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Grandes Entrevistas

 

Antônio Callado

Entrevista comandada por Eva Peretra, publicada na revista "Cerrados", (Brasília) nª 2. 1993

Maio de 1993, dia chuvoso e temperatura amena no Rio de Janeiro, Antonio

Callado, o autor de Quarup e tantos outros romances importantes, nos recebeu para esta entrevista. Na semana seguinte iria participar de um debate sobre Otto Lara Resende na Folha de São Paulo, jornal onde tem uma coluna aos sábados. Além disso, está lançaando um livro de contos, O Homem Cordial e Outras Historias, e terá seu romance A Madona de Cedro levado a televisão. Autor atualissimo e atualizadissimo, Callado também se distingue pela incansável atividade. Nesta entrevista ele fala de política, de teatro, das viagens, da vida e da literatura. 

CERRADOS: — Callado, em janeiro de 1992, eu o encontrei na Feira do Livro de Havana, Cuba. Ali, você folheava a recente edição cubana de Quarup. Gostaria de saber como érecebido este romance no exterior? Voce conhece'

as críticas estrangeiras sobre seu trabalho?

CALLADO: — Conheço, conheço algumas sim... Quarup teve boa vendagem na Alemanha, por exemplo. Uma edição comum e uma de bolso logo em seguida. Isto não quer dizer que a primeira tenha esgotado, não; eles tem muito este costume lá. Em todo caso, foi um livro que mereceu atenção especial da crítica. Como não leio alemão, so li críticas traduzidas, mas muito boas. Eu tenho certo orgulho da publicação alemã do Quarup, porque foi a última coisa minha que saiu por lá; antes eles tinham traduzido Sempreviva. Quarup, logo depois que saiu aqui, em 67, foi traduzido nos Estados Unidos. A tradução foi bem feita, ao contrario de outros infelizes que naquele tempo foram traduzidos pelos americanos. Nos Estados Unidos, eu tambem tive boas críticas. Agora, Quarup nunca chegou a edição popular. O livro quando funciona bem nos Estados Unidos, como você sabe, tem uma primeira edição de capa dura, depois tem a edição popular; Quarup nunca chegou a edição popular, mas que funcionou bem e prova o fato de que o livro que publiquei em seguida, que é o Bar Don Juan, foi igualmente traduzido, num volume igualmente bonito. Mas com o Bar Don Juan aconteceu uma coisa diferente: conseguiu uma noticia muito boa na revista Time, inclusive com retrato. Isso é porque, mesmo sendo o Bar Don Juan um livro menor e menos importante que Quarup, cuida muito da revolução do ponto de vista mais pessoal. Talvez por isso, não sei.

CERRADOS: — E na America Latina?

CALLADO: — Muito menos, infinitamente menos. Para você ter uma ideia, a unica tradução em espanhol do Quarup é espanhola, europeia. Mas saiu na América Latina, nunca, em nenhuma editora.

CERRADOS: — E no caso de Cuba, esta edição a que já nos referimos...

CALLADO: — Foi a exceção. E ai, gostei imensamente,  me lisonjeia muito. Mas ai ha uma empatia: eu sou muito a favor de Cuba. Houve um interesse também, digamos assim, em mim, no sentido de publicar um livro meu. Você vê que estou falando com toda a franqueza. Mas, na América Latina, nada; realmente nada. Em Portugal saiu, mas tambem pouquissimo. Alias, Portugal não se interessa por livro brasileiro, menos ainda que a América Espanhola. Eu diria que o Brasil hoje tem um tremendo clássico que entrou na categoria mundial, que é o Machado. Estados Unidos, Inglaterra, França. Cada vez ele aparece mais como uma figura absolutamente extraordinária na sua época, no seu país e na literatura de um modo geral. Pois bem: vocÊ lê um bom jornal de letras português, como O Jornal de Letras, o JL, ou qualquer outro jornal, Machado de Assis não existe. Claro que existem portugueses que já leram Machado de Assis. Mas existir, como Eça de Queirós existe para nós, quase fazendo parte da cultura brasileira, nem de longe. Mas, nem de longe! E na América Latina, acho que ninguém conhece Machado de Assis. Quando vem ai esses escritores latino americanos importantes, que estão publicando coisas e tal... ai, la pelas tantas, dizem: "Ah, hay Machado", uma referênencia puramente formal. Ele não penetrou na América Latina. É muito curioso isto, é uma especie de barreira. Eu sei que nós somos mais abertos que eles. O que eu acho bom, hein. Acho muito interessante que o Brasil seja muito aberto a um grande escritor que faz sucesso hoje como Saramago, por exemplo, ou como esses argentinos ou lá quem seja que chegue aqui rapido. Acho perfeito. Agora, a recíproca não é verdadeira. E a língua, imagino: a gente lê espanhol com muito mais facilidade do que eles lêem português. E, nao sei...

