Ana Maria Machado
Entrevista
realizado por Priscila Ramalho, publicada no site http://revistaescola.abril.com.br25/03/2016)
O livro está tão incorporado à vida de Ana Maria Machado que se mistura aos badulaques na bolsa. Para onde quer que vá, carrega um exemplar entre batons e chaves. Não passa um dia sem ler ou escrever algumas linhas. Aos 59 anos, já publicou 107 títulos 97 dos quais para crianças e é reconhecida internacionalmente. Sua obra foi publicada em dezenove países e, no ano passado, ela conquistou o Prêmio Hans Christian Andersen, o Nobel da literatura infanto-juvenil.
Num país conhecido pelos baixos índices de leitura, Ana Maria é otimista: acredita que seu hábito ainda será compartilhado por todos, um dia. "Ler é muito gostoso; é natural que as pessoas gostem", diz. "Só falta alguém que desperte esse interesse." Nesta entrevista, marcada por risos, lembranças e colheradas de sorvete, nos jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a escritora fala de como o professor pode assumir esse papel, servindo de exemplo para que as futuras gerações passem a andar com livros a tiracolo.
A senhora criou um curso na Casa da Leitura, no Rio de Janeiro, para ensinar professores a trabalhar com literatura. Na sua opinião, quais são as principais falhas de formação que eles têm?
Na faculdade, eles aprendem muito sobre pedagogia e psicologia, mas pouco sobre arte. Têm pouco contato com as obras. Acabam entrando no Magistério sem instrumentos para distinguir arte de não arte, textos bons de ruins. O objetivo do curso é suprir essa falha, tornando-os capazes de reconhecer, sozinhos e com segurança, a boa literatura. E isso só é possível com interesse e muita leitura.
Nossos docentes lêem pouco?
Muito pouco, porque a formação que recebem não dá ênfase a isso. É uma situação completamente contraditória. Ninguém contrata um instrutor de natação que não sabe nadar. No entanto, as salas de aula brasileiras estão cheias de gente que, apesar de não ler, tenta ensinar. Como esperar que os alunos se interessem?
Isso quer dizer que a literatura não está sendo bem trabalhada nas escolas.
Não só a literatura. A arte em geral, toda a cultura criadora e questionadora. Nas minhas viagens pelo interior do Brasil tenho conhecido algumas experiências individuais surpreendentes. Mas elas ainda são mais exceção do que regra dentro do sistema educacional. Esbarram na burocracia, no currículo, no horário que não reserva um espaço para que as crianças leiam.
Como usar o livro na sala de aula?
Com muita paixão. Quando o trabalho é feito com gosto, fica fácil descobrir a melhor forma de envolver a turma. É possível analisar o contexto da história, fazer um júri simulado, uma dramatização, um debate... Tudo vai depender da realidade de cada turma. Na Inglaterra existe um programa muito interessante. Num determinado horário, toda a comunidade escolar do porteiro à diretora pára o que está fazendo para ler. Cada um escolhe o assunto que quiser, ficção ou não-ficção. Quando acaba esse tempo, tudo volta ao normal.
E não há nenhuma atividade depois?
Não precisa. Ninguém lê para fazer prova. O resultado é que, espontaneamente, surgem inúmeras discussões sobre as histórias. Os níveis de leitura sobem e as pessoas passam a se expressar melhor.
Qual o papel da literatura na formação da criança?
Ela permite sonhar, enfrentar medos, vencer angústias, desenvolver a imaginação, viver outras vidas, conhecer outras civilizações. Além disso, nos dá acesso a uma parte da herança cultural da humanidade afinal, temos direito a conhecer Dom Quixote, algumas histórias da Bíblia, o Cavalo de Tróia...
Como escolher um título para indicar para a classe?
Em primeiro lugar, o professor nunca deve indicar algo que não tenha lido. Nem algo que, tendo lido, não lhe tenha agradado. O trabalho será sempre melhor quando usarmos um tema com o qual temos afinidade. Como referência, sugiro que o professor conheça os catálogos das editoras, os rankings dos prêmios e as listas de seleções feitas anualmente pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, que são muito confiáveis e variadas. Com tudo isso em mãos, é só começar a fuçar nas bibliotecas.
Mas existem bibliotecas suficientes no Brasil?
Uma pesquisa recente mostrou que 80% dos municípios brasileiros têm biblioteca. Elas podem não estar muito atualizadas, é verdade, mas o maior problema é que as pessoas não têm o hábito de visitá-las. E só freqüentando podemos pressionar para que melhorem. Conheço uma, aqui no Rio, que funcionava de segunda a sexta-feira, das 9 às 17 horas, um horário terrível para quem trabalha. A comunidade, que era muito ativa, reivindicou e o poder público se viu obrigado a mudar o horário e abrir a biblioteca também nos finais de semana.
Como despertar o gosto pela leitura?
Ler é gostoso demais. Por isso, é natural que as pessoas gostem. Basta dar uma chance para que isso aconteça. Ninguém é obrigado a gostar de cara. Tem de ler dois, três títulos, até encontrar um que nos desperte. No caso da criança, dois fatores contribuem para esse interesse: curiosidade e exemplo. Assim, é fundamental o adulto mostrar interesse. Na casa onde cresci, um dos quartos havia sido transformado em biblioteca. Meu pai era jornalista e minha mãe, uma leitora voraz. O livro era um concorrente dos filhos na atenção deles, e portanto, só podia ser uma coisa muito boa... O problema do Brasil é que poucas crianças vivem essa realidade.
Então cabe à escola estimulá-la.
