Cristovão Tezza
Entrevista conduzida por Rafael Urban, publicada na Revista Entrelinha nº 20, de abril de 2006, obtendo o 3º lugar na categoria Reportagem Impressa no 11º Prêmio Sangue Novo no Jornalismo Paranaense
Quando moleque, não passou no exame de admissão do colégio Estadual: reprovou em português. Nascido em Lages e paranaense desde os dez anos, Cristovão Tezza é um escritor com T maiúsculo. É um falso tímido, de riso fácil. Professor de língua portuguesa na Universidade Federal do Paraná, diz que a faculdade é o que sustenta o seu alter ego: o escritor Tezza. Diz também que “só uns quatro ou cinco escritores brasileiros poderiam viver só dos livros”; comentário um tanto exagerado que esconde os R$ 36 mil que ganhou pelo prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance brasileiro de 2004, seu livro “O fotógrafo”. Outros de seus romances mais famosos são “Trapo”, que gerou um causo curioso com o poeta Paulo Leminski, e “Breve espaço entre cor e sombra”. Seus livros usam Curitiba de pano de fundo e seus personagens percorrem suas ruas e pontos históricos. Já publicou dez romances. Um das marcas de seu texto é a presença de mais de um narrador: em Trapo, vemos a história do ponto de vista do professor Manoel, que estuda o poeta Trapo, e paralelamente do ponto de vista do poeta, através de seus poemas. Em 2003, publicou um ensaio sobre Mikhail Bakhtin, que era, na verdade, sua tese de doutorado. E, falando em Leminski, o doutorado foi “uma pedreira”. Quando mais jovem (hoje tem 53 anos), foi um “bicho-grilo”. Fazia teatro, foi da marinha mercante, trabalhador ilegal na Europa e ainda relojoeiro. Tinha enorme paixão pela profissão, mas percebeu que os consertos de relógio não sustentariam suas ambições literárias. Já era escritor “antes de saber escrever” e aos 13 anos fez seu primeiro livro, que era “muito ruim”. Começou, lendo “A chave do tamanho”, de Monteiro Lobato. Adorava ler Julio Verne. Agora são seus livros que estão sendo lidos pelos jovens. Quando um deles é escolhido para a lista de livros do vestibular, sente-se subitamente “odiado por 30.000 pessoas”. Tem dois irmãos e uma irmã. A morte do pai, aos sete anos, marca duas vidas: “Tem a de antes e a de depois”.
- Por que escrever?
Há uma razão em cada diferente momento da vida, mas acho que não há uma resposta universal. Num primeiro momento, foi uma fuga, uma afirmação e imitação. Num segundo momento, passou a ser uma ética, ou seja, era uma postura diante do mundo; escrever era uma maneira como eu me definia. Anos depois, escrever passou a ser parte de uma cultura literária: fazer o diário de uma pátria literária que não tem fronteira, “fazer parte disso aí”. E, finalmente, hoje eu escrevo porque não sei fazer outra coisa.
- Escrever, para você, ainda é imitar?
Não, hoje já é outro momento. O processo de escrever tem uma coisa interessante: você é escrito por aquilo que escreve, ou seja, ficar muito tempo sozinho para escrever é um processo que vai te moldando. Você, de certa forma, vai se situando no mundo. É um processo de transformação: você nunca sai igual do outro lado dele. Quando acaba, você já é um pouco outra pessoa. Então, escrever, mais do que fazer um objeto, é viver uma experiência de mundo.
- Como você trabalha as diversas vozes no seu texto, a polifonia?
