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Grandes entrevistas

Gilberto Freyre

Entrevista conduzida por Ricardo Noblat, publicada na Playboy, março de 1980

 

 

O antropólogo e sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) é autor de um clássico da literatura: Casa Grande e Senzala, publicado em 1933. É o livro definitivo da história da formação da sociedade brasileira. Ele trata da presença e influência do negro na estrutura familiar do país, da cama à mesa, da cidade ao campo. Casa Grande e Senzala irritou a elite branca, que descobriu em suas páginas a tese, provocativa, de que o negro havia contribuído muito mais para a cultura brasileira do que a elite imaginava. Nesta entrevista à Playboy, concedida ao então chefe da sucursal da Veja em Salvador, Ricardo Noblat, Freyre esteve particularmente inspirado: não demonstrou pudor em chamar Oscar Niemeyer de “chato e ignorante”, admitiu aventuras homossexuais depois dos 20 anos de idade (“foram poucas e não satisfatórias") e reconheceu ter traído sua mulher (“foi com mulheres exóticas, que me interessava conhecer do ponto de vista antropológico”).

As homenagens ao ainda rijo senhor começaram em dezembro passado e se prolongarão por todo esse ano, mas só atingirão o seu ponto máximo no dia 15 deste mês, quando o sociólogo, antropólogo, pintor ou, sobretudo, escritor, como ele prefere, Gilberto de Mello Freyre completa 80 anos, vividos intensamente, amigos e inimigos tudo poderão dizer menos que ele não viveu sempre em evidência.

Foi sempre a notoriedade que Gilberto Freyre perseguiu e saboreia até hoje, seja adiantando-se à sua época na formulação de idéias ousadas, seja contestando modernismos e assumindo posições tidas como reacionárias. Crítico feroz da ditadura do Estado Novo apoiou entusiasticamente o movimento militar de 1964 e hoje o critica. Não tem nem nunca deu a impressão de ter qualquer acanhamento em parecer contraditório.

Filho de um juiz e professor de direito e de uma senhora da aristocracia da cana-de-açúcar em Pernambuco, Gilberto Freyre estudou nos Estados Unidos e na Europa dos 18 aos 23 anos. Seu retorno coincidiu com a revolução provocada pela Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo e, de pronto, ele se declarou um tradicionalista e regionalista. Para exprimir essas posições, ele se permitiu requintes como o de certa vez, de fraque e cartola, ir a uma festa transportado por um tílburi. Conta-se também, e ele desmente, que chegou a promover, no Recife dos anos 20, uma caça à raposa em moldes rigidamente britânicos.

Mas as idéias que ele defendia com tanta petulância ganhariam corpo e notoriedade só em 1933, quando lançou sua obra mais importante, Casa Grande e Senzala, que já tem 21 edições no Brasil e três em Portugal, e foi traduzida para o inglês, o alemão, o francês, o russo, o italiano, o iugoslavo, o polonês e o espanhol. Desde então, além de produzir dezenas de livros e opúsculos, Gilberto Freyre tem se dedicado a colecionar lauréis e hoje, certamente, é o brasileiro mais homenageado por universidades européias e norte-americanas. Tem, inclusive, o título de Sir, conferido pela rainha Elisabeth II da Inglaterra.

A glória, como costuma acontecer, tornou-o um homem vaidoso, muito vaidoso mesmo, sempre a lembrar as homenagens que obteve e a cobrar outras. Nem por isso é um homem antipático. Pelo contrário: informal, acessível, apreciador de uma boa conversa, de uma boa peixada e de vinhos e licores importados, ele recebe sem cerimônia, em seu antigo casarão no bairro de Apipucos, em Recife, gente famosa e mortais comuns. Sempre assessorado por sua mulher, dona Madalena, mais de vinte anos mais nova que ele, e vez ou outra interrompido pelos três netos que lhe deu Fernando, um de seus dois filhos, que mora numa casa vizinha.

O repórter Ricardo Noblat, chefe da sucursal da revista Veja em Salvador, foi a Recife entrevistar Gilberto Freyre para Playboy e descreve assim a casa do sociólogo (que ele, Gilberto, chama de Solar de Apipucos).

Povoam-na antiqüíssimos e pesados móveis de jacarandá, telas das melhores fases de Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Pancetti, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. E também uma preciosa coleção de objetos artísticos de diversos países que Gilberto já visitou. Esse magnífico acervo já foi visto e tocado por visitantes como Aldous Huxley, John dos Passos, Roberto Rosselini, Robert Kennedy, Albert Camus e Arnold Toynbee, entre outros. Foi nesse cenário, ora comodamente sentado numa cadeira de balanço, ora displicentemente deitado num marquesão, que Gilberto Freyre falou a Playboy, durante três dias. Gentil o tempo todo, ele serviu sucos de frutas do Nordeste, cafezinhos, mas dessa vez esqueceu um de seus hábitos mais festejados pelos amigos: não ofereceu batida de pitanga a que atribui poderes afrodisíacos e cuja receita não ensina por dinheiro algum.

 

Playboy – Quer seus adversários queiram ou não, o senhor é uma personalidade de dimensão internacional. Em que medida isso o atinge?

 

Freyre – Isso me dá um senso muito agudo de responsabilidade. Por exemplo: você é um jornalista idôneo, representa uma revista de peso, que forma opinião no Brasil, de modo que cada pergunta sua exige de mim, dada essa minha dimensão internacional, respostas responsáveis, não levianas, não apenas para satisfazer a sua curiosidade, de modo superficial.

 

Playboy – As vantagens do sucesso são óbvias: o reconhecimento, os lauréis, os títulos. E as desvantagens?

 

Freyre – A desvantagem é que você fica muito exposto ao chato [risadas]. Essa é a desvantagem principal, porque o chato existe e não é só brasileiro: o chato é internacional... E você tem de se defender sem magoar aquilo que o chato bem-intencionado representa. Porque o chato por vezes é bem-intencionado. Ele não é chato porque quer ser: ele é chato porque é chato.

 

Playboy - Cite alguns chatos.

