ANTONIO CARLOS VILLAÇA
Entrevista concedida a André Seffrin e publicada
na revista BLAU n. 24, janeiro de 1999 e no site www.jornaldepoesia.jor.br de onde foi extraída em 14/10/2012
Ele completou setenta anos em agosto. Nasceu a 31 de agosto de 1928, no Rio de Janeiro. Escreveu cerca de duas dezenas de livros, colaborou muito para jornal e revista e é tido pela crítica como um dos mais importantes memorialistas brasileiros de todos os tempos. Mora sozinho num apartamento da Praia do Flamengo, segundo ele, o seu mirante. Viaja constantemente, sempre viajou. Nos anos 60, esteve na Europa e nos Estados Unidos. O Brasil ele percorreu de norte a sul, do sítio “Não me deixes”, de Rachel de Queiroz, no sertão do Ceará, ao Hotel Majestic, em Porto Alegre, onde residia o poeta Mário Quintana. Estreou com uma pequena biografia do Barão de Rio Branco, Perfil de um estadista da República (edição do autor, 1945). Em 1962 organizou um livro sobre o poeta romântico Junqueira Freire para a coleção Nossos Clássicos (Agir). Como memorialista estreou com O nariz do morto (JCM, 1970; Rocco, 1975; Ediouro, 1990 e 1996), ao qual se seguiram O anel (Editora Rio, 1972), O livro de Antonio (José Olympio, 1974), Monsenhor (Brasília/Rio, 1975), Degustação (José Olympio, 1994) e Os saltimbancos da Porciúncula (Record, 1996). Como Junqueira Freire, Carlos Heitor Cony ou João Silvério Trevisan, fez da frustrada vida religiosa uma das suas permanentes indagações de escritor. Sobre esse tema que é a espinha dorsal de sua obra, Edmilson Caminha acaba de publicar Villaça: Um noviço na solidão do mosteiro, livro que reúne depoimentos e entrevistas. Em setembro, a Lacerda Editores lança Diário de Faxinal do Céu, que são as memórias das suas longas estadas em Faxinal do Céu, no Paraná, onde faz conferências. Machado de Assis, Getúlio Vargas, Joaquim Nabuco ou Carlos Lacerda, são alguns dos seus temas, e ele fala de improviso, ao sabor das lembranças. No campo do ensaio escreveu livros fundamentais: História da questão religiosa (Francisco Alves, 1974), O pensamento católico no Brasil (Jorge Zahar, 1975), Tema e voltas (Hachette, 1975), Literatura e vida (Nova Fronteira, 1976), Místicos, filósofos e poetas (Imago, 1976) etc. Escreveu também uma biografia de Alceu Amoroso Lima, O desafio da liberdade (Agir, 1983). E escreveu ainda a biografia, em vias de publicação, de uma de suas maiores admirações: José Olympio, seu amigo e editor. Em O nariz do morto, considerado sua obra-prima, ele relata os anos passados no mosteiro. A sua crise existencial sob os muros do mosteiro ele condensou em páginas de angústia, dilaceração e denso lirismo. São páginas lancinantes. Muitos escreveram sobre sua obra e sua posição importantíssima na literatura brasileira deste século: os poetas Cassiano Ricardo e Carlos Drummond de Andrade, o crítico Wilson Martins, o romancista Octávio de Faria. Conviveu com Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado, Augusto Frederico Schimidt, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Pedro Nava. Na livraria José Olympio, conversava todas as tardes com Graciliano Ramos. Gosto da vida, gosto de gente, escrevia ele em 1970. Reafirma hoje as palavras de quase trinta anos atrás e é um interlocutor atento da nova geração de escritores. Nos livros ou em entrevista, ele abre as comportas de uma vida toda dedicada à literatura. A oratória o fascina como gênero. Mas ele fala como escreve, e escreve como fala, com a mesma espontaneidade. Avesso à eletrônica, escreveu todos os seus livros numa pequena máquina, que bate com um único dedo. Poucos como ele conhecem a literatura brasileira numa visão panorâmica e tão a fundo. Leu praticamente tudo, e sabe falar do que leu, viveu e ouviu em décadas dedicadas ao convívio dos livros e das gentes.
- Fazer setenta anos o impressiona? Quando fazia cinqüenta você falava de certa voluptuosidade diante da vida e diante da morte. E agora?
Ainda tenho certa voluptuosidade em face da vida. E em face da morte. Agora, continuo a amar a vida. Léon Bloy, que parecia um grande angustiado, dizia que tudo que acontece é adorável e tinha uma grande curiosidade diante da morte. A morte é sedutora.
- Há vinte anos também dizia não gostar de reler o que escreveu. Já releu O nariz do morto ou qualquer outro de seus livros?
Reli apenas fragmentos. Não gosto de reler.
- Ainda prefere O anel, entre todos que escreveu?
