Cabrera Infante
Entrevista realizada por Geneton Moraes Neto em 23/03/2004, publicada no site http://www.geneton.com.br (23/05/2015)
A barbicha que ornamenta o queixo do mais famoso exilado cubano,o escritor Guilhermo Cabrera Infante,dá a ele um certo ar de Leon Trotsky,o revolucionário abatido a golpes de picareta por ordem da patrulha stalinista. Sisudo na hora de tirar fotos, Cabrera Infante exerce,no entanto,uma fina ironia na hora de falar de suas três grandes paixões - a literatura,o cinema e a atriz Melanie Grifith. Logo transforma-se num guerrilheiro verbal na hora de atacar os seus três grandes desafetos : Fidel Castro, Fidel Castro, Fidel Castro - uma reconhecida obsessão. Aos 67 anos de idade, pai de duas filhas, autor de livros como ''Tres Tristes Tigres'', ''La Habana para un Infante Difunto'' e ''Mea Cuba'', Cabrera Infante chegou a dirigir o conselho de cultura da recém-instalada revolução cubana, no início dos anos sessenta, mas escolheu o caminho do exílio ao desconfiar da vocação tirânica do comandante Fidel. Vive na Inglaterra desde 1966, num apartamento térreo em Gloucester Road. Nesta entrevista, concedida em meio ao caos em que se transformou a sala do apartamento em obras, Cabrera Infante bate forte em Gabriel Garcia Marques, revela o que ouviu de Fidel Castro durante um sobrevôo na floresta amazônica e confessa por que preferiu perder a chance de ouro de conhecer Melanie Grifith pessoalmente. Dramático, sentencia : a política é a maior inimiga da literatura.
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GMN : O senhor diz que perdeu o interesse pela obra de Gabriel Garcia Marquez quando um personagem começou a levitar, logo nas primeiras páginas. Como já tinha visto a serie da TV ''A Noviça Voadora'', não se animou a continuar a leitura. A hostilidade que o senhor exerce em relação a Gabriel Garcia Marquez não tem também razões políticas, já que ele apóia um governante que o senhor detesta - Fidel Castro?
Cabrera Infante : Mas a adesão de Garcia Marques a Fidel Castro é posterior à leitura que fiz de ''Cem Anos de Solidão''! Se me interesso tanto por Jorge Luis Borges, não poderia me interessar por ''Cem Anos de Solidão'', um livro folclórico. Se o problema é encontrar um livro que trabalhe com elementos sul-americanos surpreendentes, então prefiro ''Grande Sertão : Veredas'' - de Guimarães Rosa - uma obra que, lamentavelmente, ninguém conhece. Além de ser um livro genuíno,''Grande Sertão Veredas'' faz contribuições extraordinárias à língua literaria. Vejo em Guimarães Rosa uma solidez e uma consistência extraordinárias. Aquele mundo é realmente mágico! . Nada a ver com ''realismo mágico'' e todas essas porcarias. É um mundo mágico que afeta a linguagem .Isto é que é importante. Outros cultores do realismo mágico na América do Sul ,como Isabel Allende ,por exemplo, seguem fórmulas. Em Guimarães se encontra a verdadeira magia. Isto se encontra tambem em livros brasileiros anteriores, como Macunaíma - uma obra extraordinária. Já li mais de uma vez. Minha primeira negação em relação à obra de Garcia Marquez vem de 1967. Sempre considerei seus livros de um folclorismo e um exotismo realmente desnecessários.
GMN : ...Mas este desprezo por Garcia Marquez não teria também bases políticas, além das razões puramente literárias ?
Cabrera Infante : A adesão de Garcia Marquez a Fidel Castro, tão pública e tão clamorosa, veio depois de ele ter ficado famoso como escritor. Há antecedentes parecidos. Quando Hitler subiu ao poder em 1933, um escritor norueguês premiado com o Nobel, Knut Hamsun, foi a Berlim, para dar a ele a medalha de presente. Eis um exemplo de um escritor se manifestando de maneira imprópria diante de um tirano. Hoje, este escritor é virtualmente desconhecido. Hitler perdeu a guerra. Deixaram o escritor numa espécie de quarentena, em que ele permanece até hoje. O gesto de se associar tão de perto a um tirano é perigoso para um escritor. Porque tiranos têm finais violentos. Isto não é novo. Já acontecia na Roma dos césares, com Nero e Petronio. Grande cortesão,a utor de Satiricon, Petronio sofreu justamente por estar tão perto do tirano.