 

Freyre – O Oscar Niemeyer, meu amigo, que é um arquiteto genial. É muito ignorante. É difícil você manter uma boa conversa com ele. É que ele, como o Arraes, não sendo um homem de inteligência muito abrangente, repete muitos os chavões que aprendeu. Como você sabe, um dos sucessos do comunismo marxista russo-soviético é dispensar seus slogans e chavões. Mas há pessoas que são muitíssimo mais interessantes escrevendo do que falando. Rubem Braga é assim: conversando ele é quase um chato. Já o Ariano Suassuna é o contrário. Mas há chatos que você tem de respeitar e admirar, por sua integridade...

 

Playboy – Por exemplo.

 

Freyre – O general Castello Branco.

 

Playboy – O senhor citou também Miguel Arraes.

 

Freyre – O Arraes eu diria que é um misto. Ele pode se tornar não só chato como chatíssimo, quando repete aqueles chavões marxistas, louvadas chatices. Mas quando ele era ainda o Arraes cearense, um Arraes quase analfabeto, era de convívio agradável.

 

Playboy – O senhor acha mesmo que Arraes é comunista?

 

Freyre – Acho, acho. Em certa época ele freqüentou muito esta casa, mas é um homem que tem agido muito sob disfarces, nunca revelando sua verdadeira atitude, suas verdadeiras idéias. Parece uma coisa sendo outra, e isso não me agrada. Agora, tem qualidades que não vou negar a ele.

 

Playboy – Voltando ainda à sua vida e obra: o senhor se considera sobretudo um sociólogo, um antropólogo, ou um escritor?

 

Freyre – Principalmente um escritor, porque escrever é o meu veículo, é a minha forma de expressão. Vaidosamente ou não, considero-me um escritor literário, com uma forma literária de expressão.

 

Playboy – O senhor disse certa vez que na formação de seu estilo literário devia muito a uma negrinha chamada Isabel. O que devia a ela realmente?

 

Freyre – Bem, Isabel foi uma dessas empregadas domésticas que acabam se tornando pessoas da família. Ela se tornou de uma simpatia especial por mim. E eu, que na época era bem menino, sentia o mesmo por ela. Tanto que já admiti que Isabel talvez tenha sido meu primeiro amor...

 

Playboy –Qual era a diferença de idade entre vocês?

 

Freyre – Eu era menino e ela já era uma mocinha, pretinha, dentes muito bonitos, olhos muito bonitos... e era uma grande contadora de histórias que me empolgavam. Sabe, a grande influência que ela teve sobre mim está ligada ao fato de que eu custei muito a aprender a ler e escrever. Só aprendi aos 8 anos. As histórias que ela me contava lendas e mitos, a Bela Adormecida do bosque, anões e gigantes... Tudo isso contado de uma maneira que revelava nela uma artista anônima, porque sabia dar valor às palavras... Tudo isso, repito, supriu em mim a falta de leitura. Eu não sentia necessidade de aprender a ler e repelia todos os esforços para me ensinarem. De modo que foi grande a influência de Isabel sobre mim, sobre o meu estilo, porque ela me deu gosto pela oralidade, pelo escrever falado, pela palavra viva.

 

Playboy – O senhor admite que ela foi seu primeiro amor. Um amor platônico, ou foi mais além?

 

Freyre – Bom, houve carícias que, interpretadas hoje, eram carícias amorosas, mas sem chegarem a uma completa iniciação ao amor físico. Vamos dizer eram carícias circunvizinhas do ato sexual, carícias parassexuais.

 

Playboy – Até os 8 anos o senhor tinha dificuldade para aprender a ler e escrever. No entanto aos 16 já era um conferencista e se definia como um socialista cristão. Como chegou a isso?

 

Freyre – Houve a influência do colégio protestante americano, onde estudei, no Recife. O colégio dizia que não fazia propaganda religiosa, e por isso tinha como alunos das famílias católicas mais importantes de Recife... Talvez os pais se impressionassem com as inovações nos métodos de ensino. Mas nesse colégio havia, no início das aulas, uma reunião de todos os alunos, durante a qual o diretor lia versículos da Bíblia e fazia comentários sobre eles. Nesses comentários, a figura de Cristo sempre aparecia sob um aspecto de um renovador social. Isso me levou a uma visão do cristianismo diferente da católica, embora não anticatólica... Isso, enfim, é o que teria conduzido ao socialismo cristão. Isso e minhas muitas leituras na época. Aos 16 anos, minha principal leitura foi Tolstoi. Também lia muito as revistas francesas e inglesas que meu pai assinava, e me impressionei muito com uma série de artigos sobre Tolstoi e sua nova forma de ser cristão, que era a de ser um cristão social.

 

Playboy – Nessa época o senhor já havia tido uma iniciação sexual?

 

Freyre – Escrevi sobre isso no meu livro Tempos bons de outros tempos. Nele registro a primeira experiência que tive com uma mulher. Eu teria 15 anos, mais ou menos; e ela estava com uns 20. Mas, quando comparo minhas experiências sexuais com a de outros meninos da minha época, vejo que fui um menino relativamente puro. Nunca tive experiências homossexuais na infância, sabe?

 

Playboy – E depois?

 

Freyre – Bem, depois eu tive, é claro. Você pode imaginar alguém como eu, interessado em tudo o que é humano e, portanto, tive a curiosidade de ver o que era o amor não heterossexual; tive umas poucas e não satisfatórias aventuras homossexuais. Mas aí eu já tinha mais de 20 anos...

 

Playboy – E onde aconteceram?

 

Freyre – Na Europa. Mas foram experiências pálidas, não satisfatórias. Porque nenhuma delas fez de mim um homossexual. Se tivessem sido satisfatórias, eu então provavelmente teria dito: a grande experiência sexual é essa!

 

Playboy – E sua primeira experiência sexual com uma mulher, aos 15 anos, como foi?

 

Freyre – É, foi muito brasileiramente, com uma empregada doméstica. Nisso eu fui muito brasileiro, porque segui a experiência de muitos brasileiros, segundo creio...