CERRADOS: — Já que falamos em Cuba... nesta viagem a que ja me referi, você fazia parte do "Voo da Solidariedade”... Como está sua relação com ailha? Toda esta discussãoo em torno de Cuba...

CALLADO: — Olha, eu tenho a maior admiração por Cuba. Quer dizer, a Cuba fidelista, essa Cuba de antes eu não tenho a menor ideia de como tenha sido. Para mim, a Cuba de antes era um lugar... sei lá... tinha a rumba de Cuba, eu via no cinema e nãoo tinha o menor interêsse. Mas por esta Cuba fidelista, eu tenho a maior admiração. Eles conseguiram fazer essa coisa unica na América Latina que deu certo. Um pais onde todo mundo tem educação, tem médico e. ninguém morre de fome! Pelo amor de Deus! Isto é uma coisa que para nós na América Latina é tao fora do comum, tão fora dos padrões. Eu não sei como há essa animosidade contra Cuba. Você vê os Estados Unidos: hoje, eles só exigem na América Latina a democracia à moda deles, como eles querem, na ilha de Cuba. No Peru não precisa. Na Guatemala, não precisa. Se no Brasil amanhã houver um golpe, eles pouco estão interessados; fazem um comentario qualquer; só exigem de Cuba. Quer dizer, os Estados Unidos só são generosos com os grandes inimigos: acabou a Grande Guerra, eles fizeram o Plano Marshall para recuperar a Europa Ocidental; pensando, claro, na União Soviética, porque eles não são idiotas. Mas, de qualquer maneira, foi um gesto de grande generosidade, grande estadismo. Em relação ao Japão, em relação a União Soviética, agora; eles não estão se vingando ou procurando picuinhas; eles querem fazer ali uma democracia. Sé com o inimigo pequeno e que eles endurecem. Até hoje eles mantém um embargo contra o Vietnã do Norte e até hoje essa anha contra Cuba. Um mistério, não é? Eles não perdoam: o pequenino valente e desaforado que os desafia está perdido, na mão deles não tem vez mais. Os dois exemplos, eu visitei os dois, tanto Cuba — onde estive por duas vezes — quanto o Vietnã — para onde eu fiz questão de ir durante a guerra com os Estados Unidos. Até hoje ha um embargo contra o Vietnã... Agora eles estao amansando, porque é um bom comércio que outros paises já estão interessados em fazer... Mas Cuba eles não vão perdoar. Isto é impressionante!

CERRADOS: — Nesse "Vôo da Solidariedade" você fez um discurso numa das atividades criticando o conceito de "fim da história". Como você tem visto toda esta reviravolta mundial? E o Brasil nisso tudo?

CALLADO: — O Brasil, coitado, é um país que se custa a definir em termos de liderança política internacional, porque é de uma inconsistência! Do ponto de vista do mapa, digamos, internacional, quando você imagina as forças que valem, que governam o mundo, o Brasil é um buraco, não tem nada, não contribui com nada, não tem nada a acrescentar. Eu estava pensando nesse negocio de "fim da história" e fazendo uma certa troça, porque talvez num país pequeno como Cuba ou num país pequeno como o Vietnã a história recomece. Uma coisa que sempre defendi, porque acho que é relativamente comum, em princípio, e que quando morreu Jesus Cristo não saiu nenhuma noticia em latim, e os romanos já tinham praticamente jornais. Você pega os historiadores, nenhuma menção. A primeira menção é de 100 anos depois sobre cristãoos, porque eram subversivos: eram uma raça horrorosa, os skinheads da época em Roma; tocavam fogo nas coisas, um horror! Primeira menção. No entanto, a história tinha começado naquele momento da crucificação. A Era Cristã. Em Roma, se você falasse em Era Cristã, eles cairiam de boca aberta na tua frente, doidos de rir. Mas já tinha começado a Era Cristã, porque o que acabou com o império romano, no sentido histórico, total, foi o cristianismo. A partir dali Roma foi outra coisa. E você quer algo mais grotesco do que imaginar que um dia  aqueles povinhos bárbaros das ilhas britanicas ou da França fossem fazer alguma coisa contra aquela beleza de imperio?! E acabou, acabou completamente e acabou numa coisa que eles nem registraram, nem prestaram atenção. Entao isto é para lembrar que este negócio de "fim da historia" é meio relativo, meio bobo' porque se a historia está recomeçando agora, está recomeçando em relação ao cosmos. O homem está saindo por aí afora. O que vai acontecer? Agora, esse conceito é válido como interpretação da história do momento. Mas vale isso. Lá, eu aproveitei para dar uma cutucada nos Estados Unidos, porque esta tese do Fukuyama fez o maior furor entre os americanos. Claro, a paz americana encerrou o assunto: não há mais guerra possível, porque eles têm força para acabar com qualquer coisa. Mas isto não tem importância, não. Em termos históricos, o milênio já está aí na porta. O milênio é uma coisa louca! Um século já muda o mundo, de forma às vezes radicalissima... um milênio, não há quem imagine!