GMN : Mas o senhor enxerga alguma virtude literária em Gabriel Garcia Marquez ?
Cabrera Infante: Não conheço a obra que Gabriel Garcia produziu depois de ''Cem Anos de Solidão''. Fiquei vacinado. Toda essa pseudo-mitologia sul-americana se manifestava através de uma prosa que não me interessa. É a prosa da ''belle ecriture''. A mim me parece absolutamente detestável'.
GMN : Alguém que não conhece a obra de Garcia Marquez poderia esperar que um simpatizante do ''socialismo real'' produzisse um obra que seguisse os parâmetros do ''realismo socialista'', mas acontece que os livros de Garcia Marques apontam exatamente para a direção contrária - rumo ao delírio do chamado ''realismo mágico''....
Cabrera Infante (interrompendo): ... Mas os que professaram o realismo socialista estavam todos sob uma tirania! O realismo socialista foi produto da tirania de Stalin. Escrevia realismo socialista quem era obrigado.Mas há escritores comunistas, como Jorge Amado, que não escrevem realismo socialista porque não são obrigados a tal, não existe uma tirania no Brasil. Pelo contrário: Jorge Amado também escreveu realismo mágico - e mais socialista não pode ser! Apoiou Fidel Castro! É preciso fazer uma distinção. O que aconteceu com escritores que produziram o realismo socialista aconteceu também com escritores que viveram sob Mussolini, na Itália: tiveram de seguir os ditados estéticos do fascismo. Outra coisa - muito diferente - é viver fora da órbita de um tirano, seja socialista ou fascista. Gabriel Garcia Marquez não é um escritor cubano. O que acontece é que escritores cubanos são obrigados a seguir as várias formas que o realismo socialista pode assumir no trópico. É o caso de um escritor eminente, Alejo Carpentier. Tinha uma obra grande quando vivia fora de Cuba.Ao chegar lá, os livros que produziu ,como ''A Sagração da Primavera'',''O Recurso do Método'' ou ''Concerto Barroco'', foram feitos para aprovação pelo Comitê Central do Partido Comunista Cubano'.
GMN : Jornais sempre citam o senhor como ''o mais importante exilado cubano''....
Cabrera Infante (interrompendo de novo): ''Eu preferiria que me considerassem o mais importante escritor cubano - não o mais importante exilado, porque não tenho atividade política! Sou um escritor. Projeto-me como um escritor. Vivo como um escritor. Meu problema com Fidel Castro é de ordem moral. Não tenho aspirações políticas para quando Fidel Castro desaparecer. Sequer contemplo a possibilidade de regressar a Cuba depois de queda de Fidel. A diferenca é esta. Há exilados eminentes que sao políticos praticantes'.
GMN : O sentimento de inveja é comum entre escritores. Gabriel Marquez é famoso também por ter ganho o Premio Nobel de Literatura. Se alguem imaginar que existe um sentimento de inveja entre vocês dois estará exagerando ?
Cabrera Infante: 'Não de minha parte ! A inveja é genética. Ou se nasce invejoso ou se nasce desinteressado. Não tenho nenhuma inveja literária. É algo que tenho de agradecer aos meus gens - mais do que à providência. Não entendo o que é a inveja literária. Outra coisa seria dizer que eu preferiria viver melhor ou que esta é uma casa modesta ou que eu gostaria de ganhar milhões de dólares. É outra coisa. Mas inveja literária não!
GMN: O senhor diz que Machado de Assis ''não tem rival''. Qual foi exatamente o livro que despertou tanta admiração ?
Cabrera Infante: 'Uso um trecho das ''Memorias Póstumas de Brás Cubas'' no epílogo de um dos meus livros - ''A Twentieth Century Job'', um volume de críticas de cinema. Isto aconteceu quando não muita gente se ocupava de Machado de Assis, pelo menos na órbita espanhola. A gente vê toda esta onda espanhola sobre romancistas do seculo XIX - que teriam sido grandes escritores. Se a medida for Machado de Assis, digo : não são!
GMN : A condição de "dissidente" e "exilado" incorporou-se à vida a ao nome do senhor como um título. É uma maldição ou é uma bênção ter trocado Havana por Londres ?