 

Playboy – Esse relacionamento durou muito tempo?

 

Freyre – Um, dois anos. De início no quarto dela, lá em casa, eu pulando o muro depois, para dar a impressão de que vinha de fora quando entrava em casa. Mas depois tive encontros com ela fora de casa, quando ela já era uma espécie de mulher independente.

 

Playboy – Como era o tipo dela?

 

Freyre – Era uma morena de tipo bem brasileiro, de um moreno claro, delgada de corpo, mãos e pés delicados, olhos muito bonitos. De origem humilde, mas com uma aparência aristocrática, com as graças de uma quase sinhazinha, sendo, entretanto uma doméstica. Lembro-me que a beleza dos pés dela me impressionava...e devo dizer que pés bonitos de mulher são uma minhas fixações sexuais. Quando fui para os Estados Unidos e para a Europa e comecei a ver mulheres de pés grandes, sabe, isso foi um dos contrastes favoráveis ao Brasil que mais me impressionaram, o de não encontrar por lá aqueles pés bonitos, bem torneados, que são uma característica de grande parte das brasileiras.

 

Playboy – E, além de sua fixação por pés femininos, o senhor tem alguma outra?

 

Freyre – Eu direi que tenho uma fixação pela morenidade, embora já tenha tido experiências com louras. Quando era estudante na Universidade de Columbia, por exemplo, tive uma loura, bem lourinha, mas tão ardente quanto qualquer morena. Mas creio que a morenidade da mulher é uma de minhas fixações sexuais. Daí o meu grande entusiasmo, já velho, por Sônia Braga.

 

Playboy – Na época de sua transa com essa americanazinha loura, o senhor era bem mais avançado que ela, em termos de práticas sexuais?

 

Freyre – Que ela sim. Creio que meus maiores avanços viriam após meu contato com a Europa, sobretudo com França, Inglaterra e Alemanha.

 

Playboy – Que avanços foram esses?

 

Freyre – Bem, várias práticas sexuais que não eram, na época, comuns, nem nos Estados Unidos. Além do coito convencional, há outras práticas que ao meu ver são valiosas, inclusive valorizam o coito convencional, porque são uma espécie de aperitivo, tão saboroso quanto a entrée...

 

Playboy – Sem querer ser demasiadamente indiscreto: o senhor pode indicar algumas dessas práticas que considera tão valiosas?

 

Freyre – Não. Aconselho você a ler livros de erótica.

 

Playboy – Em Casa Grande e Senzala o senhor descreve as primeiras práticas sexuais dos filhos dos senhores de engenho. O senhor teve um período em que foi menino de engenho. Nesse período também experimentou tudo aquilo?

 

Freyre – É, como todo menino de engenho eu tive uma iniciação que não teria tido na cidade. No engenho você vê, por exemplo, os animais, o touro cobrindo a vaca... e também os meninos me contavam coisas que eu não supunha existir...

 

Playboy – Que coisas?

 

Freyre – Por exemplo, me iniciaram no conhecimento de um orifício em bananeira, como substituto do sexo feminino para a prática de masturbação.

 

Playboy – E experiências com animais?

 

Freyre – Sim, além dessa masturbação na bananeira, fui iniciado no uso de uma vaca. Experimentei o contato pecaminoso com uma vaca! [Risadas]

 

Playboy – O sexo sempre teve uma importância muito grande em sua vida?

 

Freyre – Sim, sim!

 

Playboy – Sempre foi uma prática constante, ao longo dos seus 80 anos?

 

Freyre – O sexo sempre esteve presente em minha vida, mas nunca o sexo acanalhado, sempre o sexo com tendência a ser sublimado...

 

Playboy – O que o senhor consideraria um acanalhamento do sexo?

 

Freyre – Seria você tratar o sexo anedoticamente, falar de um gozo obsceno...Eu acho que o sexo é uma coisa de tal modo importante na vida do homem que deve estar sempre ligado a uma expressão artística, estética, uma expressão de beleza!

 

Playboy – Sendo um homem tão sensual, o senhor já traiu sua mulher?

 

Freyre – Já, mas com autorização dela, quando viajei sem ela para a África e o Oriente. Nós viajamos muito juntos, mas dessa vez eu iria sozinho e a viagem seria bastante longa, minha mulher autorizou a ter experiências sexuais durante essa ausência de meses. Foi em 1951, 52.

 

Playboy – E essas experiências acrescentaram muita coisa ao conhecimento que o senhor tinha sobre sexo?

 

Freyre – Sem dúvida acrescentaram, porque foi com mulheres de tipo exótico, que me interessava conhecer do ponto de vista antropológico. Foram experiências valiosas para mim inclusive desse ponto de vista. Lembro-me de que, em Lourenço Marques [atual Maputo, capital de Moçambique], alguns amigos me ofereceram uma ceia muito amável e que lá conheci umas mulheres muito refinadas, européias, muito louras. Mas se eu me interessasse por elas seria uma traição à minha esposa. Mas, com autorização dela, tive experiências com mulheres pretas e mulatas na África; e com uma indiana em Bombaim.

 

Playboy – Mas então, pelo menos nesse caso, o sexo para o senhor foi muito mais um objeto de estudo do que um prazer por necessidade...

 

Freyre – Nessas minhas experiências escolhi mulheres que me atraíam sexualmente, de modo que havia uma experiência erótica e, paralelamente, uma experiência antropológica.

 

Playboy – Quando o senhor completou 70 anos, deu a entender numa entrevista que ainda era capaz de despertar paixões em muitas Lolitas. E agora, quando está completando 80?

 

Freyre – Não sei, eu não sei.

 

Playboy – Esses dez anos pesaram?

 

Freyre – Não. É que aos 70 eu tinha conhecimento de casos concretos de jovens apaixonadas por mim. Mas atualmente eu não posso apresentar um exemplo concreto. Mas gostaria...

 

Playboy – Sensual e sempre liberal em questões de sexo, o que pensa o senhor do homossexualismo?

 

Freyre – Acho que é uma forma de amor. Havendo uma vocação homossexual, ela é tão respeitável quanto as vocações heterossexuais.

