Guilherme de Almeida
Entrevista conduzida por José Benedito Silveira Peixoto, publicada em seu livro Falam os escritores. 2ed. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1971.
Apresentação:
Confesso que tenho verdadeiro horror ao lugar-comum e que nunca poupei esforços para fugir à banalidade. Por isso mesmo, e embora reconhecendo que nem sempre tenho conseguido atingir a originalidade (tudo, no homem e na vida, é muito pouco original), não quero arriscar-me a repetir, aqui, alguma coisa do muito que já se tem dito, que já se tem afirmado e que já se tem escrito, sobre essa figura de exceção em nossas letras, que é Guilherme de Almeida.
Não alimento, pois, a pretensão de dizer quem é o poeta, nem a de apreciar, mesmo em linhas gerais, a sua obra, nem, sequer, a de referir o posto de inconfundível relevo que ele conquistou, no panorama da literatura brasileira. Isso exigiria trabalho de grande vulto, análise meticulosa, mesmo porque só assim se conseguiria fazer justiça e dar a esse ourives admirável do verso e da palavra tudo quanto ele realmente merece. E a verdade é que Guilherme é grande demais, para caber nos limites de algumas frases.
Isso não me impede, porém, de focalizar um ou outro aspecto de sua personalidade, uma ou outra faceta de sua maneira de ser. E é na certeza de revelar coisa inteiramente desconhecida do grande público que acentuo, logo, que, apesar das qualidades e dos predicado, que dele fizeram um dos maiores entre os maiores poetas de nossa raça, Guilherme de Almeida é, principalmente, um tímido.
Pode parecer incrível, aos que só o conhecem superficialmente; pode parecer inacreditável, mesmo aos que supõem conhece-lo, bem no íntimo; mas, a realidade é que o poeta sente um pudor imenso de sua obra. Guilherme fica ruborizado, desconcerta-se todo, quando alguém lhe faz, à queima-roupa, o elogio de um poema de sua autoria. Tem, por assim dizer, uma vergonha paradoxal de ser quem é.
Certa vez, há alguns anos, tomou ele um ônibus, em demanda de um bairro distante. A dado momento, veio sentar-se ao seu lado, no mesmo banco, uma mulher, moça e bonita (foi o próprio Guilherme que me afirmou). Olhou-o muito. Parecia querer reconhecer, em sua fisionomia, os traços de uma pessoa conhecida. O poeta fazia tudo para disfarçar, para fugir àquele exame detalhado, minucioso, para evitar um possível reconhecimento. Tudo indicava que ela queria falar-lhe. E andaram assim, algum tempo: ela a olhá-lo muito, a procurar um pretexto para dirigir-lhe a palavra; ele a negacear, a fugir, encabulado. as faces escarlates. A dado momento, ela desembrulhou um livro - um livro de versos de Guilherme. E decidiu-se:
- O senhor não é Guilherme de Almeida? - perguntou-lhe, com o livro nas mãos miúdas.
Foi gaguejando, as palavras estilhaçando-se em reticências, que ele respondeu:
- Não... minha senhora... A senhora... deve... estar enganada! Talvez... seja muito parecido... Mas... nem o conheço ...
Disse isso, levantou-se e, muito confuso, pedindo desculpas, nem esperou que o ônibus parasse. Saltou, com o carro em movimento, quase foi atropelado por um automóvel que vinha passando, sumiu-se na primeira esquina que encontrou diante dele.
Em outra ocasião, o poeta e eu tomamos um ônibus (0s ônibus, parece, não deixam de ser perigosos a Guilherme). A nossa frente, duas normalistas cochicharam alguma coisa. Não tardou, uma delas virou-se.
- O senhor poderia dar-me um autógrafo? - pediu a Guilherme.
Eu?!
O senhor não é Guilherme de Almeida?
Eu?!
Sim senhor. E tenho plena certeza. Tenho um retrato seu em casa. Recortei de uma revista...
Tirou, dentre os livros que carregava, um volume de Guilherme. E com um sorriso, pediu:
- Faça o favor, sim?
Ele não teve outro remédio, senão atendê-la. E teve de atender à companheira. E acabou tendo que dar autógrafos a uma senhora, a um rapazola de cabeleira enorme, a um senhor de meia-idade (o tipo do cavalheiro de bom tratamento a que as donas de pensão vivem a dar preferências, em seus anúncios), a outras moças. Era de ver o constrangimento com que lançava, nervosamente, a sua assinatura, nos cartões ou nos pedaços de papel que lhe punham à frente. Suava, tremia, mudava de cor...