Cabrera Infante : Há uma inexatidão aí : não sou dissidente. Sou exilado. Os dissidentes vivem no país de que dissentem. Há outros em Cuba que se encarregam desta tarefa. Sou simplesmente um exilado. Se eu levar em conta que aqui em Londres vivo uma vida inteiramente livre, poderia considerar uma bênção o fato de ter chegado à gloria depois de ter escapado do inferno. Mas o exílio traz problemas. Um exilado sempre carregará consigo a terra de onde veio. Terá sempre a idéia de voltar.Tal como Havana, Londres é capital de uma ilha - mas Inglaterra não é Cuba. A Inglaterra tem problemas graves de luz. Sobretudo no inverno, eu padeço dessa falta de luminosidade, dessa ausência de sol. Em Havana, o sol parecia sobrar, sempre. Para mim, hoje, esta é a maior diferença entre viver no trópico e viver em um clima destes. De qualquer maneira, a gente precisa reimplantar a vida em outro destino. Aqui em Londres trabalho à vontade. Você vê esta sala? Eu me sento aqui para trabalhar, vejo atraves da janela toda essa gente agasalhada passar pela rua, com seus abrigos e seus guarda-chuvas. E eu aqui dentro - de camisa - escrevendo. Não preciso ir para lugar nenhum para trabalhar. Assim,sou um privilegiado em relação a estes ingleses que passam lá fora, na rua. Simplesmente, eu me levanto, tomo o café da manhã e começo a escrever. A minha casa é o meu lugar de trabalho. É meu escritorio. É minha fábrica'.
GMN : Exilados cultivam o idioma como o único grande vinculo com o país de onde vieram. O senhor, no entanto, já escreve em inglês, depois de trinta anos na Inglaterra. Não teme se transformar num apátrida literário - um escritor de língua espanhola escrevendo em inglês?
Cabrera Infante : 'Um fenômeno interessante acontece aqui em casa. A TV fala em inglês. Os jornais que leio, os filmes que vejo ,é tudo quase sempre em inglês. Mas tenho dentro de casa um reservatório de língua espanhola - a minha mulher, Mirian Gomes. Sempre conversamos em espanhol. Minhas filhas se comunicam entre elas em inglês ,mas nós sempre nos comunicamos em espanhol. De qualquer maneira, também escrevo bastante em espanhol, nos artigos que publico toda semana na imprensa espanhola ou mexicana. Não aconteceu comigo o que acontece com escritores que aprendem um idioma estrangeiro mas já não falam a língua nativa. Não. A mim me interessa escrever em espanhol. Vejo como uma grande vantagem o fato de ter conquistado a língua inglesa sem ter perdido a língua espanhola.
GMN : O senhor já descreveu o exílio como ''uma estrada sem chão''.Mas, sob o ponto de vista estritamente literário, o exílio pode ser fértil ?
Cabrera Infante : 'Há escritores que se realizam no exílio, assim como há escritores que se destróem. Devo dar gracas a Fidel Castro por ter me convertido em escritor! Eu era um jornalista que fazia sucesso numa revista como crítico de cinema. Ao sair de Cuba, tive de inventar uma carreira de escritor. Porque nunca me interessara escrever livros. Eu gostava era do imediatismo do jornalismo. Mais ainda eu gostava -e gosto- do ambiente de redação de jornal. Trabalhar numa redação de jornal é como estar próximo do paraíso. Aqui em casa criei um ambiente mais ou menos parecido com o de uma redação. O telefone vive tocando. Fico escrevendo. Minha mulher chega para dizer que vai sair. Há ruidos. A televisão fica ligada. E eu escrevendo. É certamente igual a uma redação de jorna''.
GMN : O senhor já se considera um inglês?
Cabrera Infante : Tenho um passaporte inglês.ago meus impostos. Há um ditado que diz que a gente pertence ao lugar onde paga os impostos... Vivo aqui desde l966. Mas não me considero um inglês. Além de tudo, a literatura que me interessa na Inglaterra é a litetatura do passado - não a do presente. Interessa-me Josef Conrad. Ou H.J.Wells. Eu sinto admiração até por George Orwell. Mas agora não sinto admiração por nenhum escritor inglês. O único escritor inglês que eu realmente admirava morreu há pouco : era Anthony Burgess - culto e interessante'.
GMN : Numa entrevista que fiz com ele, Antohny Burgess reclamava de que nós, latino-americanos, nos preocupávamos obsessivamente com política. O senhor concorda ?