 

Playboy – E o que o senhor pensa de práticas sexuais como sexo grupal, troca de casais, em moda atualmente?

 

Freyre – Eu temo que essas práticas sexuais favoreçam muito mais o acanalhamento, mas acho que são admissíveis. O ménage à trois, por exemplo, quando os três conhecem o assunto e se tolerem mutuamente, numa espécie de consórcio, é perfeitamente admissível e é até uma espécie de homenagem.

 

Playboy – O senhor poderia fazer um paralelo entre os costumes sexuais dos tempos, digamos, da casa grande e da senzala, com os de hoje, em termos de progresso ou de decadência?

 

Freyre – É tão delicado e perigoso falar-se em progresso como falar-se em decadência, em termos absolutos. Estou muito de acordo com o ex-presidente Geisel, quando ele insistiu em falar em democracia relativa. Creio que toda democracia é relativa, creio que toda moral social é relativa, creio também que todo bem e todo mal especificamente são relativos. Em certos bens você encontre aspectos maléficos e em certos males você tem, paradoxalmente, aspectos benéficos. De modo que, na atual situação sexual, eu temo que esteja em perigo um sentimento de família que considero valioso para o equilíbrio social. Refiro-me a um sentimento de família que assegure aos filhos o direito de crescer sob os cuidados paternos e maternos.

 

Playboy – O desnudamento da mulher seria um aspecto positivo da evolução dos costumes sexuais?

 

Freyre – O mínimo de roupas pode ser saudavelmente higiênico num clima muito quente. Mas há também um aspecto psicológico nesse desnudamento: exibindo demais o corpo da fêmea aos olhos do macho ou do macho aos olhos da fêmea, você poderá estar subtraindo grande parte da excitação erótica. Estive recentemente na Inglaterra com um grande especialista no assunto, o professor Sargeant, um sexólogo notável, que tem uma clínica de renome internacional onde procuram tratamento muitos jovens com problemas de impotência. O professor Sargeant, que é meu amigo, disse-me que a nudez e a chamada permissividade, esses excessos todos, estão comprometendo a saúde erótica das novas gerações ou, pelo menos, tendem a isso. Note-se que ele não é nenhum puritano, mas sim um cientista.

 

Playboy – Voltando à sua juventude, ao período dos 18 aos 23 anos em que o senhor viveu nos Estados Unidos e na Europa: foi lá que o senhor alicerçou sua formação de escritor, sociólogo e antropólogo, não? Por quê? O Brasil não lhe oferecia condições de estudo e pesquisa?

 

Freyre – Não, de modo algum! Nem o Recife, nem o Rio, nem São Paulo. Não poderia ter me acontecido nada mais favorável do que ter tido essa formação no estrangeiro. Mas não creio que eu seja fruto dessa formação. Sou fruto, principalmente, do meu talento e talvez do meu mais-que-talento. Mas esse talento e mais-que-talento foram completados por uma formação adequada que eu não poderia ter tido no Brasil. Eu diria que adquiri, nos Estados Unidos e na Europa, uma visão do ser humano que não teria adquirido se não tivesse tido os contatos que tive. Contatos sob uma forma de estudos universitários e também extra-universitários, com pessoas do povo, em cafés e até em cabarés. Estudei na Universidade de Columbia, talvez na sua fase de maior esplendor, com mestres como Franz Boas, que foi meu professor de antropologia; ou com John Basset Mohan, de direito internacional. Mas também aprendi muito nos teatros e nos restaurantes que freqüentei em Nova Iorque. Fiz escândalo quando, ao voltar para o Brasil, destaquei a importância da culinária como expressão das culturas nacionais. Afirmar isso naquela época foi escandaloso, porque se pensava que esse negócio de arte culinária era uma coisa inteiramente desprezível do ponto de vista científico, estético ou sociológico.

 

Playboy – Ao voltar para Recife em 1923 o senhor também provocou celeuma por outros motivos...

 

Freyre – Encontrei um Recife onde se valorizava muito a mulher européia, mesmo a prostituta européia, em detrimento da nativa. A minha atitude foi a de valorizar a mulher nativa, morena, e até a mulher negra. E isso teve repercussão, foi talvez uma pequena revolução nativista.

 

Playboy – Mas, além disso, o senhor também foi responsável pela disseminação de práticas sexuais até então desconhecidas no Recife.

 

Freyre – Bem, é certo que, quando jovem solteiro, usei muito no Recife certas camisas-de-Vênus especialmente eróticas.

 

Playboy – Como eram?

 

Freyre – Eram umas camisas-de-Vênus também muito usadas por outro recifense, bem mais velho do que eu, Odilon Nestor, que também tinha grande convivência com a Europa e a sofisticação sexual européia. Essas camisas-de-Vênus tinham uma espécie de penacho na extremidade, que as tornava muito excitantes para a mulher.

 

Playboy – O senhor parece sentir satisfação em ser uma pessoa polêmica, discutida e até criticada.

 

Freyre – Isso me dá uma sensação de vitalidade muito agradável. Eu temo muito ser considerado um bonzinho que agrada a todo mundo, um convencional que não arrepia nenhuma convenção. Tenho muito medo de chegar a ser benquisto por toda gente ao mesmo tempo. Creio que quem tem atitudes precisa se conformar com o fato de desagradar a alguns.

 

Playboy – Isso explicaria certas afirmações suas, como, por exemplo, a de que gostaria de ter sido hippie?

 

Freyre – Não creio que tenha dito exatamente que gostaria de ser hippie O que eu disse é que se eu tivesse vivido na época hippie provavelmente teria sido um hippie.

 

Playboy – Por quê?

 

Freyre – Porque os hippies representavam uma repulsa ao excesso de convenções, que considero prejudicial a qualquer sociedade, a qualquer cultura. É preciso que haja sempre uma repulsa a esse excesso, porque ele leva a um conformismo que pode ser fatal a essa sociedade ou a essa cultura. Creio que naqueles tempos de meu regresso ao Recife eu fui um pouco hippie.

