categoria, que nos envergonha frente à Suíça, frente à América do Norte, frente à Alemanha, frente à França, ou frente à Austrália ou frente ao Japão. Começamos a compreender, afinal, que isto é o projeto da classe dominante. Ela nunca quis um povo que não fosse este, um povo-proletariado externo, que existia para produzir o que não consumia, que existia para outros.
     Eu acredito que o que caracteriza a nossa geração, a geração que começou a atuar depois de 45, é esta consciência mais lúcida e mais clara de que o nosso mundo tinha que ser desfeito para ser refeito, porque tal como está feito só serve à camada privilegiada. Os ricos dos nossos países desfrutam muito mais de sua riqueza que os ricos dos países ricos, e para eles este projeto foi sempre muito bom, muito gratificante; para o povo é que não é. Quando eu olho os milhões de brasileiros que passam fome, os milhões de mexicanos ou de bolivianos ou outros que enfrentam situações de grande opressão e de penúria, e quando penso que esta é uma penúria dispensável, evitável, induzida pelo projeto, e quando vejo agora, no meu país, ou no México, ou outros lugares, pensadores submissos à classe dominante afirmarem que é preciso primeiro acumular para depois distribuir, é como dizer ao povo que ele comerá amanhã o que não comeu hoje. Não é verdade. Você não comerá jamais o que não comeu hoje ou ontem.
     Então, é aqui e agora que é preciso fazer a distribuição. É aqui e agora que é preciso organizar a sociedade, os que estão na sociedade, os que estão aqui. Quando eu vi, por exemplo, a brutalidade, o que é o camponês francês, aquele homem trabalhando com cavalo pecheron, e ele parece, também, um cavalo pecheron. O produtor de camembert, o produtor de beaujo1ais; o produtor de camembert come camembert, bebe beaujo1ais. É diferente do produtor de café que exporta café e come porcaria. Nossos povos não existem para si, existem para outros. Este é o projeto da classe dominante, este é o projeto que a América Latina tem que arrebentar, tem que romper, tem que explodir, para que as potencialidades dos nossos povos se realizem.
    Olhando o mundo de hoje, pouca gente duvida que a China voltará a expressar, no ano 2000, a sua civilização mi1enar dentro da tecno10gia mais avançada do mundo. A China era muito mais miserável do que nós. A China tem hoje 1 bilhão de habitantes, tem muito mais gente do que nós e, entretanto, foi possível, porque aí se abandonou aqueles projetos classistas estreitos, e se reformu10u um projeto nacional. Hoje em dia, nós não entendemos a raciona1idade dos chineses, não cabe na nossa raciona1idade o que eles fazem, e nós no ano 2000, o que seremos? Seiscentos milhões de latino-americanos miseráveis, outra vez um povo de segunda classe, outra vez um povo neocolonizado? Antes da primeira colonização nós compramos máquinas a vapor, depois caminhões, depois motores elétricos, agora estamos comprando transistores, penicilina, DDT, computadores e para quê? Estamos sendo colonizados com isso novamente. E agora vem a potência central, hegemônica, também em nome da liberdade, subjulgarnos outra vez. Como dizia Bolívar: subjulgar-nos para quê? Para induzirnos a aceitar o seu próprio projeto. Que projeto é este? O que é que atrás da liberdade oferecem os dirigentes aos nossos povos? Hoje é mais urgente do que nunca desenvolver aqui a capacidade de diagnóstico, de crítica e de pensamento utópico; de formular quê país queremos ser, que realidade e que sociedade queremos construir, em que mundo queremos viver. Este é o desafio com o qual se enfrenta a intelectualidade da América Latina. Intelectualidade que não tem o direito de se dar ao luxo de não ser revolucionária, porque como intelectualidade e como consciência de povos que fracassaram na história, a sua função é explicar esse fracasso e é sair desse fracasso, não lamentá-lo.
     Nós poderíamos ter tido um desempenho muito mais alto do que qualquer desempenho mundial de hoje, com o que somos, com o povo que temos, com a província privilegiada e a terra que temos, mas isto não correspondia aos interesses da classe dominante. Estas classes dominantes têm que perder a capacidade de ordenar o nosso mundo, de dirigir, porque só no momento em que esta direção seja efetivamente popular, só neste momento, poderemos formular o projeto de nós mesmos como povo que se faz a si mesmo como aquilo que desejamos ser; como aquilo que queremos ser; como aquilo que nos orgulhemos de ser.
    Os nossos países são produto de um projeto bastante explícito, bastante claro e anti-popular. Projetos que envolveram a coragem de "gastar" gente como carbono humano, gastar negros da África trazidos aos milhões ao Brasil para produzir açúcar, para produzir ouro; gastar indígenas; gastar gente para produzir as coisas que o mercado mundial pedia. Este projeto tem seu limite, só é capaz de produzir este tipo de sociedade que nós temos, uma sociedade com um desempenho medíocre. Entretanto, para romper com isso, é necessário uma operação política, uma operação política que tire do poder os grupos que mandam e que ponha em seu lugar a vontade popular. Como isso acontecerá na América Latina? Eu não sei, mas o importante é aceitar isso como nossa perspectiva de que o que importa é rechaçar este mundo e explorar as enormes potencialidades deste mundo no que ele poderia ser.