Cabrera Infante : A política causou grandes danos a escritores. Julio Cortazar, antes de se envolver tão ativamente com política cubana e nicaraguense, era outro. A partir do envolvimento, comecou a decair. O ''Livro de Manuel'', eminentemente politico, é muito inferior a obras anteriores. A política tem atrativos. Se você se entretém com a política, não sobrará espaco para nada mais. A literatura é exigente. Faço uma previsão: a próxima literatura de importância no mundo de fala espanhola vai se produzir na Espanha. Porque os escritores espanhóis, uma vez morto Franco e uma vez passada a euforia da liberdade, se dedicaram completamente à literatura, enquanto que na América espanhola - não posso falar especificamente do caso do Brasil porque não conheço - todos os escritores jovens estavam preocupados em mostrar e demonstrar suas credenciais políticas. Isto foi fatal! Não há um escritor interessante na América hispânica nos últimos tempos! Todos se referem sempre a Garcia Marquez, Julio Cortazar, Juan Rulfo, Carlos Fuentes... todos já na faixa dos sessenta, setenta anos. Morto Borges, o grande exemplo literário, não havia outro na América hispânica.
GMN : Escritores engajados dizem que exercem a militância política porque uma ditadura deve ser combatida também pela literatura. O senhor acha que este sacrifício estético deve ser feito?
Cabrera Infante: Tenho combatido -e muito- Fidel Castro publicamente. Mas meus textos são sempre concebidos a partir de um ponto-de-vista literário. Não pode haver ataque mais direto e mais contundente à ditadura de Fidel Castro do que os que faco em ''Mea Cuba'', mas sempre em termos literários. A escritura é essencialmente literária: não é política nem panfleto. O maior inimigo da literatura é a política.
GMN : O senhor se declarou apaixonado pela atriz Melanie Grifith...
Cabrera Infante (num suspiro) : Ah,sim....
GMN : Já teve a chance de dizer pessoalmente que era apaixonado por ela ?
Cabrera Infante: 'Os dois - ela e Antonio Banderas (ator espanhol casado com a atriz) - me convidaram para almoçar. Eu disse que não estava me sentindo bem. A verdade é que não queria conhecê-la. É extraordinária. Naquele filme de Brian de Palma,''Dublê de Corpo'', a cena em que ela comeca a gritar sozinha numa estrada, sem se dar conta de que corre risco de vida, é um grande momento de Melanie Grifith como atriz''.
GMN : O senhor não foi ao almoço porque teve medo de sentir ciúmes ou porque não queria correr o risco de sofrer uma decepção ao vê-la pessoalmente ?
Cabrera Infante : Não fui porque prefiro tê-la na imagem - não ''na carne'', como se diz em inglês. Prefiro guardar comigo a imagem da Melanie Grifith que vi nas telas.
GMN: Entre suas admirações, alguém lhe decepcionou quando visto pessoalmente ?
Cabrera Infante: 'Uma das pessoas com quem tive uma enorme decepção depois de vê-lo pela televisão e pelos jornais foi Fidel Castro. Tivemos contato íntimo. Em abril de 59, fomos a Washington, Nova Iorque, Montreal e ao Brasil, antes de seguirmos para Montevideu e Buenos Aires. A intimidade de estar num avião para apenas vinte pessoas em companhia de Fidel Castro durante tantos dias me convenceu de que aquele indivíduo era um horror. Era um avião de hélice. Em direção ao Rio, o avião baixou para que víssemos a floresta amazônica. O piloto disse :''Comandante, estamos voando sobre a floresta!' '.Eu estava sentado no banco logo atrás de Fidel Castro. O que foi que aconteceu? Fidel ficou olhando a floresta não sei por quanto tempo. De repente, disse: ''Que grande país!''. Eu pensava que era admiração pelo Brasil. Mas ele disse :''Aqui é que deveríamos ter feito a nossa Revolução!''. Neste momento, entendi que Cuba era pequena para ele. Fidel se achava um lider tão grande que necessitava de um continente; não de uma ilha.
GMN: Se, num acaso digno de uma das páginas de Garcia Marquez, o senhor se encontrasse com Fidel Castro hoje, num saguão de aeroporto, o que é que o senhor diria a ele?
Cabrera Infante: 'Eu só diria uma frase: 'Você não acha que já chega?.
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