 

Playboy – Na época desse seu regresso, 1923, já havia explodido em São Paulo a Semana de Arte Moderna, e o modernismo estava sendo debatido, polemizado. Mas parece que o senhor nunca me levou muito a sério aquele movimento de renovação cultural. O senhor chegou até a espinafrá-lo em vários artigos. Por quê?

 

Freyre – Porque acho que, no total, a Semana de Arte Moderna representou uma introdução arbitrária, no Brasil, de modernices européias, sobretudo francesas. Sem dúvida, a cultura brasileira em geral e as artes brasileiras em particular precisavam na época de serem modernizadas, revigoradas mas levando-se em conta a realidade regional brasileira, suas tradições características às quais se poderia adaptar inovações européias. Isso não se fez em São Paulo, mas sim no Recife, num movimento muito menos badalado, como diria hoje, do que a Semana de Arte Moderna de São Paulo. Esse movimento foi regionalista, tradicionalista e, a seu modo, modernista, ao qual estiveram ligados artistas como Vicente do Rego Monteiro, um renovador da pintura e da escultura.

 

Playboy – Independentemente dessa questão do movimento modernista, o senhor tem uma velha briga com os paulistas, com os sociólogos e antropólogos paulistas, não?

 

Freyre – Dos sociólogos paulistas, o que eu considero a figura máxima é Fernando Henrique Cardoso, que é até político militante marxista, mas há pouco, num artigo mostrou-se simpático às minhas atitudes, embora divergindo de mim. Outro marxista, mas este do Rio, o antropólogo Darcy Ribeiro, um grande antropólogo, escreveu uma introdução para a edição venezuelana de meu livro Casa Grande e Senzala, que é talvez o que de melhor já se escreveu ao meu respeito, do ponto de vista antropológico e sociológico. Agora, ambos são marxistas eminentes. Mas quando o marxista é um Octavio Iani, que não é intelectualmente honesto, a meu ver, e um outro que já nem me lembro o nome.

 

Playboy – Florestan Fernandes?

 

Freyre – Florestan. Que não é desonesto, mas que é um fanatizado pelo marxismo. Esses desonestos ou esses fanáticos superiores - eu respeito o Florestan Fernandes, uma cultura real, um talento autêntico, mas fanatizado, enfim-, eu não os considero como representantes do que há de melhor na sociologia e na antropologia paulista. Mas são os mais ruidosos e os mais badalados por nossa querida imprensa, pelos dois semanários, Veja e Isto É, e pelos jornais, como o Jornal do Brasil. A única exceção é O Estado de São Paulo, que me parece o jornal mais eticamente orientado da imprensa brasileira...Não estou ligado a ele. O jornal com que tenho ligação é Folha de São Paulo, com o qual tenho prazer em colaborar. Mas aí entra o patrulheirismo ideológico, que existe, posso dar meu testemunho de que existe, não só através da deformação das minhas idéias e das minhas atitudes, como através de coisas como essa que você repetiu agora, que soa contrário aos antropólogos e sociólogos paulistas.

 

Playboy – Nossa pergunta foi sobre a briga que o senhor tem com eles.

 

Freyre – Eu tenho com alguns deles, mas estou em excelentes termos com os que são considerados dentro e fora do Brasil. Como Fernando Henrique Cardoso, que tem trabalhos publicados na Europa e que, dentre eles, é o mais eminente, muito mais até que o Florestan, muito mais! Cardoso, embora seja uma pessoa com grande atividade política, é o máximo entre o que se faz em antropologia e sociologia em São Paulo.

 

Playboy –O senhor se referiu à existência de uma patrulha ideológica. Como explica que isso possa acontecer exatamente na grande imprensa, que é naturalmente conservadora?

 

Freyre – Sim, mas você que é jornalista sabe que, dentro de um grande jornal, a direção proprietária é uma e a execução jornalística é outra. Enfim, o copidesque [o jornalista que faz o texto final] é muito importante, mais importante até do que aqueles que colhem as notícias, os repórteres. Porque eles as entregam ao copidesque e elas ai sofrem o processo de depuração, aí entra a patrulha, a chamada patrulha ideológica. Essa expressão criada por Cacá Diegues me parece feliz e corresponde a alguma coisa que existe, a uma deformação que existe: as idéias são apresentadas de um modo diferente, a fim de criar uma imagem antipática de certos indivíduos. Mas a grande arma dos patrulheiros não é essa.

 

Playboy –Qual é?

 

Freyre – A grande arma deles é o silêncio, uma arma que vem agindo há anos! Essa denúncia não é minha, é de alguém que certamente merece respeito por suas denúncias e que é Nelson Rodrigues. Ninguém mais jornalista que Nelson Rodrigues. Em vez de ter nascido na literatura ou no teatro, Nelson nasceu no jornal. De modo que ele conhece o jornal por dentro e por fora e foi ele quem fez essa denúncia a respeito dos silêncios. Eu não atribuo essa patrulha ao marxismo ou ao comunismo, mas a um submarxismo e a um subcomunismo, que, um ponto a meu ver perigoso, está, sobretudo a serviço do que se pode identificar como imperialismo soviético. Um imperialismo em expansão na África e no oriente, e que naturalmente se projeta também sobre o Brasil, que é um país com uma enorme importância geopolítica. Daí, qualquer ação que você possa ligar a uma presença disfarçada, dissimulada desses soviéticos no Brasil é importante. E eu creio que essa presença está se fazendo sentir não de toda, mas de parte da patrulhagem ideológica. Não é só meu caso. É também o de outros, mas eu tenho sido denunciado, nos maiores jornais soviéticos, como elemento ultra-reacionário.

 

Playboy – E isso significa...