Outro característico de Guilherme é a sua bondade. Ele que, com seus versos, vive fazendo tanto bem a todos os que os lêem, ele que, com seus poemas, vive transformando em motivo de prazer indizível para os outros tudo quanto é tortura que o assalta, tudo o que o atormenta, tudo o que o faz sofrer, não se contenta em ser bom só assim. Quer ser completamente bom.
É por isso mesmo, é porque é bom, é porque nasceu assim e nunca soube nem saberá ter outro feitio, que sempre consegue um pouco de tempo - do seu tempo, que é pouco para amassar o pão de cada dia - para incentivar os que se iniciam, ou para emprestar seu concurso a todo empreendimento altruístico que necessite de sua colaboração.
Bom para com os outros, bom até para com os que lhe fazem mal, Guilherme é de um carinho extremo para com os seus. Não há domingo em que ele não vá à residência de uma velhinha que é toda suavidade - sua Mãe. Curva-se diante dela. Faz-se criança, faz-se pequenino e pede-lhe a bênção, como nos tempos de menino. Depois, fica por ali. a tagarelar, a contar-lhe coisas, a dizer que o mundo é bom e que tudo vai bem, a esconder-lhe a maldade dos homens. Para que ela sorria um sorriso cheio de felicidade.
Deixem-me fazer, neste ponto, uma advertência. Guilherme de Almeida é um dos homens mais ocupados que eu conheço. Desenvolve uma atividade intensíssima. Para ele, até os domingos, muitas vezes, são dias úteis, ou, melhor, para usar de uma expressão sua, são os dias que lhe são mais úteis. Escrevendo para O Estado de S. Paulo e vários jornais, colaborando em uma porção de revistas, tem ainda de atender ao expediente na repartição em que trabalha - o Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo.
Por isso, porque antes de ser uma cigarra cantadeira, é uma formiga operosíssima, tive de contentar-me em entrevistá-lo aos pedaços. Na sede da Associação Paulista de Imprensa, encontramo-nos duas vezes, durante alguns minutos, apenas. No Departamento de Cultura, enquanto despachava processos e tomava providências, Guilherme forneceu-me, no decorrer de alguns encontros que ali tivemos, um ou outro dado. Também pelo telefone dele obtive algum material. E, ainda, uma vez, num ônibus, tivemos uma conversa. Dessas palestras, desses telefonemas, desses encontros, é que consegui os elementos para esta reportagem: uma colcha de retalhos que, certamente, não pode estar muito bem alinhavada ...
Foi meu pai - o doutor Estêvam de Almeida - quem cuidou de minha cultura humanística - disse-me Guilherme numa destas tardes tropicais. Foi ele, portanto, o meu primeiro e grande guia, no terreno do pensamento. Embora sempre estivesse preocupado com os seus estudos, embora sua competência e sua cultura de jurista fosse, a todo instante, reclamada, jamais descurou de orientar-me no campo intelectual, procurando sempre faze-lo de maneira a aproveitar e aprimorar as tendências naturais que em mim observava.
- Quando você começou a escrever?
É difícil precisar com exatidão. Muito criança, ainda. já tinha o senso do ritmo, a intuição da poesia. Creio que nasci poeta, coisa que, aliás, não é invulgar em nosso país. Era menino, usava calças curtas e já sabia sentir a beleza de um poema. o encanto de uma frase feliz. Foi assim que, quando me internaram num colégio de padres, logo encontrei uma facilidade assombrosa para arcar os "pés", nos textos de Horácio, ou nos versos gregos. O que aos outros alunos parecia difícil, o que deles exigia grande esforço, para mim era facilimo e não demandava mais que uma simples leitura mais ou menos cuidada.
- Os primeiros versos?
Meus?
- Claro.
Devia ter uns quatorze anos de idade. Um dia, no salão de estudos, no colégio em que fora internado, senti uma coisa esquisita, inexplicável, dentro de mim. Fiquei totalmente absorto. E enquanto tamborilava com os dedos no tampo da carteira, para marcar as sílabas, ia escrevendo, num pedaço de papel, os meus primeiros versos. Era um soneto de inspiração religiosa: “A cruz”. De repente, um braço estendeu-se e alguns dedos crispados agarraram o papel. Um grito irritado assustou o salão inteiro: “Que é isto?! Muito bonito! Fazendo versos!... Eu não quero saber disto! ...
