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Grandes Entrevistas

Afrânio Peixoto

Conduzida por Homero Senna, publicada originalmente no suplemento literário de O Jornal, de 20/05/1945 e republicada em seu livro: SENNA, Homero. República das letras. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.

* * *

      Ia eu à casa do Professor Afrânio Peixoto, deixar-lhe, de acordo com prévia combinação, o questionário deste inquérito, quando, ainda do bonde, vi o ilustre escritor aguardando calmamente condução na Rua Marquês de Abrantes, esquina de Paissandu, próximo à sua residência.

     Ora, a ocasião não podia ser melhor. Desci, apresentei-me e lhe entreguei em mão o envelope com o questionário. O mestre meteu-o no bolso sem p abrir, disse que leria mais tarde as perguntas que eu lhe fizera e que depois se comunicaria comigo. Como eu lhe ponderasse ser imprescindível que conversássemos cobre as questões propostas, perguntou-me de súbito:


Você para onde vai agora?
- Para a cidade.
Então vamos juntos e no trajeto conversamos.

     Aquela hora, no entanto, os bondes passavam repletos na Rua Marquês de Abrantes. Era gente nos estribos, junto ao motorneiro, na parte de trás, por todos os lados, em suma. Vendo aquilo, perguntei a Afrânio como é que não desistira ainda de sua velha mania de andar de bonde.

É, de fato, um hábito que tenho. Durante anos e anos tomei naquela esquina ali um bonde Praia Vermelha que me levava à Faculdade de Medicina, para dar a minha aula das duas horas da tarde. Com isso acostumei-me. Ia no banco, ao mesmo tempo remoendo o almoço e pensando no assunto da lição do dia. De nada me adiantava ir de táxi ou chegar até à Praia do Flamengo para tomar um ônibus. O bonde me poupava a despesa do primeiro, os solavancos do segundo, e me punha à porta da velha Faculdade pouco antes do instante em que eu devia iniciar a aula. Além disso, gosto do bonde porque este, ao contrário do ônibus, é reflexivo, convida à meditação.

- Lembro-lhe que já o tenho visto até na parte da frente junto ao motorneiro, lugar dos mais incômodos, uma vez que o preferem sempre os passageiros que conduzem malas ou grandes embrulhos. Afrânio sorri e me diz:

É isso mesmo. Qualquer lugar me serve. E sabe de uma coisa. As vezes tomo até um desse bondes de segunda classe, nos quais geralmente viajam apenas humildes operários, lavadeiras, soldados do exército.

- O taioba?

Ele mesmo. Outro dia uns amigos grã-finos que tenho ficaram, aliás, escandalizadíssimos e fizeram um escarcéu porque me viram num desses bondes. “Mas que mal há?” Perguntei-lhes surpreendido. Por que razão hei eu de ir até à cidade pendurado num balaústre, sem comodidade alguma, sendo pisado a todo instante pelo condutor, se posso ir calmamente sentado num taioba, que hoje em dia é o único bonde no qual a gente em certas horas consegue lugar? Sei que há quem pense isso no fundo é excentricidade minha. Mas pode crer que não é. Tudo não passa de um simples desejo de viajar com relativa comodidade, sem gastos excessivos. Que me importa que o bonde seja de primeira ou de segunda classe? Os burgueses, as pessoas convencionais é que ficam escandalizadas com isso, eu não.

- De fato, o Professor Afrânio tinha razão. Àquela hora todos os bondes passavam superlotados na Rua Marquês de Abrantes. Eis senão quando surge um taioba Largo dos Leões vazio, com os lugares de sobra por entre os caixeiros, os vendedores e as humildes lavadeiras que eram seus únicos passageiros. Ele me olha significativamente e indaga:

Você tem coragem?

- Mas claro!

Então vamos escandalizar os burgueses.

E, aboletados num banco inteiramente disponível, lá fomos nós, para grande admiração não só dos passageiros que olhavam com espanto a impressionante figura do meu entrevistado, como das pessoas que, na calçada, ao longo de todo o trajeto, continuavam a esperar ao sol o bonde de primeira que não vinha nunca com lugares suficientes para todos... Assim começou nossa entrevista.