Não gosto de usar a palavra polifonia porque ela se confunde com a definição técnica da palavra segundo Bakhtin. Não acho que sou o escritor polifônico da maneira como ele (Bakhtin) coloca. Aliás, quase ninguém: só o Dostoievski conseguiu realizar da maneira como Bakhtin entendia. O que Bakhtin tinha em mente (com a polifonia) era uma visão filosófica de mundo. Uma filosofia que desse conta da multiplicidade da vida, em vez de fechar num ângulo só. A minha literatura, de certa forma, tem esse traço. Existe nela uma multiplicidade de pontos de vista em que um olhar ilumina o outro. Praticamente todos os meus livros têm essa duplicidade dos pontos de vista. Não sei explicar bem o porquê, mas foi uma coisa que foi amadurecendo no meu trabalho. E um dos traços da literatura é capacidade de apreender o mundo por um olhar que não é o nosso; ser capaz de se transportar para outros pontos de vista e conhecer o mundo pelo lado de lá. Nenhuma outra linguagem tem esse poder. Todas são afirmações unívocas do sujeito: um ensaio, um artigo, são unilaterais. Já a literatura dá essa transcendência.
- Um leitor relatou que durante a leitura de “O fantasma da infância” praticamente desistiu de ler porque não estava entendendo. O fato de você contar as histórias em paralelo o havia confundido. Quando ele percebeu que eram duas “histórias”, resolveu ler uma delas até o fim, pulando as outras páginas. Você escreveu as partes separadamente?
O “Fantasma da infância” foi realmente o caso mais fechado de duas histórias entrelaçadas. O personagem de uma história está escrevendo a outra história. Existe uma confusão de nomes propositada. E naquele caso escrevi rigorosamente um capitulo após do outro, alternadamente. Era muito louco. Eu tinha que entrar no clima para dar o contraponto. Já no “Trapo“ fiz algumas montagens. Algumas cartas do Trapo (personagem do romance), eu remanejei. Mas digamos que oitenta por cento do Trapo foi escrito em seqüência.
- No posfácio da primeira edição do seu livro, “Trapo”, publicado em 88, o poeta Paulo Leminski faz duras críticas ao livro...
É o único posfácio de um livro que é contra um livro, que fala mal do livro. Na verdade, eu nem fui consultado, foi uma decisão unilateral da editora (Brasiliense). E um fato curioso é que teve uma greve do correio na época, e eu demorei muito para ver o livro. Só tinha visto uma notícia no “Estadão” dizendo que tinha saído o livro com o posfácio do Leminski. Fiquei muito curioso. Corria atrás e não achava o livro, e o que a editora mandou pelo correio não chegava. Só um mês depois fui ver e quando vi me deu um frio na espinha. Pensei: “Poxa, é o primeiro livro que edito nacionalmente, e esse babaca do Leminski fala mal!” [Risos]. Eu não o conhecia muito, não tinha contato com ele. Depois ele disse que se reconheceu no “Trapo”, ele achou que eu estava querendo retratá-lo.
- E você não estava? (Trapo era o apelido do personagem, um poeta suicida de nome Paulo).
Não! De maneira nenhuma. Nem me passou pela cabeça. O personagem (apelidado de Trapo) se chamava Paulo, mas também por um acaso total. Conheci um Paulo que foi preso pela polícia por porte de drogas e na hora de colocar o nome do personagem – nome que só aparece uma vez – escolhi Paulo porque achava que combinava com aquela figura. O personagem era um adolescente típico, que tinha problemas, e o Paulo entrou por causa disso. Como o livro era editado pela Brasiliense e como o Caio Graco (editor) era um grande comerciante, queria um nome de impacto na capa do livro. Eu era um escritor praticamente desconhecido, não é a toa que o nome dele na capa era maior que o meu [risos]. No posfácio, ele diz que não gostou do livro, que eu fui influenciado por Bukowski – escritor que eu ainda não conhecia na época – e que o livro era só uma boa idéia (que poderia ter sido um bom livro). Esperei quatro edições para poder tirar o posfácio. Só pra frisar: não tenho nada contra o Leminski. Ele é um grande poeta, de importância fundamental, e isso é puramente uma anedota. Eu era um escritor praticamente desconhecido, não é a toa que o nome dele (Leminski) na capa era maior que o meu.
