Clovis Beviláqua
Entrevista conduzida por João do Rio, para compor seu livro: O momento literário. Rio de Janeiro: Garnier, 1904.
- Quais os autores que mais contribuíram para sua formação literária?
Ainda no colégio, em Fortaleza, dos 12 aos 14 anos, deliciavam-me os versos e as novelas que podia obter. Como é de imaginar-se, o regime do estabelecimento não nos permitia senão a leitura dos livros de lição e uma ou outra leitura anódina. Chegava-me, porém, aos ouvidos o ruído da literatura como o eco de um movimento realizado num mundo longínquo. E aumentando o meu desejo de conhecer esse mundo ignorado e sedutor, fui conseguindo ler, apesar da vigilância do pessoal administrativo, romances de Dumas, pai, alguns livros de informações como os Varões ilustres do Brasil, de Pereira da Silva, e outros de certo valor artístico.
Pedro de Queiroz deu-me a ler, nesse tempo, o Goethe, mas nessa primeira aproximação não pude compreender as belezas transcendentais do grande poeta.
Passando em 1875 a estudar no liceu, tive mais facilidade de travar conhecimento com os escritores da moda: Gonçalves Dias, Varela, Alencar, Álvares de Azevedo e Castro Alves. Mas justamente quando ia me engolfando na região fantástica da poesia e do romance com os autores citados e quantos me caíram nas mãos, minha atenção foi despertada pelo movimento literário que então se operava no Ceará e a cuja frente se achavam Rocha Lima, Capistrano de Abreu, Araripe Júnior, João Lopes e Amaro Cavalcante. Desse grupo foi Rocha Lima o escritor que mais simpaticamente atuou sobre meu espírito. Por ele comecei a amar a crítica literária e a ter uma compreensão mais verdadeira da literatura. Lendo Taine, Theophilo Braga, Quinet e Luciano Cordeiro, os meus horizontes literários se dilataram e apoderou-se de mim forte desejo de penetrar nas literaturas exóticas, isto é, a portuguesa e a francês, recebendo através desta última o conhecimento dos grandes mestres alemães e ingleses, George Sand, com sua empolgante Lelia, com o Isidora, o Aldo, a Indiana; Gauthier, com o Fortunio e Mademoiselle Maupin; Byron com o Corsário, Manfredo, Giaur e Don Juan; foram os autores de minha predileção, nessa quadra. Isso quanto a estrangeiros, apesar do muito que me encantava Herculano. Entre os nacionais, Alencar tinha para mim o prestígio de uma superioridade ofuscante.
Em 1876 fui continuar meus estudos no Rio de Janeiro, tendo por companheiros Feijó, que se finou antes de revelar todas as refulgências de seu grande talento; Paula Nery e Silva Jardim. Fui assíduo freqüentador, ao lado deste último, da Biblioteca Municipal, situada então no Campo de Santana, esquina da Rua Conde d’Eu; mas lia sem método e com pouco aproveitamento. Não fazia seleção nem talvez pudesse fazê-la. Absorvia Hugo e Schiller de mistura com Escrich e consócios; Musset e Lamartine interessavam-me tanto quanto Shakespeare e Macedo.
No Rio, começara a interessar-me pelo Positivismo, de que me davam conhecimento os escritos de Miguel Lemos; mas foi no Recife para onde me transportei em 1878, que me familiarizei com Litré, cujas obras ainda hoje me ornam a estante e da meditação das quais comecei a extrair uma segura intuição da ordem universal. Por algum tempo o Positivismo seduziu-me, e passaram-me pelos olhos, além dos volumes de Comte, os trabalhos de Wyrouboff, Roberty, Bourdeaux, Robinet e Poly. Comecei depois a sentir as falhas do sistema e, ao concluir o meu curso de Direito em 1882, minhas leituras prediletas, em matéria filosófica, eram Haeckel, Spencer, Langue e Soury. Mais tarde é que Schopenhauer, Noiré, Bain Mill e Wundt haviam se ser estudados.
Com Martins Junior, Clodoaldo Freitas, João Freitas, Orlando, José Carlos e outros excelentes companheiros, embora me preocupassem as investigações filosóficas, mantinha o culto da literatura amena e da crítica literária. Dos nossos, ia lendo os antigos, os românticos e os naturalistas, que começavam a aparecer com Aluízio, e acompanhava com muito interesse as tentativas do romance histórico, sob a excelente feição de um naturalismo tradicionalista, que ia publicando Franklin Távora. Dos estranhos, Flaubert, os Goncourt, Daudet, Sully Prudhonne, Lacomte de l’Isle, alguns ingleses e italianos, mas principalmente Zola, o romancista e o crítico, eram os autores literários que mais doces emoções me despertavam.
Foi nesse momento que os estudos de Sylvio Romero me fizeram compreender que essa alta função da vida intelectual dos povos – a literatura – somente à luz do critério social e etnográfico se pode bem apreciar.
Depois de concluído o meu curso de Direito foi que, por assim dizer, comecei a interessar-me por essa bela ciência, ao lado da qual passara cinco anos sem perceber os encantos. Devo a Tobias esse inestimável serviço de me ter aberto a inteligência para ver o Direito. Durante o curso acadêmico, estudei apenas para cumprir as minhas obrigações e transitar pelas solenidades escolares sem o apoio estranho, mas não podia dedicar afeição profunda a uma ciência na qual não descobria o influxo das idéias que me davam a explicação do mundo.