Desde menino meu desejo for ser médico e não escritor. Ainda em rapaz e já aluno da Faculdade de Medicina da Bahia, coisa que não passava pela minha cabeça era ser romancista ou crítico. Eu queria era ser médico. Em Salvador, porém, quando estudante,, pelo desejo de aparecer, de me tornar conhecido, fui a um almoço dos mais extravagantes e mistificadores. Você não pode imaginar como sou grato à boa terra por me haver perdoado todas as estroinices do meu tempo de rapaz. E para escandalizar o honesto público, que fazia eu? Numa época de respeitabilidade e de costumes rígidos, na qual até mesmo usavam apenas roupas escuras e graves, como sobrecasacas e fraques, e numa cidade provinciana, eu alarmava as populações saindo à rua sem chapéu. Sou, portanto, - diz-me sorrindo – o precursor dessa moda que veio, afinal, a se tornar tão popular. Mas andar sem chapéu não bastava. Então resolvi passar a trazer sempre numa das mãos um lenço branco amarrotado e na outra uma flor, ou mais precisamente, uma Angélica... Assim, e com o cabelo muito untado de cosmético e repartido ao meio, à maneira dos pré-rafaelistas, é que passeava pelas ruas da minha muito amada Bahia.

- Pára um pouco, como se estivesse retomando o fio dessas recordações, e depois prossegue:

Ficou célebre, também, nos anais da cidade do Salvador, o bonde que certa noite foi visto andando desde o centro até os bairros mais afastados, com marcha lenta mas ininterrupta, as cortinas todas abaixadas... Dentro em torno a uma mesa (era um bonde de carga) vários rapazes comiam, bebiam chope e faziam música. Entre eles estava eu, que era, aliás, o anfitrião. Os jornais do tempo falaram desse bonde-fantasma. Ora, não demorou que eu fosse apontado na rua como um boêmio, um estróina, um pândego. Mas que mal havia? Se era justamente isso que eu queria...

- E que tem esses fatos com o começo de sua vida como escritor?

Tem muito, pois foi para chamar ainda mais a atenção sobre mim, ou melhor, sobre o jovem Julio Afrânio (que eram como eu me assinava naquele tempo), que resolvi aparecer também em livro. Imaginei, então, uma coisa bizarra, fora do comum que estivesse de acordo com o meu lenço branco amarrado na mão esquerda e a angélica na direita.

- Que livro foi esse?

Rosa mística, um drama em cinco atos luxuosamente impresso em Leipzig, com uma cor para cada ato: rosa para o primeiro; vermelho para o segundo; azul para o terceiro; roxo para o quarto e negro para o quinto. O livro, porém, não pretendia escandalizar apenas pelo aspecto esterno, mas também pelo conteúdo. Trata-se de uma história de um pai que mata a filha para que esta não se conspurque com o amor... Pregava, portanto, a extinção da espécie humana. Dei a edição, de graça, ao maior livreiro de Salvador, que não qeurendo aceitá-la gratuitamente, em troca me ofereceu os dois volumes do Dicionário de Cândido de Figueiredo, que tinham acabado de aparecer e custavam, naquela época, cem mil-réis. A Rosa mística ficara-me por um conto e seiscentos. Como negócio, não era bom. Mas eu lá queria saber de negócios? Eu queria era divertir-me com o burguês.

- O bonde em que viajávamos chegou à Lapa, e como os taiobas voltam daí, não gozando do privilégio de irem até ao Tabuleiro da Baiana, descemos e nossa conversa continuou sob as belas e velhas árvores do Passeio Público. Afrânio amigavelmente segura-me o braço e, enquanto caminhamos em direção à Cinelândia, diz-me:

Não pretendia, porém ser escritor. Tanto assim que a não ser a Rosa mística e um ou outro artigo literário aparecido nos jornais, nada publiquei na Bahia. Queria ser médico e com esse intuito foi que embarquei para o Rio. Uma vez aqui, inscrevi-me no concurso para as cadeiras de Higiene e Medicina Legal (ao tempo unificadas) da Faculdade de Medicina e, mais feliz que meus dois concorrentes (os Drs João de Barros Barreto e Henrique Taner de Abreu), numa rumorosa competição, consegui o primeiro lugar na classificação final e, em conseqüência, logo depois, a ambicionada nomeação. Antes de iniciar, porém, a nova vida de professor universitário que se abria à minha frente, resolvi ir ver outra vez a Europa e visitar o Oriente. Tomei, então, um vapor e fui direto a Nápoles, evitando passar pela França, pois sabia que se fosse primeiro a Paris de lá não sairia. Em Nápoles encontrei Aluísio Azevedo, o grande romancista de Casa de pensão, o qual não conhecia, ainda, pessoalmente, mas a quem desde logo me liguei pela mais afetuosa amizade. Em palestra com Aluísio tive,então, ensejo de debater vários temas literários e de lhe apontar os defeitos que me pareciam maiores em sua obra: o excesso de zolaísmo, o erro científico em que incorrera ao escrever O homem, onde há um caso de histeria pessimamente estudado etc. Tenho a impressão de que o criador d’O cortiço gostou da sinceridade com que lhe falou aquele jovem que ele não conhecia nem sequer de nome. Tanto assim que, havendo, no momento, a vaga de Euclides da Cunha na Academia, perguntou-me em quem devia votar. Para mim, os candidatos inscritos eram dois: Eurico de Góis e Almáquio Dinis (2). Disse-lhe que votasse neste último, que eu já conhecia da Bahia. E de Nápoles rumei para a Grécia, em demanda da Palestina, da Turquia e do Egito. Estava no Cairo quando recebi carta de Aluísio (carta que pertence hoje ao arquivo da Academia), chamando-me os piores nomes, pois – dizia-me ele – só um sujeito muito insincero, sendo candidato à Academia, poderia aconselhar um amigo que votasse em outro concorrente. Caí das nuvens. Eu, candidato à Academia na vaga de Euclides da Cunha? Aluísio estaria maluco? Logo percebi, porém, que não estava, pois por carta de Oliveira Lima, recebida de Estocolmo, e por notícias do Brasil, fiquei sabendo queeu era, de fato, concorrente à poltrona de Euclides sous la coupole. Porque a verdade é que eu sou um acadêmico malgré moi.

- Mas como? Então o senhor era candidato e não sabia?

Não sabia, não. Minha candidatura foi arte do meu sempre querido Mario de Alencar, que com um requerimento do seu próprio punho, mas assinado Afrânio Peixoto, me inscreveu à sucessão d Euclides. A seguir, como é de praxe, passou a pedir votos para mim, utilizando-se para isso de cartões com o meu nome. E, fora do Brasil, de nada sabia. E como o prestígio do grande amigo de Machado de Assis era muito forte no seio da ilustre Companhia, fui eleito.

- E que tal a eleição?

Foi brilhantíssima. Tive quase a unanimidade dos votos. Só não votaram em mim aqueles acadêmicos, como, por exemplo, o Conde de Afonso Celso e Alberto Oliveira, que Mario, como poderosíssimo cabo eleitoral que era, permitiu que votassem no outro. Vi-me, então numa estranha situação: membro da mais alta corporação literária do país, como sucessor de um escritor prestigioso, sem livro algum publicado.

- E o Rosa mística e a sua tese de doutoramento sobre epilepsia e crime?

Ora, o Rosa mística eu o escrevi, ou melhor, Julio Afrânio o escreveu quanto tinha apenas 18 anos de idade. E, além do mais, você já viu como e por que foi escrito. Quanto a minha tese de doutoramento, conquanto já tivesse merecido a honra de ser citada por alguns dos mais importantes mestres europeus, era um trabalho científico, não literário. Senti-me na obrigação de produzir uma obra literária, para justificar minha eleição e dar alguma satisfação aos que haviam votado em mim.

- Escreveu, então, A esfinge?