CERRADOS: — Mudando um pouco de rumo, gostaria de perguntar sobre seus textos ... A História, a paisagem e o homem brasileiro sempre estiveram presentes em seus romances. Há também a questão do indio: objeto de utopia em Quarup, aculturado e parodiado em Expedição Montaigne. Por que a mudança de tom? Você também se inclui nesse movimento geral de "descomemoraçao" — palavra utilizada num texto seu na Folha sobre os 500 anos do descobrimento?

C ALLADO: — Em relação a nós aqui no Brasil, nos estamos num periodo em que talvez haja uma certa esperança de que este nosso cinismo, essa falta de fé nas coisas, essa descrença, acabe. Eu tenho uma certa esperança que isto seja possível. Mas é uma certa ressaca que nós estamos vivendo de 20 anos de bota militar em cima do país, sabe?! É muito dificil você avaliar essa coisa. "Ah, acabou e coisa e tal..." Foram 20 anos de humilhação, meia dúzia de idiotas comandando o governo e que impuseram a gente um regime de colegio interno; um pais que vivia num internato. Isso deixa uma sequela. Hoje, a unica coisa que balança o exercito é o soldo. Então, porque o soldo está baixo, eles ficam logo com o ar assim de quem vai botar o tanque na rua. É uma coisa muito delicada: como um pais maduro permite uma coisa destas?... Mas seja lá qual for a razão, o Brasil está um pais de grande desânimo. Aqui, não acontece nada que tenha importância. Ai fica essa coisa vulgar de quem está no poder se corromper, meter a mão no dinheiro, isto é, fazer a sua vida valer mais do que qualquer outra coisa. Isto tudo e muito banal, uma coisa tão surrada! Nao há exemplo de grandes dedicações. É um pais muito vazio de tudo. As coisas ficam ridiculas. Acho que é isto que eu acabo retratando... No Brasil, não tem ainda o respeito as tradições, às nossas coisas, a gente tem que fazer tudo. Isso eu acho. Somos nos memos o pais que não deu certo. E agora essa do separatismo, que eu acho grotesco, aliás. Se a gente pode chegar a algum lugar não há de ser separando, só pode ser unindo. Pelo menos, é a única chance que o Brasil tem no mundo atual, é ser grande: um pais que, se tomar juizo, pode realmente se tomar um país de grande importância, porque tem recursos próprios que estão em cima de territorio vário, grande e importante. Então, se a idéia é separar isso... Al, realmente vamos ficar como uma porção de outros paises da América Latina que não tem futuro.

CERRADOS: — Mas há uma diferença com relação a Quarup...