- Por que seus livros não têm prefácio?
Sou um lobo solitário. Meus livros nunca têm orelha de ninguém, é sempre a editora que prepara os textos de apresentação e na contracapa. O livro se apresenta sozinho.
- Em algumas das entrevistas disponíveis no seu site (www.cristovaotezza.com.br), você afirma que compra seus primeiros livros sempre que os encontra nos sebos...
[Risos] Brinco sempre com isso. O primeiro foi “A cidade inventada”, um livro de contos que escrevi durante quinze anos. Ao mesmo tempo, lancei um romancinho juvenil, pela coleção “Novos escritores” o livro “Gran Circo das Américas”, que era muito fraco também. E depois saiu o “O terrorista lírico”, também por uma editora local. Certa vez, comprei um estoque. Tinha uns cinco ou seis – estavam em liquidação num balaio – e comprei todos.
- Numa entrevista, em 1988, ao “Jornal dos Bancários”, você afirmou que teria vontade de reescrever o livro de contos “daqui uns vinte anos”...
Sempre tive um sonho de escrever um bom livro de contos. Como eu não tenho mais imaginação para escrever contos, às vezes fico vampirizando meus próprios contos. Quando uma revista me pede para escrever um conto, eu vou ao “Cidade inventada”, pego um, reescrevo, dou uma burilada e solto. Eu não tenho o olhar de contista. A idéia de voltar a publicar um livro de contos sempre me vem à cabeça, mas éum projeto sempre jogado mais para frente. Nunca vale a pena voltar ao passado, isso é algo que sempre digo.
- Hoje, sua literatura é madura?
É, tanto quanto pode ser. Acho que sim, sou um escritor maduro. Hoje a questão técnica não é mais um problema. Agora é comigo, eu estou sozinho na literatura.
- Muitos dos seus personagens lutam com a própria mediocridade: isso é um dos marcos da sua literatura. Você se sente uma pessoa lutando contra a própria mediocridade?
Acho que sim, mas não no sentido juvenil, em que você tem uma relação agressiva com o mundo. Isso para mim, hoje, nem passa pela cabeça: estou só vivendo. Aliás, eu tenho uma visão bastante voltada ao homem comum. Nos meus últimos livros, minha visão tem sido bastante tolerante.
- “Biscoito fino”: A sua arte se encontra nessa definição?
Bem... Essa expressão é muito datada. É de uma época em que a prosa, para ser tida como prosa, tinha que ser outra coisa. Acredito que isso já não tem mais sentido hoje. Eu tenho alguns livros mais difíceis de apreensão, como é o caso de “Breve espaço entre cor e sombra”, livro de que gosto muito. É um livro mais sofisticado, que exige certa formação, e às vezes as pessoas se perdem no meio. É um livro que foi muito elogiado.
- Você escreve pensando numa elite?
Não. De maneira nenhuma. Eu escrevo para mim mesmo, só que eu, sozinho, sou os outros também. Mas nunca pensei – objetivamente – para escrever para isso ou para aquilo. Tenho pouco controle: é uma ilusão achar que o escritor tem controle total sobre a escrita. Alguns escritores conseguem. No meu caso, não. Eu tenho uma vaga idéia na cabeça, consigo fazer o esqueleto narrativo e no momento em que descubro uma linguagem começo a escrever o livro e daí ele vai se automodificando, mudando as intenções e até pegando outro tom, completamente inesperado, mesmo porque eu deixo a intuição correr solta.
- No livro “Breve espaço entre cor e sombra”, existe uma linguagem muito técnica voltada à pintura...
Passei um bom tempo vendo pinturas, estive na Itália – tinha uma personagem italiana. Foi uma época de leitura intensa para mim. Mas deu um grande prazer, pois gosto muito de ler.
- Você pesquisa para fazer seus livros?
Não, eventualmente não. Para “O fotógrafo”, pesquisei um pouco sobre revelação, mas como gosto muito de fotografia o tema foi facilitado. Minha literatura trata de temas muito contemporâneos...