Isso mesmo. Eu acabava de visitar a Grécia, onde, indo para Delfos, tivera ocasião de ver o caminho da esfinge, trilhado outrora por Édipo, e estava ainda no Egito, terra de outras esfinges, quando recebi a notícia da minha eleição. Resolvi desenvolver, num romance, o seguinte tema: o homem se encontra, na vida, diante de um dilema – com as mulheres não pode viver, porque elas são quase insuportáveis e poucos as aturam; mas também não pode viver sem elas, porque são absolutamente indispensáveis. Diante desse dilema, a Esfinge, do alto, parece dizer: “Tu me decifras ou eu te devoro...”

- E o livro fez sucesso?

Muito. Basta dizer que já está na oitava edição.

- Mandou-o imprimir também em Leipzig?

Não. O seu editor foi o velho Alves. A respeito da edição de A esfinge há, aliás, um episódio curiosos: João Ribeiro, pouco antes, levara ao Garnier o seu livro de ensaios e crônicas intitulado Fabordão. Recebendo-o, o velho Garnier troçou com o historiados, dizendo-lhe que a carne, quer dizer, os livros didáticos, ele dava ao Alves, e osso, isto é, a literatura, a ele, Garnier... Aproveitei-me da pilhéria e disse a Francisco Alves que, ele, estando prestes a papar a carne (o meu livro Medicina Legal, então no prelo) precisava, também, roer o osso. E mostrei-lhe A esfinge. Ele, com uma amabilidade extraordinária, e com grande confiança no êxito do romance, prontificou-se a editá-lo. E foi assim que Afrânio Peixoto tornou-se escritor.

- Atrás desses vieram os outros...

Como quase sempre acontece: Maria bonita, Sinhazinha, As razões do coração, Bugrinha... E livros de ensaios e crônicas: Humour, Poeira da estrada, Ramo de louro.

- Dentre todo, qual o que prefere?

Essa pergunta há muitos anos já me foi feita pelo grande e saudoso João do Rio, por ocasião d’ O momento literário. E a resposta que lhe dei (e que figura, por sinal, no volume em que ele reuniu suas entrevistas) é a mesma que hoje lhe dou: não tenho preferência por este ou por aquele dos meus livros. O de que mais gosto é o que não escrevi ainda e por certo não escreverei jamais. Para mim, o livro só é verdadeiramente interessante quando ainda não foi escrito, quando vive apenas na imaginação do ator. Uma vez passado para o papel, perde a maior parte do encanto, senão todo. Em relação à própria obra, dividem-se os escritores e dois grandes grupos: há os que são como as vacas, que mal acabam de dar cria se põem a lamber, embevecidas, o bezerrinhos, e há os que procedem como certas mulheres à-toa que têm coragem de enjeitar os filhos. Eu sou destes últimos.

- Quais as pessoas que maior influência exerceram em sua formação intelectual?

Acha que isso possa interessar a alguém?

- Mas é evidente que sim.

Não creio, não. A não ser um Nabuco, acho pedante que um escritor brasileiro se ponha a falar de sua formação. Mas já que você insiste, direi que a pessoa que maior influência exerceu sobre mim foi meu pai, velho patriarca que teve dez filhos (dos quais três freiras e um padre) e era negociante de diamantes na cidade de Lençóis, no sertão do Estado da Bahia, onde nasci. Meu pai, desde que eu me fiz meninote, passou a falar comigo de homem para homem, tratava-me como se eu já fosse moço, conversava comigo assuntos sérios, assuntos de gente grande. Você pode imaginar como eu gostava disso e como essa atitude dele ajudou a desenvolver em mim o senso de responsabilidade.

- Não quer falar de outras influências?

Seria injustiça esquecer meu amigo Manuel Florência do Espírito Santo, que me lecionou humanidades na Bahia. Era um preto boníssimo e foi para mim um guia incomparável. É sempre com grande emoção que lhe evoco a figura.

- E Nina Rodrigues?

Bem, este é outro nome que não poderia deixar de citar. Ao grande mestre devo muito do pouco que sou hoje. Nina foi um inovador e um revolucionário não só na Etnografia, pelo cuidado e carinho com que estudou o negro na formação do tipo étnico brasileiro, mas também na Medicina Legal, para onde levou sua visão e inigualável competência de clínico.