- E você?
Não saberia traduzir, em palavras, o que senti. O gesto do padre-prefeito revoltou-me. Senti desejos de atirar-me contra ele e esbofeteá-lo. Tive a sensação de estar sendo vítima de uma violência inqualificável. Não pude, entretanto, reagir. Mas, vinguei-me. Desde aí, não perdia oportunidade para compor versos cheios de lubricidade, repletos de sensualidade. Fazia-os, principalmente para irritar o padre. E sempre conseguia meios de fazer que ele os lesse ...
- Você estudou metrificação?
Nunca. Certa vez, papai, naturalmente por ter constatado minha veia poética, deu-me um tratado de metrificação, de Antônio Feliciano de Castilho. Comecei a ler as regras e os preceitos... Comparei com os versos que tinha feito e cheguei à conclusão de que todos estavam absolutamente certos, perfeitamente de acordo com tudo quanto dizia o tal tratado. Quer a minha impressão sincera a respeito desse livro? Achei-o simplesmente inútil. Não podia compreender por que se fazia todo um volume, para ensinar uma coisa que, afinal de contas, é dom natural.
Foi num outro encontro com Guilherme de Almeida que dele soube qual o seu primeiro verso publicado.
Confesso a você que sentia um pudor imenso de meus versos. Não os mostrava a ninguém; escondia-os até mesmo de meus pais e de meus irmãos. Fazia-os às ocultas, como se estivesse cometendo um crime. Quando os terminava, ia logo escondê-los, com medo de que alguém pudesse descobri-los. Por ocasião de minha formatura, no Ginásio Nossa Senhora do Carmo, quis fazer uma despedida. E fiz, então, um soneto, a que chamei "Adeus". No alvoroço daqueles dias, lembrei-me de mandar imprimi-lo, em cartões. Pus em prática a idéia e distribui os versos, assim em letra de forma, aos meus colegas, aos professores... Aquilo correu o colégio inteiro. Começaram a chamarme de poeta. Você nem calcula como fiquei encabulado. Nem queria, mais, comparecer à solenidade da entrega dos diplomas.
- E os primeiros versos publicados em jornal?
Foi um soneto, que até hoje faz sucesso e anda por aí, em almanaques farmacêuticos. Deixe-me contar-lhe o caso, desde o princípio. Eu era ainda estudante de Direito e trabalhava no escritório de meu pai, aqui em São Paulo. José David Teixeira, um dos jornalistas mais interessantes do interior paulista, fundador do Diário de Rio Claro, era íntimo de minha família. Um dia, no escritório, estava datilografando um soneto que compusera na véspera - "Beijos". Tinha chegado ao último verso, quando tive de sair apressadamente, para atender a um chamado urgente. Durante minha ausência, José David Teixeira apareceu e, com a intimidade que tinha, começou a bisbilhotar. Deu com os versos ainda na máquina de escrever, onde eu os deixara. Não teve dúvidas em surripiá-los. Dias depois. enviava-me ele um exemplar do Diário de Rio Claro, com os "Beijos" estampados na primeira página, em meio a umas vinhetas ...
- A sensação que você teve?
Foi de nudez. Fiquei indignado. Indignado e envergonhado. Apavorava-me a idéia de que todos iriam verificar, por aí, que eu fazia versos. Iriam, talvez, comentar o soneto... Tive a impressão de que me colocavam, inteiramente nu, em cima da capota de um automóvel e me exibiam, assim, como curiosidade, como animal exótico, pelas ruas da cidade.
Tirou um cigarro e antes que eu lhe fizesse outra pergunta, avisou, enquanto riscou o fósforo:
Quero contar-lhe, a propósito desses versos, um episódio interessante. Fêz uma ligeira pausa, para acender o cigarro e prosseguiu:
Como disse há pouco, o soneto começou, desde logo, a ser transcrito e reproduzido, em outros jornais e em toda uma série de almanaques. Fêz carreira, popularizou-se e é ainda recitado e declamado, por aí a fora. Vamos ao episódio. Certa vez em companhia de minha senhora, realizava uma viagem ao nordeste do Brasil, em um vapor do Lóide Brasileiro. Um dia, numa dessas festas que, quase a todo instante, se realizam a bordo, um oficial do Exército começou a declamar, anunciando sempre título dos versos e o nome do autor. Disse "As Pombas", de Raimundo, "As virgens mortas", de Bilac. Depois, anunciou "Beijos". E declamou o meu soneto. Achei aquilo meio esquisito. Por que omitira ele o meu nome? Chamei um dos amigos do oficial, pedi-lhe que dele indagasse o motivo por que não declinara o nome do autor de "Beijos". Instantes depois, o oficial declamador voltou ao meio do salão e, tomando a palavra, disse, com ênfase, muito solenemente: "Esqueci-me de mencionar o nome do autor de "Beijos". Um dos presentes, naturalmente curioso por saber a quem devemos tão belos versos, reclamou. Tenho a esclarecer que esse admirável soneto é da lavra do grande poeta patrício Alberto de Oliveira...