- O livreiro Eleotério de Oliveira Burrigo disse que “por muito tempo, Tezza viveu à sombra de Dalton”... Comente.
O Dalton não só é um grande escritor como um dos grandes contistas do século XX. Eu sempre tive uma relação muito boa com a literatura do Dalton e bebi muito do que ele escreveu. Aquela questão da transcendência que ele dá a Curitiba. A questão da linguagem dele – acredito que todo escritor brasileiro deve alguma coisa ao Dalton, aprendeu algo com ele. Também existe a questão de que trabalhamos em campos diametralmente opostos. Eu tomei meu rumo: escrevo romances, grandes empreitadas. Mas nunca senti essa sombra. Nunca me intimidei pela presença do Dalton; muito pelo contrário: fui estimulado.
- O fato de ele ser um ícone não atrapalhou seu sucesso?
De forma nenhuma. Na literatura, cabe um monte de gente. Mas Curitiba tem isso de: “o” arquiteto, “o” escritor, “o” músico.
- Você é um grande escritor?
Como? (risos) Não. Eu sou um escritor. A grandeza vem do olhar de fora.
- E como você se vê como escritor?
Olha... Isso aí já saiu da minha cabeça como fonte de preocupação. Tem um momento em que estou escrevendo e penso: “eu sou um gênio”. Mas daí vou ler no dia seguinte e penso: “Isto aqui está uma droga!” (risos) São estados emocionais, altos e baixos, durante o momento em que estou escrevendo. É puramente instantâneo. Eu tenho uma boa relação com o que escrevo, eu gosto do que escrevo. Mas, mais que isto, esta é uma preocupação que não tenho.
- Como é a relação escritor-professor?
É complicada. É esquizofrênica. Não dou aulas de literatura, mas de língua portuguesa. Mas desenvolvo um lado que me agrada muito, que é trabalhar com um material didático para a língua portuguesa e com a teoria do Bakhtin. É uma relação fantástica, porque o fato de ser professor me dá as condições de sobrevivência para escrever (risos). É o trabalho ideal; não sei se como publicitário ou jornalista teria condições de escrever como escrevo, sendo professor é mais tranqüilo.
- O personagem Constantin, de “Breve espaço entre cor e sombra”, tem alguma relação com o livro “A Montanha Mágica” ?
Eu pensei na “Montanha Mágica” em alguns momentos. Especialmente quando eles estão voltando do cemitério. Eu chego a citar o livro. Tem alguma coisa, mas é episódica.
- Quais são suas influências literárias?
Tem uma família de escritores que me marcaram. Balzac, Dostoievski e Joseph Conrad. No Brasil, Machado de Assis, escritor que se dedicou ao Brasil urbano; Graciliano Ramos, escritor de que gosto muito. Carlos Drummond de Andrade foi uma influência de texto muito grande, decorei muitos de seus poemas, e ele talvez seja o melhor escritor brasileiro do século XX. Depois, num outro momento, o Camus e o Faulkner. Fui também muito ligado ao teatro e li muito o teatro americano, Arthur Miller, Tennessee Williams... Fui muito influenciado pelo teatro. Se você pegar o Trapo como exemplo, a casa do “seu Manoel” é um palco. Tanto que quando eu o adaptei para o teatro foi muito fácil. Quando eu tinha uns 17 anos, li o “Contraponto” do Aldous Huxley, e achei que fosse o livro perfeito. Talvez minha idéia de contrapontos venha daquela época. É uma literatura forte e ideológica. É impressionante como os personagens dos livros de Huxley têm uma cabeça parecida com a das pessoas de hoje.
- Esse modelo de seus livros, em que um discurso ilumina o outro, é definitivo? Todos os seus livros vão ser assim?