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     O indígena é outro tema constante na minha vida intelectual. Graduado na universidade, o meu primeiro emprego, meu primeiro trabalho, foi estudar populações indígenas. E essas populações indígenas, principalmente da Amazônia brasileira, me ensinaram a não ser um etnólogo do tipo antigo, a não ser antropólogo, neutralista, objetivista, distanciado da realidade; me ensinaram a ser gente como eles, a me preocupar por seus problemas, e eu comecei a fazer uma nova antropologia, na qual a preocupação fundamental era compreender o destino das populações que eu estudava; era devolver-lhes o saber que eu desenvolvia.
    Eu me mantive fiel a este tema. Ainda há pouco tempo eu estava em Paris presidindo um Congresso, um congresso de americanistas, um simpósio sobre o problema indígena; eu venho agora de uma reunião em Barbados em que se discutia o problema indígena, ou seja, ao longo de 30 anos eu tenho pensado neste problema. Mas, o problema indígena deve ser visto em seus dois aspectos fundamentais. O primeiro aspecto é o das microetnias tribais, particularmente da floresta tropical de toda a América do Sul. São grupos de 50 pessoas, 200 pessoas, 5.000 pessoas, no máximo 10.000 pessoas falando a sua própria língua, tendo a sua própria visão de mundo. São povos inviáveis. Desesperados com a sua inviabilidade, vendo a civilização crescer sobre eles, povos cujo ritmo de conservação e de transformação não depende deles, depende das estradas que se construam sobre os seus territórios e eles olham perplexos a civilização que está chegando.
    Esta situação das micro-etnias é totalmente diferente da situação das macro-etnias. É o caso da Guatemala, do México, do Peru, da Bolívia. Aqui é totalmente diferente. Aqui havia uma alta civilização com a qual se chocou o invasor europeu. Deste choque resultou um esforço incrível de subordinar, colonizar, "espanholizar", ocidentalizar estas populações. O que se conseguiu foi uma camada criola, esta integrada e espanholizada. Mas aí estão as massas indígenas, 8 milhões de quéchua falantes, em México 10 milhões de indígenas, na Guatemala 85% da população indígena, na Bolívia a maioria também. E populações que permanecem elas mesmas, tais como os vascos. A Espanha, no decorrer de séculos, de um milênio, tentou reduzir os vascos. A Espanha vive um drama de ser uma sociedade multi-étnica, organizar-se como um Estado uni-nacional, o que a torna opressiva. Pois bem, foi o modelo da Espanha o que o México copiou, o que a Bolívia copiou, ou seja, sendo sociedades multi-étnicas, se organizaram como Estados uni-nacionais. Mas, o que acontece é que isso não vai acontecer, assim como é certo que no ano 2.200 vai haver vascos, catalãos e galegos, vai haver também maias, quéchuas, aymaras e mapuches e esta gente começa, tal como ocorreu também com as minorias nacionais na Europa a levantar-se; começa a reivindicar uma nova participação nas decisões que afetam o seu destino; começam, sobretudo, a exigir a redefinição dos quadros nacionais.
     Eu suponho que o que está ocorrendo é um movimento das civilizações, porque acontece no mundo todo. Alguma coisa faz com que os quadros nacionais, as nacionalidades burguesas, que eram capazes de oprimir e calar todos os povos, de uma hora para outra já não o podem fazer e estes povos já começam a reivindicar: curdos, flamengos, bretões, galeses, mas também aymaras, quechuas e tantos outros grupos, e num movimento comum em que eles se aceitam como são, se afirmam e procuram uma nova posição no mundo. É totalmente diferente do primeiro problema. O primeiro problema são micro-etnias que reivindicam território e isolamento para continuar vivendo o seu destino e que vêem a civilização crescer sobre eles como uma avalanche. Mas os outros são povos que conservaram a sua identidade, são povos que até agora os melhores teóricos percebiam, equivocadamente, como se fosse um campesinato e afirmavam que enquanto campesinato, feita a reforma agrária, eles perderiam a sua identidade. Não é verdade, não era um campesinato, era mais do que um campesinato, eram povos, eram nacionalidades, são nacionalidades. O problema destes povos é o problema de refazer os quadros da América Latina.
    Eu acho que nas próximas décadas vamos ter conflitos muito sérios e uma grave possibilidade de guerras interétnicas na América Latina, que podem ser tanto mais dramáticas quanto menos compreensão se tenha para estes movimentos das populações indígenas, de autonomia e de emancipação das populações indígenas. Os revolucionários que se colocarem contra isso, indicando, por incompreensão, que a revolução que se deve fazer é a das classes, desconhecem que todas as etnias são anteriores às classes e provavelmente sobreviverão às classes. É preciso aceitar que uma das fontes da história, um dos motores da história, além da luta de classes, antes da luta de classes, é a luta interétnica, a luta de emancipação, e na medida que as mesmas forças revolucionárias se oponham ou não compreendam, o processo vai se convulsionar no nosso país, e na medida também em que todo o quadro institucional imponha resistências como a Espanha, será muito mais dramático. Afinal, o que sofreram os indígenas do México é muito mais grave do que o que sofreram os catalães, ou os vascos, sempre é muito mais dura a sua história e o ressentimento é muito maior. Então, é preciso ter juízo, é preciso olhar este quadro com cuidado. Esta é uma situação explosiva.