CALLADO: — É. Quando eu escrevi Quarup, eu tinha esperanças numa revolução que realmente mudasse a mentalidade do paíis, porque para mudar a maneira do povo ver as coisas tem que ser uma revolução forte, tem que ser uma revolução como a Francesa,  que já está desacreditada hoje: ’Ah, mataram tanta gente!" Mataram tanta gente, mas transformaram a França num dos grandes paises do mundo ocidental, porque houve mudança de mentalidade. O importante é quando uma revolução transforma a maneira de ser de um povo. Eu acreditei realmente que o Brasil estava maduro para uma Revolucao. Achei que naquele momento a coisa ia dar certo. E como o pais tem essa base material importantissima, eu acreditei que a revolução fosse transformar o pais... Entao, o Quarup tem muito disto. Já mostra que o país não leva a sério o negócio do íindio, que o país está imaturo... mas a esperançaa daquele movimento... E tudo muito ligado aquela coisa da religião, que era uma força organizada no pais. Aliás, está acabando, não é? A religião tinha uma força até para corrigir, digamos, excessos do materialismo, do marxismo... Eu achei que o Brasil tinha um caldo de cultura capaz de produzir uma revolução interessante. Se um pais como Cuba, tão desprovido de recursos, fez o que fez, um pais como o Brasil não tinha desculpas para não fazer. Mas não fez. Agora fica cada vez mais dificil, porque há um famoso distanciamento entre os países do Primeiro Mundo e os outros.

CERRADOS: — Voce falou em Machado de Assis e eu me lembrei de dois textos seus sobre Machado, ou a partir dele. Como foi reescrever "A Missa do Galo" junto com outros escritores? Por que o ponto de vista de Dona Inacia, a mãe de Conceição?

CALLADO: — Aquilo não foi escolha minha, não. Foi uma distribuição. A ideia foi do Osman Lins e da mulher dele, Julieta de Godoy Ladeira, e, naturalmente, o Osman escolheu primeiro. E eu achei a ideia tão interessante, que não tinha muita importância o ângulo de olhar o conto. O conto é tão bonito, tão delicado, tão anti-final do seculo XX, tão contrário a essas coisas que se vêem agora, esta brutalidade de sexo, de tudo! Aquela coisa tão bonita, tão delicada! Mas eu não me lembro mais do meu conto, não. Me lembro do conto do Machado, não do meu. O que eu me lembro é que ele evoca um pouco do velho Senado, aquelas figuras do velho Senado... Você sabe que até  hoje o livro é publicado? De vez em quando eu recebo umas cartinhas muito gentis da editora com os direitos autorais rachados entre todos os participantes... E é um livro popular, uma ideia curiosa de desmembramento do conto que pegou.

CERRADOS: — Você também participou de um debate sobre Machado, publicado na Antologia de Estudos de Machado de Assis, da Editora Atica. Por que essa preferencia por Machado?

CALLADO: — Esta é uma preferencia um pouco tardia. Eu, nos primeiros contatos com o Machado, eu não sei... as sensibilidades variam... eu, digamos, adolescente, começaando a me entusiasmar com a literatura, Machado não era um dos meus escritores prediletos, de maneira nenhuma. Esta história de que, no Brasil, se lê muito mais os autores estrangeiros... Primeiro eu lia Julio Veme, lia outros autores. Depois, quase que insensivelmente, voce vai aos franceses, aos ingleses. A primeira lingua estrangeira que eu li foi francês. Tinha aulas de francês no ginásio; em casa, papai falava, tinha livros franceses... Mas, na realidade, eu me lembro do meu esforçoo em pegar livro em francês e não pegar gramática, mas livro, e batalhar; ir lendo, lendo, lendo... ate que a língua se configurou. Passei a ler francês ainda bem mocinho, e lia muito mais os franceses do que os brasileiros. Você vê, são culturas que se bastam. Se voce lê só francês, você está informado de tudo o que acontece no mundo. Se você lê só inglês, você também está. Mas se você lê só português, está longe disso. Então você pertence a um grupo cultural menor, você está perdendo muitas coisas... Muito depois eu comecei a me preocupar até com a descoberta do Brasil. Pois bem: eu já na BBC, com meus 22 anos, fui ler curiosamente livros brasileiros e livros portuguêses; uma espécie de reencontro com a lingua, que andava muito esquecida lá na Europa e eu tinha muita saudade do Brasil. Eu fiz uma leitura intensa de autores brasileiros. Aí é que eu comecei a descobrir o verdadeiro Machado de Assis, que eu tinha lido muito jovem e que não era um dos grandes escritores para mim. A partir desse momento foi um deslumbramento. Cada vez mais e até hoje; porque o Machado tem ainda por cima este segredo: ele não nos cansa. Há grandes autores que você dificilmente relê. Mas Machado, não. Se eu não tiver uma leitura no momento para, em suma, sair um pouco do ramerrão do dia-a-dia, eu pego qualquer coisa do Machado; um conto... Por exemplo, eu pego sempre o Esaú e Jacó, aquela maravilha, aquele texto bem escrito, tã moderno!