- E as influências literárias, de escritores daqui e de fora?

A enumeração seria longa e afinal inútil porque não ligo muito a essa história de influências de leituras. Também a meu respeito acho que poderia ser aplicada,sem probabilidade de erro, a lei de Capistrano.

- Lei de Capistrano? Que lei é essa?

Você não a conhece? Tem esse nome porque foi inferida e anunciada pela primeira vez pelo nosso grande Capistrano de Abreu, e somente ele seria capaz de dar celebridade universal a um homem, porque é, realmente, perfeita. Acredito, de resto, que, no futuro, Capistrano será mais conhecido como autor dessa lei de estética do que como historiador. Porque a História a toda hora seta mudando, e a descoberta de um documento, de novas fontes de informação, pode modificar por completo a visão de uma época ou a atitude da crítica diante da obra de um estadista. Daí a razão por que Bainville aconselhava que, de vinte em vinte anos, se reescrevesse a História... Mas uma lei, sobretudo uma lei perfeita com a de Capistrano, é eterna, e admira, até, que seja da autoria de um historiador e não de um ficcionista ou de um ensaísta literário.

- Pára um instante, olha-me fixamente, goza a minha curiosidade e por fim enuncia a famosa lei:

“Todo artista começa imitando alguém; continua não imitando ninguém; e acaba imitando a si próprio”.

- Estamos à porta da ABI, onde Afrânio tem um encontro marcado. Despede-se de mim com um abraço. Lembro-lhe que a entrevista não está terminada, pois desejo ainda fazer-lhe algumas perguntas.

Telefone-me amanhã lá para casa. De manhã quase nunca saio. Combinaremos uma hora para continuar a prosa.

- Esta, de fato, no dia seguinte prosseguiu, numa das salas do Instituto Brasil-Estados Unidos. Retomo o fio da conversa falando da Academia e pergunto a Afrânio se, na sua opinião, a Casa de Machado de Assis vem cumprindo a finalidade para que foi criada.

As academias, originalmente foram uma tentativa de subordinação do Espírito ao Poder Público. Sabendo Richelieu que alguns escritores ilustres se encontravam frequentemente na casa de Conrart, indagou por que não passavam a se reunir numa das salas do Louvre, onde poderiam ter um gîte social, maior largueza, finos móveis, mais comodidade, em suma. Depois acenou-lhe com o jeton de présence. Eles aceitaram – estava fundada a Academia Francesa. Mais tarde, como entrasse para o rol desses beaux esprits um cardeal, este se recusou a sentar durante as reuniões numa cadeira comum. Luiz XIV deu-lhe, então, e também aos trinta e nove restantes, confortáveis poltronas. Com isso outra coisa não visava o poderoso monarca senão subordinar aqueles intelectuais ao seu jugo. Daí o motivo porque os espíritos mais rebeldes fogem desse cenáculo, onde a originalidade se mitiga pela mediania: Anatole France, Graça Aranha... No caso particular da nossa Academia, há muito estou convencido de que, com o seu legado, o velho Alves a matou. A herança do livreiro tornou-a requestada, não pelos mais capazes, mas pelo mais insinuantes. Insinuantes das mais diversas formas: pelo prestígio, pela força, pela afabilidade. Tornando-se rica, A Academia se fez mundana e muitos querem entrar lá apenas pela fama social que ela empresta aos seus membros. Indiscutivelmente produz muito pouco. Para a edição de livros raros ou importantes, não vota senão vinte contos anuais, quantia ínfima, sobretudo nestes tempos de inflação, que não dá para a publicação de mais de um ou dois volumes de doze em doze meses. Para a confecção de um dicionário já gastou 600 contos, vinte anos e ainda está longe do vocábulo “azurrar”, com que a congênere de Lisboa terminou o seu, não passando da letra “A”.

- No entanto, o senhor é um entusiasta da Academia.