- Guilherme, seu primeiro livro...
É Nós...
- Já sabia. Como nasceu?
Como tudo, neste mundo, muito naturalmente. Senti, um dia, vontade de fazer uns sonetos. Comecei a escreve-los, sem um plano preconcebido. Reparei, depois, que se encadeavam e formavam, assim, uma história amorosa. Não pretendia publicá-las em livro. Foi Amadeu Amaral que me induziu a isso. Eu conhecia o poeta e admirava-lhe profundamente o talento e a maneira sumamente bela por que esse talento se exteriorizava. Um dia, mostrei-lhe os meus sonetos. Sugeriu-me ele que os reunisse em livro. De outro lado, Vicente de Carvalho aconselhou-me que, no volume, não incluísse alguns dos sonetos (Nós, tal como o escrevi, constituía-se de cinqüenta e quatro e não de trinta e três sonetos). Fiquei hesitante. Amadeu insistiu e fez que Júlio César da Silva também teimasse comigo para que publicasse o livro. Ambos não descansaram, enquanto não aquiesci. Então, segui os conselhos de Vicente e de Amadeu, desprezei alguns dos versos e fiz uma edição de mil exemplares. Foi isso em 1917 e eu contava, portanto, vinte e seis anos. Antes de ser posto à venda, Nós foi lido, na redação do O Estado de S. Paulo - lido por Júlio César, pois não tive coragem para isso, tão emocionado me sentia.
- O sucesso não se fêz esperar ...
Não foi bem assim. Tudo indicava que Nós fracassaria inteiramente. Os livreiros recebiam com má vontade os exemplares que eu lhes mandava, para que expusessem nas vitrinas. Um chegou a declarar-me que aquilo não era livro. "Livro, menino" - disse-me ele - "tem que ficar em pé na estante e isso aí não se levanta, nem à mão de Deus Padre ... " Eu já estava desanimado, quando, um dia, apareceu na A Notícia, do Rio, uma das mais tremendas descomposturas que Antônio Tôrres escreveu. Sob o título "O bacillus lyricus", o panfletário fazia tudo que em suas forças estava para arrasar os meus versos. Reuniu tudo quanto poderia reunir de mal, para falar do livro. Acabava por dizer que eu deveria deixar de "fazer versos molhando a pena em água de laranjeira açucarada, como o malogrado cretino Casimiro de Abreu, cuja alma tenha Satanás sempre entre os cornos". Uma recepção pouco lisonjeira, como vê. A catilinária teve, porém, efeito oposto.
- Despertou curiosidade.
E, também, revolta. Os críticos da época, entre os quais Medeiros e Albuquerque, tiveram sua atenção voltada para Nós. Leram-no e a reação não se fez esperar. Medeiros foi o primeiro a rebater, pelas colunas de A Noite, as afirmações de Antônio Tôrres. Outros fizeram o mesmo e a edição ficou inteiramente esgotada, uma semana após a divulgação da descompostura, na A Notícia. Outra coisa: em conseqüência de tudo isso, obtive nada menos que mil e duzentas críticas sobre Nós, todas favoráveis e sendo de notar que a edição, como referi há pouco. era de apenas mil exemplares.
- Êxito integral.
Graças a um insucesso inicial.
- As impressões que você teve, com a publicação de Nós ...
Inúmeras. Poderei, entretanto, referir a principal, a maior de todas, a que até hoje guardo, bem nítida, em minha retentiva. Foi em certa madrugada, quando já não era noite e ainda não era dia. Eu tomara um bonde, no centro, rumo à casa. Logo depois, entrou no mesmo bonde uma operária, jovem e linda. Sentou-se no banco à frente do em que eu estava. Pagou a a passagem, tirou um livro que trazia debaixo do braço e começou a ler. Notei, logo, que nada conseguia desviar sua atenção. Espichei o pescoço, curioso por saber que livro era aquele... Era Nós! O meu livro de versos! ...