                                                        ***
    Todas as pessoas me perguntam porque eu, um antropólogo conhecido, lido em vários países decidi ser romancista. É como se eu houvesse cometido um pecado, uma infidelidade e eu gosto das infidelidades. Mas, essencialmente, eu sempre quis escrever um romance, e escrever este que eu acabo de escrever e de publicar foi uma das experiências intelectuais mais ricas da minha vida, e aprendi que esta coisa de romancista não é tão sofrida como eles dizem, ou se é sofrida é um sofrimento muito bom. Eu me diverti muito escrevendo este romance, mas é totalmente diferente do trabalho científico. Quando eu escrevo um ensaio científico é como se eu cavalgasse o meu espírito. Eu o cavalgo e o conduzo a expressar certas coisas, a dizer certas coisas. Mas, pelo contrário, o romance é que me cavalga, é diferente, ele sai de dentro de mim. E é incrível, eu escrevi este romance depois da minha operação, já que eu estava descansando da operação no Peru. O tema é o drama indígena e eu o escrevi no Peru. Ele diz respeito à experiência que eu tive 25,30 anos antes. A primeira coisa incrível é como nós estamos cheios de memórias, como tudo o que aconteceu está guardado em nós. Se você abre uma janelinha, de maneira adequada, saem todas as palavras, saem os sentimentos do mundo, saem os sentimentos das coisas. Então, na ponta do meu lápis, saíam frases inteiras em línguas indígenas que eu imaginava que já tinha esquecido; e saíam observações, percepções. O que este romance tem como vantagem, se tem alguma vantagem, é de que nela é o próprio indígena que fala, não é um branco falando sobre o indígena, é a visão do mundo do indígena que eu pude perceber em anos e anos de convivência com eles. Eu acredito que consegui dar voz a eles, a estes indígenas com os quais convivi.
     Agora, eu diria também - e isto é um pouco espantoso - que se na minha obra existe algo que representa sabedoria não está nos meus ensaios científicos, está nos romances, ou seja, sabedoria como compreensão do mundo, como atitude em direção ao homem, como atitude solidária e aberta, como sabedoria no sentido velho da palavra sabedoria, está no romance e não está nos ensaios científicos. Ou seja, eu que escrevi centenas de páginas sobre etnologia indígena, sobre antropologia indígena, no romance eu consigo expressar o mundo indígena muito melhor, porque o verossímil é muito mais próximo à verdade do que o factual científico, que o empírico. O empírico é uma seleção de fatos sobre a multiplicidade inumerável de fatos possíveis e o verossímil é uma construção de um fato possível. Esta construção faz com que o texto seja não só muito mais expressivo, mas também muito mais verdadeiro, porque apresenta homens e pessoas em sua totalidade.
    Agora, já que falei tanto do romance e já que satisfiz, talvez, aos ouvintes do México e de não sei mais de onde, falando esta língua de vocês, tanto nossa ou do futuro, porque não me deixam falar a minha língua? Eu quero ler um capítulo do meu romance em bom português, na língua na qual eu sinto que me expresso totalmente, que eu domino completamente. Deixem que eu leia um capítulo do meu romance em português e preste bem atenção leitor, escute com atenção. Se escuta com bastante atenção cada dito que é dito, vai talvez compreender. Não está tão longe do espanhol como se pensa. Atenção, eu vou ler um capítulo que eu escrevi bem no meio do livro, não tem nada com o livro, chama-se "Egosum", e é sobre o autor do livro.