CERRADOS: — Você tem acompanhado esse debate em tomo do pósmodemismo?   E a literatura contemporanea?

CALLADO: — Não leio muito os novos, não. O novo tem sempre aquele risco e, às vezes, deixa um pouco aquela sensação de perda de tempo que tudo que é arriscado deixa. Neste ponto eu estou com o Carpeaux: prefiro sempre reler. Claro, leio uma ou outra obra que esteja sendo apontada conto grande novidade, leio um pouco sobre isto que chamam de pós-modemismo e que eu não sei bem o que é. Para mim, isso parece um pouco com fim de festa. Algo que quer ser novo e que é pós-alguma coisa parece uma contradição. E depois, eu não gosto muito desses rótulos, dessas classificações; acho que isto é tarefa dos críticos, dos estudiosos, dos especialistas em literatura. Mas eu gosto muito do modernismo. A Semana de Arte Moderna foi um acontecimento; aquela efervescencia toda e que deu frutos muito bons: um Drummond, um Bandeira. Gosto muito desse modernismo e de tudo que ele representou do novo, do diferente. Na pintura, por exemplo, Picasso é revolucionario: seus quadros continuam chocando a gente. Claro que Picasso foi antecipado em muitas coisas por Cezanne, mas conseguiu revolucionar a pintura. E isso que eu gosto no modernismo e a pintura é o melhor exemplo, porque nela esta "novidade” é mais um espetáculo, e escandaloso... A arte moderna vai ficar com este nome, no sentido de que a coisa é tão moderna que sempre nos parece nova. Mas isto é de toda obra de arte. Você pode dizer que há uma evolução das artes, no sentido daquele livro do Auerbach, da Mimesis, que dá muito a idéia de como se pode aumentar a técnica, no sentido de apreender a realidade... mas a grande arte ? o que fica sempre, é o que fica parado no tempo, é o que não dá bola para o tempo, evidentemente. Você pega, por exemplo, o principio da leitura de utn texto como a Iliada; da arrepio! Você tem idéia do que é ter aquele homem furioso na tua frente, furioso porque roubaram uma escravinha que ele achava que era dele?! Isso sabe Deus quando, porque é dificil datar Homero. Quer dizer, aquele homem furioso nao é o heroi da Ilíada por inteiro, ele é a propria coragem humana, e pura, o Aquiles submetido a ira. Dai é que você vai pegar a história de Heitor, o bom marido, e de Helena, aquela mulher (!). Mas será possivel que uma só mulher fosse capaz de fazer todo aquele estrago com a sociedade dela?!! O poema te pega pelos cabelos e você nao quer saber se é Homero, se você já leu alguma coisa a respeito... Você não quer saber de nada. Isto é moderno, e vai ser moderno a vida toda. Então, as classificaçoes são relativissimas. Você poderia dividir a literatura em literatura moderna, que comeca com Homero, e literatura antiga, que tem ainda um valor, uma espécie de ponte entre estilos, mas que não tem tanta importância.

CERRADOS: — Você é autor de reportagens, peças de teatro, romances. A partir de Quarup, porém, você se definiu pelo romance e deixou de lado o teatro. Voce acha que Quarup foi um divisor de águas em sua literatura?

CALLADO: — O teatro para mim nunca foi realmente o fundamental; eu tive um certo flerte pelo teatro. E isto aconteceu porque o teatro cresceu muito.no Brasil daquele tempo. A partir do Nelson Rodrigues houve uma coisa assim com o teatro como eu nunca vi em relacão a nenhuma outra arte. Houve a Semana de Arte Moderna que deu aquele fuzuê, aquele barulho. Mas eu nunca vi um momento artistico no Brasil como o teatro a partir de Nelson Rodrigues, em 43. Eu voltei da minha longa estada na Europa, da Inglaterra, em 45. Então, quando cheguei aqui, o teatro era uma coisa em flor. Realmente o teatro estava se desenvolvendo e era uma porção enorme de talentos. E, como havia encenação de novas peças, suigiram novos autores — todos esses que ainda estão ai agora. E era uma festa, sabe?!! Eu nunca vi outro momento de arte no Brasil comparável aquele. Aliás, eu tenho a impressão que isto nunca foi bem focalizado. Houve esse momento absolutamente extraordinário do teatro brasileiro; eu me deixei envolver por ele e flz uns ingressos no teatro. Adoro ir a teatro, mas não considero que seja uma coisa muito importante da minha obra, não. Eu f iz uma peçaa engracada, de um certo gosto, que é o Pedro Mico, que eu fiz com muito prazer, e umas outras pecinhas negras que eu flz depois um pouco completando o Pedro Mico. Mas sempre uma coisa, para mim, menor. Não que o teatro seja menor, eu é que era menor do que o teatro.