 

Freyre –...que sou uma presença brasileira que incomoda, do ponto de vista russo-soviético. Veja, então: essa preocupação comigo vem de lá refletida nesse silêncio a meu respeito. Você observe, por exemplo, o grande semanário que tanto admiro, a Veja. Admiro na Veja o seu noticiário, as reportagens, as entrevistas... As minhas restrições: nos últimos anos, como aliás em toda minha vida, minha presença tem sido assinalada pela publicação de livros. Ainda nesse último ano apareceram ou inéditos meus ou reedições com vários acréscimos. E foram sistematicamente, ostensivamente ignorados pela seção de literatura de Veja. Mas não é que tenham dado duas ou três linhas sobre eles, não! Não deram nada, nada! Silêncio completo! E isso acontece também em Isto É, que é dirigida por um amigo meu, o Mino Carta! Aí você poderia dizer: são livros que estão fora da atualidade brasileira... Mas não! São livros que tocam em problemas vivos do Brasil, problemas de cultura associada à vida. Ora, eu não posso deixar de acreditar na existência de uma ação patrulheira contra mim, que ora age através de deformações, ora através desses estiletes que são também uma forma efetiva de enfrentar uma presença incômoda.

 

Playboy –Voltando a suas divergências com alguns sociólogos e antropólogos do Sul, teriam sido elas que provocaram a denúncia que o senhor fez, em agosto de 1977, numa palestra em Brasília, de que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência estaria sendo influenciada por ideologias estranhas a serviço de potência estrangeira?

 

Freyre – Exato, têm a mesma origem. Acontece que, numa sociedade paradoxal, uma Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência...bem, acontece que ela estava em crise, com um grupo indo numa direção, enquanto outro estava a serviço de alguma patrulha ideológica. Entretanto, dentro da SBPC, algumas das figuras tidas como marxistas, ligadas ao marxismo, têm se referido a mim do modo mais simpático. Como o Mário Schemberg e vários outros. Mas, na época em que fiz essa denúncia, havia uma predominância que já deixou de haver de elementos patrulheiros.

 

Playboy – Ao fazer tal denúncia o senhor não estaria também fazendo uma forma de patrulhamento?

 

Freyre – Creio que não, porque o patrulhamento obedece a um fim especificamente não cultural, e eu creio que não por onde você me ligar a uma corrente política não cultural, nem pró-governo nem antigoverno.

 

Playboy – Mas o senhor apoiou ostensivamente o movimento militar de 1964, que foi um movimento político.

 

Freyre – Eu me defini a favor desse movimento sem que isso implicasse uma adesão política. Implicou uma adesão nacionalista.

 

Playboy – O senhor conspirou ou pelo menos estava a par do que se tramava em 64?

Freyre – Não estava intimamente a par, mas meu já captava alguma coisa do que se passava. O general Castello Branco, então comandante do IV Exército, freqüentava muito a minha casa, mas vinha para conversar, não para conspirar.

 

Playboy – Ao assumir a presidência do governo revolucionário, Castello Branco convidou-o para ser o ministro da Educação. Por que o senhor não aceitou?

 

Freyre – Porque senti que não estava havendo uma revolução, mas sim uma substituição dos quadros governamentais, e isso não me interessava.

 

Playboy – Embora não aceitando ser ministro, o senhor ajudou a fazer vários, nestes últimos 16 anos, não é? Por exemplo, o senhor não ajudou na indicação do atual ministro da Educação, Eduardo Portella?

 

Freyre – Ajudei.

 

Playboy – Por quê?

 

Freyre – Bom, esse é um problema complexo, que se relaciona com a própria presença brasileira como conjunto, por exemplo, desde 1964. Desde então o Brasil tem, não é novidade nenhuma, uma imagem desfavorável no exterior, a imagem de um país militarizado. Supõem alguns meios europeus e norte-americanos que estamos sob um caudilhismo militar, o que não é inteiramente exato.

 

Playboy – Por quê?

 

Freyre – Porque nenhum desses presidentes militares pretendia ser um caudilho. Mas creio que também vários deles cometeram erros lamentáveis e nenhum foi o presidente ideal para o Brasil. Mesmo, assim, repito o que já tenho dito: a meu ver, 1964 era inevitável, tinha de vir, diante do caos a que o Brasil chegara, diante da infiltração russo-soviética no país. De modo que as Forças Armadas prestaram um grande serviço ao Brasil, em 1964. Mas a sua presença no governo talvez tenha se prolongado demais.

 

Playboy – Ainda hoje o senhor acredita que em 1964 existia de fato a ameaça de implantação de um regime comunista no Brasil?

 

Freyre – Não, não creio que houvesse uma ameaça assim específica. A ameaça que havia era a do caos. Creio que o presidente Goulart, um homem pessoalmente estimável, favoreceu, no entanto uma situação caótica, que a União Soviética não deixaria de aproveitar, como aproveitou em Cuba.

 

Playboy – A seu ver, quais foram as principais falhas do movimento de 1964?

 

Freyre – No plano social, a Revolução teve uma oportunidade única, que não foi aproveitada. E também não soube libertar-se do burocratismo, tanto que só agora nomeou um ministro da desburocratização, o Hélio Beltrão, que, aliás, foi meu aluno de antropologia na Universidade do Distrito Federal, um brilhante aluno meu. Também vejo com apreensão, nesse período de governos, não direi militares, mas de militares que o Brasil tem tido, a tendência de certos assessores da Presidência para estabelecer um dirigismo da cultura.

 

Playboy – O ministro Eduardo Portella seria um deles?

 

Freyre – Não, ao contrário! Não posso citar nomes desses assessores, não porque não queira ser indiscreto, mas simplesmente porque ignoro seus nomes.

 

Playboy – A política de direitos humanos dos chamados governos da Revolução não teria sido uma de suas principais falhas?

 

Freyre – Esse é um ponto delicado para se opinar, porque, você sabe, ainda não está bem revelado o que houve no interior do Brasil, as guerrilhas... Nem está bem revelado quem sustentava essas guerrilhas que colocaram em perigo a unidade brasileira e que obrigaram o governo a uma presença tão dura. Não está bem esclarecido como foi a origem desse movimento, sua sustentação, mas sabe-se que foi grande a presença de estrangeiros nele. Rasgões inevitáveis.

 

Playboy – Mas o que o senhor diz da prática de torturas em presos políticos?