     Não pode ser lembrança. Nunca estive lá. Jamais. Ninguém esteve. Entretanto me lembro bem. Vejo dentro de mim, recordo com toda precisão, aquele deserto gelado e o vento furioso estremecendo a estação espacial. Estarei louco? Creio que sim. Provavelmente sempre fui meio maluco. Pelo menos desde aquele dia em que pintei a água da cidade. Verde-paris? Permanganato de potássio? O resultado foi azul. Um azul-de-metileno que sei bem quanto azul é. Alguém disse que aquele pacote de quilo daria para pintar o mar. Veneno? A água do reservatório e a dos encanamentos, esta eu sei, menino vi, sofrido: ficou perfeitamente azul.
     A máquina mais complexa então, e a mais fascinante, era a locomotiva da Central. Chegava cada noite badalando, apitando iluminada, pistoneando, bufando, cuspindo fogo e fumaça; partia no outro dia de manhã, engalanada. Ab! viajar de trem. Entretanto ele jorrava todo dia uma multidão de gente e, ávido, engolia outra maior, no dia seguinte. Eram os meus que iam ser baianos na vida, como eu.
    Anos meus desaflitos aqueles. Desensofridos, desinfelizes, em que eu era igualzinho a mim e me sabia. Hoje, quem sabe de mim? Metade tenho refeita de madeira, meio peito com um braço, o direito, e a cabeça inteira. Eu sou resto. Do mais sabe Jesse que me desfez e refez, tirando peças insubstituíveis da criação perfeita e inumerável que eu exemplificava.
    Antes disso, muito antes, andei vestido em outros couros, ocupado em outros trabalhos. Uns inenarráveis, como a viagem dentro da caçarola sideral em que naveguei entre estrelas com Oscar e Heron. Ali, na escuridão do fundo da panela plana e imensa, de ferro fundido, caçávamos e éramos caçados. Procurávamos os homens sem coração para sangrá-Ios, mas com muito medo deles, que nos podiam sangrar também. E com muito cuidado para não ferir os homens com coração. Nosso pavor maior, entretanto, era a esfera da memória que voava sobre nossas cabeças, dizia Oscar. Precisávamos saber onde estava para não a ver. Quem a olha apaga na mente toda lembrança.
    Outros casos muitos, sei, mais narráveis. Ou seriam, se valessem a pena. Uns e outros tão verossímeis, agora, como toda matéria de memória. Nisso se confundem. Uma jaqueira ao luar, último pouso dos seresteiros da noite naquela cidade minha. Um homem que pedala num órgão o ofício fúnebre de Couperin e faz surgir do chão tripeças de esquifes, pobres e ricos. Ambos são igualmente consistentes como matéria de memória. A jaqueira existiu, é certo, mas já não há, senão no meu peito. O homem, aquele que não há, sou eu. Ambos subsistem iguais na lembrança, são esquecimentos preteridos. Quem sabe deles sou eu, e eu não sei nada.
    Mas nada disso vem ao caso. O importante aqui, agora, é lembrar como cheguei a ver o A vá que era Bororo e se chamava Tiago. Assim o conheci. Vi-o uma vez, emplumando os ossinhos da filha morta de bexiga. Estava muito consolado, declinando, no compasso certo, uma ladainha em latim. Anacã, ao contrário, nada tinha com funerais, nem era Bororo, mas Caapor. Companheirão muito querido. Era baixinho, gordo, risonho. O mais parecido com um intelectual que eu encontrei num índio.
    De tudo dava notícias, querendo saber mais: . E Uruantã, meu trisavô, você conheceu? Você viu? Onde foi? Quando o vi pela primeira vez eu procurava, no meio daquela indiada que só falava tupi, quem estava gritando:

    -Ó quêi bóio Ó ráit maic.


    Havia aprendido aqueles berros com uns gringos que andaram filmando por lá. Ficamos amigos. Tanto que um dia, num gesto de ternura, me deu seu sangue. Foi assim: eu estava deitado na rede, olhando aquela gente viver sua vidinha de todo dia, pensando e escrevendo, concentrado. Ele estava do outro lado da casa, deitado com a mulher na rede. Ela lhe fazia cafuné, catava piolhos e os estralava nos dentes. De lá Anacã me gritou:


    - Ê saé, ne é apiay eté.

    Eu disse que era verdade, que era assim. Estava mesmo .muito triste. Conversamos: ele de lá, eu de cá. Ele dizia que eu parecia estar ali na casa com eles, mas não. Estava longe, muito longe. Provavelmente com minha mulher ... Pouco depois veio deitar-se comigo, trazendo nos dedos bem juntinhos de sua mão canhota uma meia-dúzia dos seus piolhos mais gordos, que aninhou na minha cabeça carinhosamente.


    - É pra mulher catar.

   Um amigão, Anacã. Tantas lembranças tenho dele. Entre outras, o vejo rabiscando meu caderno para fazer de conta que escrevia: queria impressionar os parentes. Melhor ainda foi quando, depois de meses de isolamento, me chegou a última carga e nela o Quixote. Agarrei o livro, me deitei na rede e comecei a ler e a gargalhar, como louco, devolvendo-me a mim. Quando pus o livro no chão, ele pulou dentro da rede, agarrou o livro, abriu e começou a gargalhar também. Para Anacã, aquilo era uma máquina de rir.
   Aqueles meses de convívio inelutável da maloca quase me enlouqueceram. Só na prisão das quatro paredes me senti assim contido e constrangido. Condicionados a viver em casas com muros e portas para nos isolar, para nos esconder, não suportamos aquela comunicação índia sem fim, de dia e de noite, vivendo sempre uma vida totalmente comungante. Eu às vezes fugia para me procurar pelos matos. O grave é que me danava, quando via que mandavam os meninos atrás de mim, temendo que me perdesse. Ó tempos meus longínqüos aqueles em que eu me exercia como gente, aprendendo a viver a existência dos outros, mas sentindo-me irremediavelmente atado e atolado no fundo de mim.
     Ali senti, pela primeira vez, o duplo gosto terrível do medo e do desejo de morrer. Um homem pálido, infeliz, órfão de seu filho único, se declarou inharon. Todos fugiram me arrastando com eles para deixar o raivoso sozinho na aldeia. Ele podia pôr fogo nas casas se quisesse; matar os cachorros; cortar os punhos das redes; arrombar os camucins e fazer toda estrepulia que precisasse até se acalmar. Pateava e esturrava no pátio, com o arco e a flecha à mão, pronto para atirar. Furioso como o guerreiro na hora de sangrar o inimigo odioso.
     Eu, idiota irreparável, irresponsável sem remédio, quis ver a cara dele. Fugi e fui me acercando devagar, com muitíssimo cuidado, por trás das casas. Quando saí no pátio, ao lado de uma casa, para olhar, dei de cara com o inharon. Estatelei! Ele também! Ficamos ali, um segundo ou um século, não sei, nos olhando incandecidos. Quando me voltou o ânimo espavorido, me virei de costas e saí andando passo a passo, devagar, muitíssimo devagar, esperando o coice da flechada nas costas e desejando e temendo que viesse. É agora, pensava e dava um passo. Não foi agora, mas agora será. E dava outro passo. Nada! Andei assim, passo a passo, flechada a flechada, esperando, esperando, até chegar ao fim da casa. Aí desembestei entre duas casas e saí correndo para o meio do mato.