Não. Isso vai acontecendo. O livro que é mais unilateral é o “Luciano Pavollini”. Apesar de eu ter inventado um contraponto em que ele (o personagem tema do livro) está escrevendo para uma psicóloga (Clara, que nunca aparece no livro): “Clara pede que eu converse sobre a infância. Eu tinha tudo para dar certo, exceto a família”... É o personagem preso escrevendo para a psicóloga. Apesar dele nunca vê-la, o fato de ela existir ressoa no seu discurso. Ainda tenho vontade de escrever um livro contando a história do personagem saindo da cadeia e conhecendo Clara.
- Não contar tudo para o leitor é algo que você valoriza em seus livros... O que seria isso na literatura?
(Risos) O olhar da gente é incompleto. A literatura clássica do séc XIX, por exemplo, é mais ou menos esgotante. Ela dá todos os sinais: ela pressupõe que o narrador é capaz de dar conta de toda a realidade e constrói essa realidade com um olhar totalizante. Isso acabou. Hoje se parte do principio de que o olhar falha, ele não tem controle do tempo e do espaço. Mesmo quando estou narrando em terceira pessoa, “assume-se” a incompletude do olhar; é como se estivesse narrando em primeira pessoa. Existe a necessidade de deixar o suspense. Acho que o suspense é a prova de que a História (com “H” maiúsculo) não está pronta, o mundo não está pronto, e nem as pessoas estão acabadas. Isso é a prova de que as coisas podem mudar, podem ir tanto para um lado como para outro: um certo livre arbítrio... falso (risos).
- “O fotógrafo” é o seu melhor livro?
Não sei... Talvez sim... Acho que escrevi em gêneros um pouco diferentes. Para uma linha... não sei... Tenho dificuldade em dizer qual é o melhor... Acho que todos são bons (risos). Talvez seja o mais completo. É um tipo de leitura.
- Você quer dizer que depende da pessoa?
Depende da pessoa. É um livro formalmente mais fechado que o “Breve espaço entre cor e sombra”, que tem seus momentos irregulares, apesar de apresentar momentos emocionais mais intensos. “O fotógrafo” é um livro mais homogêneo, mais equilibrado.
- Seu português é impressionantemente preciso. Qual a importância dos conhecimentos de língua para um escritor?
É fundamental. A literatura não é uma arte ingênua, nem primitiva. Ela pode até ser – existem manifestações literárias ingênuas, por exemplo, o cordel do Nordeste –, mas a prosa romanesca moderna exige um dominio lingüístico. É uma ferramenta do escritor.
- Quão autobiográficos são seus livros?
Os meus livros não são autobiográficos no sentido tradicional da palavra. Até porque eu teria que ser um louco completo: entre meus personagens, tem todo tipo de maluco. Eles são confessionais, no seguinte sentido: a estrutura do meu romance como gênero é confessional. Meus livros, tanto em primeira como em terceira pessoas, se situam como confissões, e isso dá uma ilusão autobiográfica muito grande... Mas é um disfarce. Eu diria que, de autobiográfico, há algumas emoções eventuais e fragmentadas.
- O cineasta Jean Cocteau, certa vez, foi questionado por um jornalista: “Se sua casa estivesse pegando fogo e pudesse levar apenas uma coisa consigo, o que levaria?” Cocteau respondeu: “Eu levaria o fogo”. Qual a sua resposta?
(Risos) Se eu estivesse escrevendo um livro, eu levaria meu original. Aliás, eu escrevo à mão e tenho pesadelos de perder os originais.
BATE-BOLA
Profissão: escritor.
Cidade: Curitiba.
Curitiba: Curitiba sou eu.
Paranaense: uma coisa difusa.
Literatura: um modo de viver.
Crítica: a frieza necessária.
Romancista: um modo de olhar.
Um livro: “Irmãos Karamazov”, de Dostoievski.
Um filme: qualquer um do Fellini.
“Um” filme: “Amarcord”, do Fellini.
Uma obra: “Montanha mágica”, de Thomas Mann.
Teatro: Tennessee Williams.