CERRADOS: — Voce é leitor de poesia? Ja tentou ser poeta?

CALLADO: — Tentei muito jovem e realmente nao tinha força, mas não tinha importância. Inclusive, na época em que eu escrevia, ainda era muito dominado pelos parnasianos, que ainda eram muito populares. Ai realmente a Semana de Arte Moderna veio fazer uma faxina: limpou o terreno dessa coisa seca que estava impedindo tudo... Mas leitor de poesia eu sou; leio muito poesia. Baudelaire, por exemplo, eu acho fascinante. Rimbaud também, gosto muito dos dois. Li muito Castro Alves. Aliás, o Bosi tem um estudo importante que recoloca o Castro Alves num lugar de destaque, que ele já estava perdendo. Gosto tambem de outros poetas. Ja li Bilac... Ha pouco tempo atrás eu fiz um texto para a Folha sobre um poeta de que eu gosto muito: Augusto dos Anjos. Ali eu aproveitei aquele texto do Ferreira Gullar sobre ele, que é muito bom e mostra a modernidade do Augusto. A poesia é ótima: aquele poema dele "A Idéia" e algo fascinante. O Bilac também tem um poema sobre a idéia, também bonito, mas o Augusto consegue fazer um envolvimento físico mesmo, corporal, até chegar aquele "molambo da lingua paralitica" que é brilhante.

CERRADOS: — O que você tem escrito?

CALLADO: — Olha, eu tenho sempre um projeto em andamento, mas não consigo falar do que estou escrevendo, não. Me dá uma espécie de timidez que não é luxo, não. Eu falo com você do Quarup agora, mas se você me perguntasse na ocasião, eu ficaria parado diante de você e não diria nada.

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CERRADOS: — Voce pesquisa os temas com os quais trabalha. Por exemplo,tem sempre alguma coisa de cultura popular nos seus livros. Em que medida

suas viagens contribuiram para sua literatura?

CALLADO: — Bom, em grande parte eu escolhi minhas viagens. Eu ja tinha

um certo prestigio dentro do jornal em que eu trabalhava então, e, por isso,

eu pude ir para o Nordeste no tempo das Ligas Camponesas. O Vietnã, eu consegui que o Jornal do Brasil me mandasse. Eu nao teria dinheiro para chegar lá, nem meios num pais em guerra, se não fosse pelo jomal. Mas eu não fui ao Vietnã para escrever sobre aquilo. São coisas que enriquecem a minha experiência: um país em estado de guerra, um país lutando contra um adversário poderosissimo... Essas coisas que eu não usei diretamente ficam na minha experiencia, foram experiências que eu escolhi. E acho que esta experiência acaba aparecendo nos textos, mas não diretamente.

CERRADOS: — E esta questão da cultura popular...

CALLADO: — Também, também. Você vai acumulando experiências. Você nem sabe o que vai e o que não vai usar daquilo. Isso depende do que você vai escrever e às vezes ficam observações que você faz e que se concentram num personagem, não necessariamente num fato ou em relatos. Eu acho a viagem importante para isso.

CERRADOS: — Você continua um escritor disciplinado? Continua escrevendo de manha?

CALLADO: — Continuo, continuo. Aliás, eu só gosto de trabalhar de manhã.

É bom, cada vez mais. Agora que estou fazendo um trabalho assim mais regular para a Folha, todo sábado, é importante esta disciplina. Mas eu sempre tenho que pegar de manhã, a noite já não funciona. Aliás, por esse lado eu não me preocupo: eu sempre saia muito à noite, mas, fosse como fosse, tinha que ser pela manhã, ainda que começaasse tarde minha hora de trabalho. Agora conteça cedo. Mas é sempre levantar, lavar a cara, tomar cafe e cair no trabalho. Prefiro mil vezes do que deixar para depois...

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