Prefiro O anel. É o livro em que me soltei mais. Ousei mais.
- Diário de Faxinal do Céu é também um livro de memórias ou é um relato de suas longas estadas na cidade paranaense? Quem são os seus personagens desta vez?
São memórias de Faxinal do Céu, na serra paranaense. Aparece o Marco Lucchesi, aparece Natália Timberg. O filósofo Claudio Ulpiano. O Affonso Romano. O Domício Proença.
- Renega algum livro antigo?
Não, não renego.
- Que impressão tem de seus contemporâneos?
Os homens são melhores do que imaginamos. Ou menos perigosos do que supõe a nossa desconfiança. Confiar, confiar.
- Você certa vez me disse que na juventude chegava a ler cinco livros por dia, tal era a fome do conhecimento, o desespero. Você ainda lê muito?
Leio pouco, hoje. Muito menos do que lia, outrora. Não tenho mais nem mesmo vista.
- O ensaio que você escreveu para a edição Aguilar da obra de Gilberto Freyre é um texto evocativo, de admiração e respeito. Fale um pouco do fascínio gilbertiano.
Gilberto Freyre era fascinante. Era temperamental. Era dengoso. Era carente ao extremo. Muito tímido. Um conversador genial. Me dava a sensação de gênio. Força da natureza, desmedida, extralimitação. Pura genialidade. Era um libertino renascentista. Muito erótico.
- De Junqueira Freire a Antonio Carlos Villaça, Carlos Heitor Cony ou João Silvério Trevisan, tivemos a confluência entre a vida religiosa e a vida literária. Trata-se, sobretudo, de uma crise. Na literatura brasileira essa confluência é vasta a ponto de merecer um estudo?
Sim, vasta. Temos Antonio Olinto, Xavier Placer com o romance A escolha, o primeiro Antonio Torres, mulato de talento, grande escritor, amigo de Gastão Cruls, que lhe publicou as cartas, de Gilberto Amado, de Gilberto Freyre, temos o poeta Severiano de Resende, admirável, quase clochard em Paris, sujo, sem dinheiro, mordendo os amigos.
10 - Samuel Rawet escreveu um dia sobre o equilíbrio que você manteve entre essas duas fogueiras, a do “apetite do cotidiano” e a do “apetite do Absoluto”. Percebeu a “intranqüilidade permanente” que marca o seu temperamento. Hoje você parece mais sereno. Estou enganado?
Não, não está equivocado. A idade nos pacifica. Estou mais sereno. Ou menos inquieto. Ou menos angustiado. Ou menos desesperado.
- Quando li O pensamento católico no Brasil senti como se estivesse lendo o grande romance do pensamento católico, com personagens vivos e marcantes. Como e por que escreveu esse livro?
Escrevi por encomenda do Jorge Zahar, o editor. Escrevi em um mês. Pediu duzentas páginas. Fiz logo. Diretamente à máquina. Lá no velho Hotel Bela Vista, Santa Teresa. Franklin de Oliveira fez a orelha.
- Você escreve crítica como quem escreve memórias. Sua crítica é evocativa, de um lírico. Como se vê como ensaísta e crítico?
Sou um poeta do ensaio e da crítica. Um menino guloso. Um passeador. Sou mesmo é um giróvago. Um andarilho do espírito.
- O Villaça que exerceu a crítica tinha os seus modelos, seus críticos preferidos? Alceu Amoroso Lima era um deles?
Sem dúvida, Alceu era meu mestre. Que ligação entre nós. Um guru. Um modelo. Na literatura e na vida. Senti tanto a sua morte. Ele estava muito sofrido na morte. Como Guimarães Rosa. Como monsenhor Joaquim Nabuco Filho. Expressão de angústia. Gilberto Amado, não. Estava lépido. Fagueiro. Ó minha comadre...
- Como vê a obra de Alceu hoje?
Como um capítulo da história de nossa crítica e de nossa ensaística de idéias.
15 - Que livros de Alceu merecem reedição?
Os mais líricos, os elegíacos, os íntimos, os pessoais, como O Cardeal Leme, o João XXIII, o Europa de hoje, os Companheiros de viagem...
- Você vê alguma grande injustiça na literatura brasileira deste século?
Adelino Magalhães é tão pouco lido.
- Quem merece ser reeditado para os tempos que estamos vivendo?
Penso nos romances cosmopolitas de um José Geraldo Vieira, esgotados.
- Na ficção brasileira contemporânea algum poeta ou ficcionista chama a sua atenção?
O poeta é Foed Castro Chamma. O ficcionista seria Maria José de Queiroz, mineiríssima e quase parisiense.
- Que conselho daria a um jovem escritor?
Seja você mesmo. E escreva muito. Alceu dizia que a qualidade nasce da quantidade. Talvez. É preciso escrever muitos capítulos para que de repente surja o capítulo imperecível, único.
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