 

Freyre – A prática de tortura é sempre uma coisa abominável.

 

Playboy – Mas o senhor admite que, em determinadas circunstâncias, a tortura é pelo menos compreensível?

 

Freyre – Compreensível, sim; justificável, eu nunca diria que sim.

 

Playboy – Por que então o senhor nunca teve uma palavra contra essa prática de tortura?

 

Freyre – Não é um assunto que eu estivesse jornalisticamente obrigado a comentar, mas creio que fica bem claro, em minha atitude geral, que eu não poderia ser simpatizante de torturas ou de excessos de repressão policial.

 

Playboy – Em 64 dizia-se que o nordeste era um barril de pólvora, pelas tensões sociais que abrigava. Essa imagem continua válida?

 

Freyre – Não, já não é tão válida como era naquela época, em que havia, partindo do Recife, que é tão importante para todo o Nordeste, duas lideranças que favoreciam a criação do barril de pólvora: a do governador Miguel Arraes e a de Francisco Julião, entre os camponeses...

 

Playboy – Que estão de volta.

 

Freyre – Estão de volta, mas não estão atuando como antes. Você vê a atuação de Arraes e nota que ele está bem diferente do que foi. Dizem que ele está rico e há um ditado no Rio Grande do Sul que diz: “Caudilho rico não briga”. Será que esse ditado pode ser aplicado hoje ao governador Arraes? É possível. E não tenho elementos para afirmar se ele hoje é mesmo um caudilho rico. Como ele é perspicaz politicamente, pode ser que sua atitude corresponda a novas circunstâncias, às quais ele julga inteligente se adaptar. E talvez se possa dizer o mesmo de Julião, que eu considero um romântico, o que o Arraes não parece ser. Mas não sei até que ponto Julião continua romântico. Ainda não estive com ele após sua volta.

 

Playboy – O senhor é mesmo o reacionário que seus adversários dizem ser?

 

Freyre – Não sei. Eu me considero um anarquista construtivo.

 

Playboy – Não conservador?

 

Freyre – O que eu quero conservar, no Brasil? Valores brasileiros encadernados principalmente nas formas populares de cultura, formas regionais, que dêem um sentido nacional ao Brasil. É, eu sou um conservador por ser um nacionalista, conservador de valores que exprimem uma nação brasileira através de uma cultura popular brasileira através de uma cultura popular brasileira. Acentue-se bem que essa cultura popular eu tenho dado uma valorização máxima, embora não deixe de valorizar também uma cultura de elite, não é? Joaquim Nabuco, que tanto valorizou o povo brasileiro, representado pelo negro escravo que ele quis que se tornasse um novo homem livre, Joaquim Nabuco, repito, foi um misto de conservador e revolucionário, pois, sendo monarquista, não quis aderir à república.

 

Playboy – O que o senhor quer conservar e o que quer revolucionar?

 

Freyre – A organização social, a relação entre empregados e empregadores, a crescente presença do trabalhador na vida social, tanto a presença política quanto a econômica e a cultural, tudo isso seria objeto de uma revolução muito de acordo com os princípios gerais anárquico-construtivos. Mas esses principais eu não poderia pensar em aplicar no momento, porque seria uma loucura o Brasil tornar-se agora anarquista-construtivo, quando pesam sobre ele dois imperialismos poderosos, russo e americano. Há certas defesas que não seriam possíveis no sistema anárquico-construtivos.

 

Playboy – E como seria um Brasil anarquista- construtivo?

 

Freyre – Com um mínimo de governo coordenador, e com o máximo de autonomia para energias diversas, econômicas, culturais, religiosas, políticas. Um pluralismo não só político, mas também social e cultural. Bertrand Russel, o grande filósofo, que como se sabe, foi um anarquista dos que eu classifico como construtivos, tem uma imagem que considero muito expressiva: a do guarda de trânsito, que não manda no trânsito, mas o coordena. O trânsito representa aí as energias que, sem o guarda, se chocariam, uma querendo se sobrepor à outra.

 

Playboy – O senhor insiste muito num modelo de democracia genuinamente brasileiro, mas, segundo o advogado Sobral Pinto, à brasileira só mesmo o peru.

 

Freyre – Sobral Pinto é um advogado que passa por ser um grande romântico, um grande Quixote...Evidentemente ele tem qualidades. Não o conheço pessoalmente, mas sei que não é assim tão romântico e quixotesco. Ele tem agido com coragem em vários casos, mas houve uma ocasião em que eu estava sendo oprimido pelo poder econômico, representado por Augusto Frederico Schmidt, que foi o meu primeiro editor. Depois de lançar a primeira edição de Casa Grande e Senzala, ele lançou, sucessivamente, duas reedições piratas, ignorando totalmente meus direitos de autor. Então procurei a ajuda de Sobral Pinto como advogado, o grande advogado dos oprimidos. Ele recusou, alegando ser amigo do meu esfolador. De modo que completamente romântico ele não é.

 

Playboy – Na sua opinião, como está caminhando o projeto de abertura política do governo?

 

Freyre – Bom, acho que o fato dele caminhar já é alguma coisa. Desejaria que o ritmo fosse menos lento, mas o processo envolve tantos antagonistas que não se pode esperar que seja rápido. Talvez pudesse ser menos lento.

 

Playboy – O senhor crê que haja perigo de um retrocesso?

 

Freyre – O perigo que poderia surgir seria uma grande resistência de parte de alguns militares ao processo de abertura, mas creio que esse perigo já não existe. O que existe é a falta de bons líderes oposicionistas. A oposição está tão dividida, seus líderes estão uns contra os outros que isso pode estar provocando uma excessiva lentidão à abertura.

 

Playboy – Dentre os novos partidos que estão se formando, o senhor simpatiza por algum?

 

Freyre – Sinto simpatia pessoal por Tancredo neves, mas não diria que sinto o mesmo pelo partido dele. Minhas maiores simpatias seriam para um partido trabalhista.

 

Playboy – A ponto de se filiar a esse partido?

 

Freyre – Não, não!

 

Playboy – O senhor acha que Leonel Brizola está interpretando corretamente o trabalhismo?