Incitado pelo ensino de Tobias e guiado por Jhering, vi o Direito à luz da filosofia, da sociologia e da história. Savigny, Bluntschili, Roth, Glasson, Cimbali, d’Aguano, Cogliolo e Post, para citar somente os mais característicos, deram-me a educação jurídica.
No Direito Penal, as minha simpatias se declararam, desde os primeiros momentos, pela Terza scuola de Tarde, Alimena e Liszt.
Mas, ainda que a história e a legislação comparada me dessem a contemplação do fenômeno jurídico no seu máximo brilho e em sua plenitude, é bem de ver que eu não podia me segregar do Direito pátrio, cuja expressão me davam, principalmente, Colho da Rocha, o mais completo discípulo de Mello Freire, e Teixeira de Freitas, o maior dos nossos jurisconsultos.
Talvez apreça longa esta resposta. Mas não a podia dar mas concisa. A formação de um espírito se faz lentamente, por assimilação e adaptações sucessivas.
A história do espírito de cada um de nós reproduz, em miniatura, a história do pensamento de uma época. Mas eu resumo, afinal. Os autores que mais contribuíram para a formação do meu espírito foram:
Em Literatura: Alencar, Taine, Sylvio Romero e Zola.
Em Direito: Tobias Barreto, Jhering, Post, Savigny e Glasson
Em Filosofia: Littré, Comte, Spencer e Haeckel.
- Dentre suas obras, quais as preferidas? Ou mais especificamente, quais as cenas ou capítulos, quais os contos ou poesias mais preferidas?
Qual das minhas obras prefiro? Julgo-as todas imperfeitas, não simplesmente em relação ao que deveriam ser, mas até em relação ao que era lícito esperar que fossem.
Mas, para não fugir a interrogação, direi que o Direito da família e a Criminologia e Direito me satisfazem um tanto mais do que as outras minhas produções; o primeiro, pelas questões de ordem social que me permitiu enfrentar, e a segunda, porque nela meu espírito pode acentuar mais a sua individualidade.
No entanto, o Direito das obrigações é mais sintético do que o Direito da família. Se me pedissem um trecho para uma coletânea, eu o iria escolher, de preferência, nos Juristas filosóficos; e, se fosse falar como técnico, talvez devesse dar a primazia ao Direito das sucessões.
Falo somente das obras jurídicas, porque fiz do Direito a minha especialidade, e portanto são as obras produzidas nesse domínio que devem dar a medida do meu espírito, quaisquer que sejam as minhas predileções literárias ou filosóficas.
- Analisando a prosa e a poesia contemporânea, parece-lhe que atravessamos um período estacionário, há novas escolas literárias ou há uma luta entre as antigas e modernas? Neste último caso, quais são elas? Quais escritores contemporâneos as representam? No seu julgamento qual deve predominar?
Penso que a literatura pátria não atravessa um período estacoário. Os nossos grandes escritores estão em atividade: Sylvio, como Araripe e Veríssimo; Bilac e Netto, como Arinos; Machado de Assis, como Domngos Olympio ou Euclides da Cunha.
Quer me parecer que em poesia os moldes estão gastos, porque o artifício matou a espontaneidade do sentimento, mas daí talvez resulte uma vantagem: muitas inteligências deixaram o Parnasso, onde somente os verdadeiros poetas ficarão empunhando a lira eterna das emoções reais.
No romance, a escola naturalista perdeu os tons rudes e as arestas mais ásperas: tornou-se flexível e adaptável a todas as lutas de sentimentos, seja individuais e íntimos, sejam sociais e externos.
Machado de Assis, Domingos Olympio, Graça Aranha e Xavier Marques, pois que Inglês de Souza está recolhido ao silêncio, são os nomes que me vem à lembrança ao considerar esta nova feição do romance nacional.
O conto é gênero que reclama esforço menor e, por isso mesmo, se mostra mais abundante. Arthur Azevedo, Medeiros de Albuquerque, Lucio de Mendonça, Arinos, Netto, Freire, Neves e tantos outros vibram todas as notas.
Fujo de uma forçosamente deficiente nomenclatura: indico tendências apenas para mostrar que não estacionamos.
- O desenvolvimento dos centros literários nos estados tenderá a criar literaturas à parte?
A literatura brasileira é uma só; mas, como as condições do meio físico e da composição étnica não guardam uniformidade em toda a vasta extensão do país, é natural que, ema alguns centros, se acentuem variações que, aliás, pela constante permuta de idéias e pela influência recíproca exercida pelos maiores núcleos, tendem a ser assimiladas ou a desaparecer no fim de pouco tempo.
- O jornalismo, no Brasil, é um fator bom ou mal para a arte literária?
Leitor constante de jornais, não sou muito simpático ao jornalismo. Sem negar-lhe o valor cultural, acho que, em relação aos que nele trabalham, esgota as energias, dispersa os esforços e alimenta a superficialidade; e, em relação aos que nele bebem idéias, mais vezes perturba do que bem orienta, mais vezes agita paixões do que esclarece opiniões.
É uma forte projeção de luz envolvida em densa fumaça.
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