Sem dúvida. O peso da escola é muito maior aqui do que nos países mais desenvolvidos, onde as pessoas lêem mais. Como ainda não somos uma sociedade leitora, não podemos esperar que o exemplo venha de casa. Ou acabaremos condenando as futuras gerações a também não ler. A escola tem de entrar para quebrar esse ciclo vicioso, criando em seu espaço um ambiente leitor. O mestre tem de dar o exemplo e despertar a curiosidade dos jovens.
Qual a melhor forma de ler para os alunos?
Em voz alta, em silêncio, em grupo... Não importa a maneira, desde que isso seja feito com prazer. E, no caso dos pequenos, com muito carinho também. Quando o contato da criança com a história vem acompanhado de uma dose de afetividade, torna-se inesquecível. Eu me lembro até hoje das histórias de minha mãe, de meu pai, as que minha avó contava. Lembro do jeito de cada um. Quase consigo sentir o cheiro do suor da pessoa, o ranger da rede da minha avó...
Que títulos não podem faltar na biblioteca da escola?
Huumm... Pergunta difícil essa. Pregiro citar autores: Monteiro Lobato, Ruth Rocha, Ziraldo, Sylvia Orthof, Bartolomeu Campos Queiroz, Marina Colasanti, Pedro Bandeira, João Carlos Marinho, Mary e Eliardo França, Ricardo Azevedo, Marcos Rey, José Paulo Paes, Cristina Porto, além das duas autoras brasileiras que receberam o Prêmio Christian Andersen, a Lygia Bojunga e eu.
E os clássicos? Estão ultrapassados?
De jeito nenhum. Continua sendo fundamental conhecê-los durante a infância, mesmo que em versões adaptadas. O que existe são novas leituras. Hoje, lemos um clássico de maneira muito diferente do que há cinqüenta anos. É importante ter em mente o seguinte: o que está escrito não muda, nós é que enxergamos novos aspectos, pertinentes à atualidade. Essa é a mágica da literatura.
Todo livro pode ser usado com fins pedagógicos?
O bom educador transforma qualquer coisa em material de aula. Ninguém pode dizer que uma semente é, em si, didática. O bom professor pega a semente e ensina a origem da vida. O mesmo vale para o livro. Em si, ele não é didático. O que existe é a possibilidade de criar muitas aulas com base em seu conteúdo, considerando que os grandes temas da humanidade estão presentes nas grandes obras.
Por outro lado, se o professor se preocupa demais com o aspecto didático, pode acabar se esquecendo da literatura...
Se ele aproveita Dom Casmurro para discutir com adolescentes a questão do ciúme e da possessividade, está trabalhando literatura e, ao mesmo tempo, questões éticas. Mas, se usa a história para perguntar qual o sujeito da oração, está empobrecendo algo tão rico, denso e cheio de significados. Nesse caso é um grande desperdício.
A senhora começou a escrever em 1969, no auge da ditadura. O clima de repressão influenciou essa atitude?
Ana Maria Provavelmente sim. Eu lecionava no Ensino Fundamental e larguei as aulas por causa da repressão. Escrever foi a maneira que encontrei de falar com gente jovem.
A senhora foi proibida de ensinar?
Não, mas me proibiram de dizer o que eu queria em sala de aula, o que é a mesma coisa.
E como eram suas aulas?
Eu sempre trabalhei com muita paixão, sem medo da leitura. Procurava passar esse sentimento para a turma. Meus alunos de 13 anos liam autores como Graciliano Ramos, Ariano Suassuna. E curtiam adoidado!
Como a senhora escolhia o tema das redações que aplicava?
Os estudantes são muito diversos, certo? Então, sempre busquei linguagens e temas variados, para atingir todos: uma carta, uma dissertação, uma narração... Alternava histórias mais sonhadoras ("Se eu pudesse...") com outras mais subjetivas ("Quem sou eu") ou mais objetivas ("A fome no Brasil").
Existe algum título que a senhora não tenha terminado de ler?
Uma porção. Para mim o livro é prazer; não uma coisa obrigatória. Não vejo problema nenhum em parar no meio quando não estou gostando.
Qual o segredo de um bom texto?
O bom texto é aquele que surpreende, que me deixa sem saber o que vem depois. A surpresa conseguida por meio de uma imagem, de uma situação diferente, de uma peripécia do enredo é um elemento fundamental em toda arte. Uma história que não surpreende provavelmente tem uma qualidade muito baixa.
É preciso ser craque em gramática para escrever com qualidade?
A A gramática não é assim tão relevante. Você deve aprendê-la para conhecer a estrutura. A partir daí, pode se permitir desobedecer. No meu caso, sempre tive uma paixão pela linguagem. Gosto de brincar com as palavras, ler nas entrelinhas.
A senhora já foi acometida pela famosa "falta de inspiração" em seu trabalho?
Claro, isso é uma coisa perfeitamente normal na vida de qualquer escritor. Em alguns dias, acordo com bloqueio; noutros, as idéias fluem com mais facilidade. Resolvo esse problema mantendo um certo método: escrevo todos os dias, no mesmo lugar, na mesma hora. Quando viajo, levo caderninhos, faço anotações, registro meus sonhos.
Em outra entrevista a NOVA ESCOLA, em 1998, a senhora comentou sobre duas professoras do ginásio que contribuíram muito para esse seu amor pela leitura. O que elas faziam de especial?
Elas faziam o que todo profissional deveria fazer: gostavam muito de ler. Mostraram-me a beleza da língua e reafirmaram a noção de que o livro é uma coisa boa, um amigo que está do nosso lado, a quem todos podemos recorrer a qualquer hora.
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