    Parei a uns cem metros, apavorado com o silêncio do inharon. Teria eu desmoralizado totalmente o infeliz com minha burra curiosidade de querer ver o ódio feroz de um índio desesperado? Afinal me reconciliei comigo ao ouvir o esturro forte com que ele retomava o seu papel de furioso.
    A fúria assassina dele, que a todos apavorava, a loucura feroz do inharon que um homem só pode exercer uma vez na vida, era uma fúria com regra. Era uma loucura lá deles. Não se aplicava a mim. Assim entendemos ambos, eu e ele, suponho.
    Mas não aprendi. Continuo pela vida afora querendo ver furiosos, cara a cara. Creio que só para depois sair correndo apavorado. Quando tive, eu mesmo, que ficar furioso uma vez, me controlei e quase sufoquei tomado da tristeza mais vil. Mas quando me veio a hora do medo, do medo derradeiro, do medo feroz de saber, afinal, com certeza certa que sou mortal e que viverei, doravante, de mãos dadas com a minha morte; então, só então, percebi que urgente é viver. Estou aprendendo.
Que dizer? Que calar, da golfada de amor? Corpo e alma de tantas santanas que escorrem de meus recordos. Quantas foram? Quantas serão? Dez, uma, nenhuma? Ó longos breves enganos que salgam a carne da vida. Salve.
     Gratia plena. Ave.
    Um dia disse que seria imperador, para pasmo dos meus súditos. Não supunham sequer, os inocentes, que o meu reisado é o do divino, na antiga Capela do Rosário.
    Minas, aquela, há ainda ó Carlos e haverá, enquanto eu houver. É um território da memória que eu vou recuperar, se o tempo der. Ali luzem, eu vi, barrocos profetas vociferantes. Entre eles um me fala sem pausa nem termo. É o da boca queimada pela palavra de Deus: Isaías.
    Ó feros fogos que não me queimam. Quisera o fogo inteiro da verdade toda, eu que só conheci brasas fumegantes e o gosto de fel diluído no mar.
    Que mais quisera, implacável, esse meu pobre coração insaciável? A beleza, talvez, se fosse um exercício livre, inocente, aberto. Impossível?
    Também e principalmente quisera a glória - como o oxim. A glória de ficar depois de mim, por muito tempo, cavalgando na memória dos netos do filho que nunca tive. Permancecer. Mas como? Não sei. O que sei é da minha inveja enorme das vidas na morte dos meus dois amigos amados e apagados: Ernesto e Salvador.
    Ai vida que se esvai distraída, entre os dedos da hora, tirando da mão até a memória do tato dos meus idos. Só persistimos, se tanto, na usura da memória alheia, à véspera do longo esquecimento.

                                                       

                                                        * * *

Transcrição e tradução ao português da fala de Darcy Ribeiro gravada no disco “Voz Viva de América Latina". Dirección General de Difusión Cultural, Universidad Nacional Autónoma de México, 1978.

Edição: José Domingos de Brito
Transcrição e tradução: Míriam Xavier de Oliveira
Revisão: Gisele Jacon - Fundação Darcy Ribeiro

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