Tempo: agora.
Presente:
[- No sentido de tempo?
- Na sua interpretação...]
Presente é um livro.
Passado: um motor.
O futuro: é agora.
Universidade: é o ganha pão (risos).
Lemisnki: um poeta.
Dalton: prosador.
Professor: uma belíssima profissão.
Doutorado: uma pedreira! (Risos).
Cultura: a nossa fôrma.
Drogas: melhor não tê-las.
Família: “É o templo do demônio”, dizia o Trapo (risos).
Fim: não tem fim.
Relojoeiro: é a máquina do mundo (risos finais).
x.x.x
Entrevista conduzida por Fernando de Oliveira, publicada no Diário Regional (PR), de 12/08/2012
Premiado escritor analisa sua trajetória literária no recém-lançado O Espírito da Prosa. Autor do aclamado O Filho Eterno (2007), Cristovão Tezza, um dos mais importantes e premiados escritores brasileiros contemporâneos, está de volta às livrarias. No livro-ensaio O Espírito da Prosa – Ua Autobiografia Literária, recém-lançado pela editora Record, o catarinense radicado em Curitiba analisa sua formação como escritor. Para isso, relembra, entre outras coisas, a infância em Lages, a morte trágica do pai num acidente, o envolvimento com um grumpo de atores de teatro marginal em Antonina, no litoral paranaense, na década de 70, a influência de determinadosautores em sua vida- e conta como precisou se despir das utopias de sua geração para se tornar um romancista, adepto da prosa realista. Dessas memórias emerge uma reflexão pungente sobre o ofício de escritor, a arte de escrever. Ex-professor universitário que deixou a vida acadêmica para viver dos livros e estudioso do linguista russo Mikhail Bakhtin (1895- 1975), objeto de sua tese de doutorado, Tezza falou ao Diário, nesta entrevista.
Diário Regional - Por que se tornou escritor?
Cristovão Tezza - Esta questão forma o tema central de O Espírito da Prosa. É uma longa conversa. Se eu contar tudo aqui, ninguém vai ler o livro!
DR - O senhor pode falar sobre o seu processo de criação? Quando trabalha? Como pensa a ficção?
Tezza - Trabalho sempre pela manhã, de segunda a sexta, entre 8 e 11 horas. Levo cerca de dois anos para escrever um romance, que começa com uma ideia muito vaga, que vai crescendo na minha cabeça, até que eu comece a escrever. Dali para a frente, é trabalho duro.
DR - Seu contundente O Filho Eterno conquistou os mais importantes prêmios da literatura brasileira e tornou-se sucesso de vendas. Como a fama obtida com essa obra mudou sua vida de escritor? Afinal, é difícil viver só de literatura no Brasil, não?
Tezza - Eu já estava há alguns anos com a ideia de largar a universidade e viver apenas para a literatura. O Filho Eterno me ajudou muito a realizar esse velho projeto. Com o sucesso do livro, passei a ser convidado a muitos eventos literários que hoje existem em abundância abundância no país: feiras, simpósios, festas literárias. Era o empurrão que eu precisava para mudar de vida. Pedi demissão da universidade e hoje vivo dos meus livros. Eu diria que há 10, 20 anos, era praticamente impossível viver de livros no País, mas hoje isso mudou. Há muita gente da nova geração de escritores que sobrevive em torno da literatura.
DR - Em O Filho Eterno o senhor fala sobre a relação com seu filho portador da síndrome de Down. Acredita que o tratamento dado aos portadores de síndrome de Down tenha mudado a partir dessa obra?
Tezza - Não, de modo algum. O meu livro é um trabalho de ficção, um romance sobre a relação entre um pai e um filho especial, e também sobre um período da história brasileira recente; é literatura, e não um manual de orientação sobre nada. Não vamos confundir as coisas. O Brasil conta com instituições e profissionais altamente competentes trabalhando na área da síndrome de Down.