Não nego. Vou lá todos os dias, exceto as quintas-feiras... E sou um entusiasta da Casa de Machado de Assis porque esta, apesar de tudo, daqui a 300 anos, quando tiver o prestígio dessa tradição, poderá ser uma das colunas mestras da cultura do país e digna, então, do Brasil desse tempo. Mas, para isso, é preciso que viva até lá. É fora de dúvida que o jeton, gordo como é hoje, veio, porém, desvirtuar-lhe de certa maneira a finalidade. Ela, que de inicio se destinava a ser apenas um grêmio de escritores e, portanto, de homens dispostos a fazer alguma coisa em benefício da Língua e da Literatura, hoje não é mais do que uma sociedade de mútua exibição. A fortuna do livreiro colocou os necessitados diante de uma ambição. Com isso os mais competentes, ou os que maior entusiasmo teriam por ela, ficam de fora. A conseqüência é que suas finalidades culturais, quando não se restringem, estacionam.

- Mas o jeton é criação posterior ao legado Alves?

Não, sempre existiu.Desde o início era pago, saindo então o dinheiro de uma subvenção que lhe dava o governo. Mas era uma coisa insignificante (Vinte mil réis, quando, em 1910, fui eleito), que não chegava a tentar ninguém. Ao passo que hoje...

- Deixando a Academia de lado, passamos a falar do Modernismo e procuro, então, conhecer a opinião do autor de Poeira da estrada sobre o movimento renovador de 1922. A propósito, diz-me.

Todos os movimentos vanguardistas são úteis à cultura. O velho professor, acadêmico, consagrado, teria empenho em conservar antigas fórmulas peremptas e exaustas, dificultando com isso o progresso da humanidade. A indagação, feita pelos novos, é sempre uma atitude salutar porque abre o debate, estabelece a controvérsia. Por isso amais combati o Modernismo. O mérito de qualquer reação está menos nas idéias dos que a promovem do que na simples rebeldia contra os modelos estatuídos, que, do contrário, tenderiam a se eternizar, sem proveito para ninguém. O moço irreverente, quando vencer, sra o velho desse momento e não escapará ao furor iconoclasta dos jovens da hora seguinte. Assim é que o mundo avança. O incendiário vira bombeiro e muitas vezes um incêndio é o único meio de desatravancar o caminho ou a cidade de velhas construções obsoletas que devem desaparecer. Gosto de todas as modas novas. Aquilo de que não gosto é a mesmice. Na Academia, por exemplo, votei em Manuel Bandeira, não apenas por ser ele um grande poeta, mass sobretudo por ser um poeta original. Meu voto, no caso, foi uma homenagem à novidade de sua Poesia. Pois bem, Bandeira, professor, acadêmico, consagrado, já começou a ser atacado pelo novíssimos. E acho que Deus também que a Deus também aborrece a mesmice porque, sendo onipotente, permite a atividade de Satã, que lhe é a negação...

- Sobre a importância da literatura no mundo de amanhã, assunto que abordamos a seguir, a opinião do ilustre acadêmico é a seguinte:

A arte, de um modo geral, vai tomando rumos cada vez mais democráticos. No futuro teremos não Arte para palácios, bairros aristocráticos, homens escolhidos, mas sim parcelas da cultura universal espalhados por toda parte e penetrando nos lares mais humildes. Em vez de uma Gioconda, no Louvre, infinitos fragmentos da arte incompatível dessa e de outras obras-primas espalhadas pelo mundo inteiro, e atingindo ainda mesmo os lugares mais modestos e desprovidos. Engano muito frequente em que incorrem os que pretendem estabelecer paralelo entre a antiguidade e os tempos atuais é decretar a decadência da espécie humana, porque não há hoje país algum que possua um Dante, um Camões, um Miguel Ângelo. A explicação do fenômeno, para mim, é outra. Não se trata de decadência. Aqueles gênios surgiram porque a Idade Média, pela Escolástica, desenvolvera extraordinariamente a inteligência do homem, que a Renascença veio encher com as culturas antiga e moderna. Daí os espíritos enciclopédicos e fortemente criadores do Renascimento. Hoje a inteligência se especializou tanto, que só se pode ser enciclopédico na ignorância. Atualmente há físicos, químicos, músicos, escultores, jornalistas. Manhã, mais precisamente, haverá técnicos de nutrição, transporte, vestuário, bom humor, distração, técnicos, em suma, de todas as necessidade da vida física e espiritual. Menos Dante e Shakespeare, é verdade, mas, em compensação, maior número de homens que, vindos de toda parte, são depositários de uma partícula do contentamento e proveitos que a Ciência e a Arte podem dar. O que se perde em intensidade, ganha-se em disseminação.