 

Freyre – Ainda não tenho opinião formada sobre isso, acho que ele ainda não se definiu claramente.

 

Playboy – O senhor é a favor de eleições diretas para governador e presidente da República?

 

Freyre – Para presidente da República eu duvido que a eleição deva ser direta. Como você sabe, até nos Estados Unidos essa eleição não é direta, e eu creio que o exemplo da democracia americana deve contar muito. Porque há ao um fator sociológico muito importante: numa eleição para presidente da República, o eleitor não fica muito informado sobre os candidatos.

 

Playboy – O senhor já se definiu a favor do pluralismo partidário. Acha que dentro dele haveria lugar para o Partido Comunista?

 

Freyre – Acho que sim, se pudéssemos nos assegurar de que seria um partido comunista independente, brasileiro, como parece estar sendo o Partido Comunista Espanhol.

 

Playboy – O senhor se referiu à existência de uma tendência para um dirigismo cultural, por parte dos governos brasileiros. Poderia dizer como tem se manifestado esse dirigismo?

 

Freyre – Através de uma tendência para se considerar a cultura do mesmo modo que a economia: uma matéria para ser dirigida pelo Estado. Eu sou pela intervenção do Estado em assuntos econômicos, contra o poder econômico absorvente e a favor dos setores economicamente fracos da população, sujeitos aos abusos desse poder econômico. Mas na área cultural não acontece um relacionamento igual. Ela é uma área em que se precisa dar o máximo de criatividade e independência.

 

Playboy – Essa tendência ao dirigismo cultural tem a ver com um menor grau de liberdade democrática?

 

Freyre – Ah, tem sim, porque todo dirigismo é necessariamente uma restrição à criatividade. E a criatividade importa em liberdade de expressão.

 

Playboy – O senhor poderia dar exemplos concretos de males que o dirigismo cultural tem provocado?

 

Freyre – Na ação da censura exercida policialmente, esses males são evidentes. Por exemplo, eu prefaciei um trabalho científico, sério, social, que se intitula Dicionário do Palavrão. Trata-se de um trabalho de um etimólogo, o Mario Souto Maior. Pois bem, há anos que uma censura policial, fazendo-se passar por censura cultural, vem barrando a publicação desse trabalho. É evidente que isso é uma manifestação de dirigismo que vem privando a cultura brasileira de uma expressão válida. Agora mesmo, no Rio, você assiste à peça Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho, impedida de aparecer, durante anos, vítima do dirigismo cultural. Mas eu reconheço que há uma área, a da televisão, em que é preciso haver uma intervenção do governo...

 

Playboy – Por que?

 

Freyre – Porque na televisão você não tem apenas cultura, mas tem também educação. Você tem filmes que podem perturbar de modo realmente lamentável a atitude e o comportamento da mocidade, da infância. Um indivíduo que sai de casa para ir ao teatro ou ao cinema sabe que vai assistir a um determinado tipo de peça ou filme. É diferente da família que está em casa e é surpreendida por certos tipos de programas, nocivos do ponto de vista educacional.

 

Playboy – Umas das teses que o senhor certa vez defendeu e que provocou muitas reações foi a de que a alfabetização em massa da população, tendendo a criar uma educação massificada, só poderia ser desfavorável para o Brasil. O senhor deu a entender que um certo grau de analfabetismo seria até, vamos dizer, positivo. O senhor ainda defende isso?

 

Freyre – Ainda defendo. Creio que o Brasil, tendo ainda analfabetos, encontra-se numa situação culturalmente mais vantajosa do que, por exemplo, um país como a Suécia, onde não há analfabetos. Porque o analfabeto é um espontâneo, um intuitivo, quase instintivo, um homem telúrico, por excelência. A chamada literatura de cordel e a cerâmica popular são outros exemplos disso. Ora, tais expressões de criatividade seriam impossíveis na Suécia, se mediocrizou do ponto de vista da criatividade artística, literária.

 

Playboy – O Brasil está livre disso...

 

Freyre – O Brasil está livre ainda, com suas grandes reservas de espontaneidade assegurada pelo fato de haver em sua população muitos rústicos, ainda analfabetos. Nós sabemos que, com os atuais meios de comunicação, a televisão, o rádio e outros, a importância de alfabetização tem diminuído. Você hoje pode viajar e ir exatamente aos lugares que deseja, sem precisar ler: as farmácias têm sinal que indica farmácia, os sanitários para homens e mulheres são identificados por figuras e não letras. Quer dizer, há uma superação crescente da letra, substituída por sinais e símbolos que vão se tornando uma característica cada vez maior de uma cultura moderna.

 

Playboy – Nesse caso, o senhor recomendaria que se mantivesse analfabeta uma certa fatia da população, a fim de enriquecer o país culturalmente?

 

Freyre – Bem, sou favorável a que haja, pelo menos, uma certa tolerância para com esses resíduos de analfabetismo no Brasil. Não posso determinar que haja uma defesa sistemática do analfabeto. Não vamos criá-lo em redoma nem impedir que ele se alfabetize. Não, eu não rira a tanto. Mas acho que seria vantajoso tolerar o analfabeto como um valor e não como um peso morto. De modo que não sou um grande entusiasta do MOBRAL.

 

Playboy – Aos 80 anos, o que o senhor ainda espera da vida?

 

Freyre – Dado o fato de que minha saúde é excepcionalmente boa, e também o fato de continuar havendo receptividade para o que escrevo e o que penso, sinto que ainda permaneço válido. De modo que chego aos 80 como se tivesse, digamos, 60 anos.

 

Playboy – Comenta-se que inclusive sexualmente o senhor ainda é um homem válido. É verdade que tem uma receita secreta para isso?

 

Freyre – Olha, de fato tenho uma receita e já tive propostas muito sedutoras para revelá-la [rindo]. Trata-se da receita de um conhaque de pitanga que fabricamos aqui em casa. Mas me recuso a revelar a fórmula.

Playboy – Por quê?

Freyre – Para manter o seu mistério e o seu prestígio.

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