DR - O escritor argentino Manuel Puig disse certa vez: “Os livros têm a
qualidade maravilhosa de mostrar outras vidas. Eles podem nutrir muito”. O que acha disso?
Tezza - É uma definição certeira da literatura. A ficção é um modo extremamente rico e generoso de representar as pessoas e o mundo, afirmando a originalidade dos pontos de vista
DR - A literatura ainda tem importância social?
Tezza - Acho que sim. Não tanto quanto já teve em outros tempos, quando a literatura estava no centro quase que absoluto de todas as discussões culturais, filosóficas e éticas do tempo. Hoje a competição com outras linguagens é grande, mas a literatura mantém a sua grande importância.
DR - O senhor foi um dos jurados que selecionou os 20 textos para o número da famosa revista Granta dedicado “aos melhores jovens escritores brasileiros”. Essa coletânea revela uma renovação da prosa romanesca no Brasil. Como analisa essa questão?
Tezza - Está surgindo uma nova geração de escritores que vem dando uma grande renovada na produção brasileira, depois de algumas décadas em que a nossa prosa perdeu muito espaço. Há uma troca muito grande de informações via internet, uma internacionalização das fontes e da leitura. A seleção da Granta é bastante representativa desta renovação.
DR - A que atribui esse novo momento da literatura brasileira?
Tezza - Muita coisa ao mesmo tempo: a intensa urbanização brasileira das últimas décadas, a estabilização política que deixou mais livre e solta a produção ficcional, uma nova geração que não tem mais a memória e os cacoetes dos anos 70, a explosão globalizante da internet. Enfim, o mundo mudou.
DR - Recentemente o senhor incursionou nos contos com o livro Beatriz. Como vê o atual momento desse gênero no Brasil?
Tezza - Os contos nunca deixaram de ter presença na literatura brasileira. Os editores é que costumam falar mal deste gênero, com o argumento de que o conto vende pouco. Durante um tempo, desapareceram as revistas literárias de ficção, um espaço ideal para o conto. Mas hoje, com a internet, esse espaço está voltando com toda força.
DR - O senhor foi professor universitário de 1984 até 2009, primeiro na UFSC e depois na UFPR. Como avalia esse período e por que se deu a ruptu com a vida acadêmica?
Tezza - Em O Espírito da Prosa eu analiso essa passagem da minha vida, que foi complexa para mim. Minha ruptura foi apenas um modo de continuar escrevendo, quando eu não conseguia mais conciliar a universidade com a literatura.
DR - A crítica universitária brasileira de hoje tem a mesma influência da época da ditadura militar, quando a universidade determinava, digamos, a pauta literária do País?
Tezza - A internet implodiu as fontes de informação e referência, aqui e no mundo inteiro. Na época da ditadura, a crítica acabou se refugiando na universidade, até por falta quase que total de alternativas. E havia um quadro teórico predominantemente formalista, que chegou ao Brasil via França, que não favorecia especialmente a prosa romanesca. Hoje isso mudou. Claro, a universidade será sempre um centro poderoso de prestígio teórico e cultural, mas hoje ela não está mais sozinha, o que eu acho bom, porque é estimulante.
DR - A leitura da poesia de Carlos Drummond de Andrade foi muito importante para sua forma formação, como já disse. E no seu novo livro o senhor conta que começou a escrever como poeta. Por que desistiu da poesia?
Tezza - Num momento me descobri definitivamente prosador. Mas, como se sabe, todo prosador, no fundo, é um poeta frustrado...
DR - O que está escrevendo agora?
Tezza - Tenho apenas uma ideia vaga na cabeça Pela primeira vez em muitos anos, não tenho nada começado. Quero descansar bastante por um ou dois anos.
DR - Próximo de completar 60 anos, que balanço faz de sua carreira? O que ainda busca alcançar?
Tezza - Sinceramente: não faço nenhum balanço e não penso em alcançar nada. Só vou vivendo, um dia depois do outro.
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