- Muito de propósito deixei para o fim a pergunta relativa à sua célebre definição de literatura. É sabido que o mestre Afrânio, definindo a Literatura, disse ser ela O sorriso da sociedade. O conceito foi muito criticado. Escreveram-se artigos e mais artigos para provar o absurdo da definição que virou frase feita e ainda hoje é frequentemente citada. Seria interessante apurar, portanto, se seu autor já a teria modificado, ou se estaria disposta a explicá-la melhor para aqueles que não concordam com ela. Armo a pergunta e, mais uma vez, o romancista de Maria Bonita não decepciona o repórter, pela agilidade com que se desenrosca de uma situação embaraçosa

Não tenho motivos para modificar minha definição de Literatura. A Literatura, ou as belas-artes puras, comparei-as ao sorriso da sociedade porque só nas épocas felizes a gente sorri. Nas de apreensão e tortura não há sorriso. O erro dos que, sem atentarem bem para ela, combateram e combatem minha definição, está em que eles supõem que eu tenha dito “sorriso do homem”, quando o que eu escrevi foi “sorriso da sociedade”. Está claro que não poderia nunca dizer que a Literatura é o sorriso do homem; primeiro porque esta, para mim, não existe, não passa de simples elo de cadeia infinita; e, segundo, porque não ignoro que toda grande obra é feita, como a gestação, da dor, Mas só um ambiente social tranqüilo e feliz permite o aparecimento de um livro notável. No tempo de Balzac, como havia abastança social. O autor de Pére Goriot pode dedicar-se a criar vida para gozo da sociedade. E só uma sociedade feliz aplaudia Balzac. Das torturas de sua doença e de suas prisões da Sibéria, no cárcere e no hospital, Dostoievski, através de seus livros, saía para a sociedade que o admirava, não lhe parece?

- E como eu me mantivesse incrédulo quanto à excelência de sua definição, mesmo diante de seus novos argumentos, diz-me ainda:

A prova de que meu conceito e absolutamente certo, você a tem na Alemanha atual. Acha possível que na Alemanha de hoje floresça qualquer espécie de literatura?

- Não

Por quê?

- E antes que eu respondesse:

Porque a luta feroz pela simples sobrevivência impedirá por muito tempo, a felicidade do povo e, em conseqüência, ao aparecimento de qualquer manifestação artística.

- Como explicar, então Aragon e os demais poetas da Resistência francesa, cujas vozes não se calaram mesmo diante da maior desgraça?

É porque a Resistência criava esperanças para a França derrotada e espezinhada pelos teutos, e quem vive de esperanças é feliz. Insisto que o equívoco em imaginarem que eu tenha escrito que a Literatura é o sorriso do homem. Só um louco diria isto, pois, de acordo com semelhante conceito, apenas os soberanos, os ricos, os poderosos fariam letras. E é sabido que estes, em geral, nada produzem que e aproveite. Uma raiz atormentada, no fundo da terra, desabrocha nas flores de um vergel. A arte é o sorriso da sociedade. Pouco importa que o artista, pessoalmente, sofra. “De minhas penas fiz canções aladas”, disse Henrique Heine, e a sociedade sofredora não sorri... A literatura não pode vir da indiferença ou da preocupação. A poesia já morreu, ao menos provisoriamente. Os romances são reportagens ou confissões. Quando muito, vidas romanceadas. Ensaios e mais ensaios... Em Bizâncio era gramática e teologia. Agora, no Brasil, política e ortografia. A volta da Literatura será prenúncio de bom tempo. Que venha!.

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