- E você?
Quis chamar a atenção dela, para mim. Tossi, arrastei os pés, mexi-me espalhafatosamente no bonde. Ela continuava a ler, absorta, insensível a tudo que a rodeava. Puxei a cortina bruscamente, com estrondo. Ela não se mexeu. Continuava ler, vivendo na imaginação todo o romance que eu pusera nos sonetos. Tossi de novo, e de novo puxei a cortina para o alto e, depois, para baixo... Tudo inutilmente .. Linda, tal qual ela mesma, não se movia, não desviava os olhos grandes e belos das páginas do livro.
- Afinal ...
Cheguei às proximidades de minha residência. Bati a campainha e o bonde parou. Só então, só depois que eu já descera, ela voltou-se. Olhou muito a casa em que eu morava. E eu fiquei olhando muito a sua figura encantadoramente bela até que o bonde desapareceu, numa curva... Nunca pude saber-lhe o nome. Nunca mais a vi ...
- Houve quem afirmasse que Nós seria um plágio de Geraldy...
É verdade. Um de nossos críticos, não faz muito, acusou-me de ter plagiado o grande poeta francês. E argumentou: “Toi et moi”, traduzido, equivale a "tu e eu"; portanto, é igual a Nós... Poderia parecer pilhéria. Não é. O homem teve coragem suficiente para escrever e assinar esse disparate... Para responder-lhe - e creio que a resposta não poderia ser melhor - traduzi os versos de Paul Geraldy.
- Soube que houve uma coincidência entre o seu e um livro de Virgínia Victorino.
Exatamente. Da última vez que estive em Portugal, tive oportunidade de conhecer a grande poetisa. Foi ela mesma que me contou que, justamente na época em que Nós foi publicado, estava concluindo um livro nos mesmos moldes e - a coincidência é impressionante - com título igual. A esse tempo, chegou a Portugal o meu volume. E Virgínia, à última hora, quando estava sendo impresso o livro, teve de mudar-lhe o título para Namorados. É fácil, entretanto, verificar que não houve plágio. Houve, apenas, uma coincidência impressionante; não mais porém, que uma simples coincidência.
- Qual a tiragem que já alcançou Nós?
Até agora, cêrca de 45.000 exemplares, contando com as do Messidor, em que foi incluído. E as edições acham-se totalmente esgotadas. Começou com mil... Antônio Tôrres, porém, quis dar-me o ensejo que tanto eu desejava! ...
- Que é que você acha, atualmente, de Nós?
É um livro de minha mocidade. Não digo que seja sincero, porque sou contra a sinceridade na arte. É porém espontâneo, muito espontâneo...
No decorrer de uma palestra rápida, enquanto esperava o ônibus, numa tarde que era uma algazarra de luz e de sol, Guilherme revelou-me qual dentre os seus livros é o que ele reputa o melhor.
É Festim! - respondeu ele à indagação que lhe fiz, a esse respeito.
- Não conheço...
Ainda não foi publicado, nem o publicarei.
- Por quê?
Porque é um livro hermético, que não seria compreendido. É, também, a única obra em que pude manter uma atitude puramente espiritualista e em que consegui lançar uma fórmula poética exclusivamente minha.
- E dentre os que já publicou?
Como obra de pensamento, o Livro de horas de Soror Dolorosa; como livro cheio de lirismo e que, aliás, não foi muito bem compreendido, porque, sendo lírico, é uma sátira à poesia – Você; finalmente, pela originalidade que os caracteriza, Raça e Meu que, como você não ignora, foram os marcos iniciais do movimento nativista, na moderna poesia brasileira.
O ônibus corria pela avenida São João, quando perguntei a Guilherme qual a tiragem global de seus livros
Somente os editores poderiam responder com exatidão a essa pergunta...
Depois de uma pausa, cheio de malícia, continuou:
Você sabe como são essas coisas... O contrato para a edição de um livro determina certa tiragem; em uma das páginas, no princípio ou no fim, aparece a clássica declaração do número de exemplares tirados. Mas, por "milagre" de multiplicação, a tiragem real é, muitas vezes, maior do que a que consta do contrato e da declaração... Um livro que, oficialmente, para o autor e para os leitores, deveria ter alcançado uma tiragem de mil exemplares, não raro, na verdade, chegou a dois ou três mil... Daí, é fácil concluir que só mesmo os editores poderiam responder-lhe.
- Mais ou menos ...
Tendo, como tenho, vinte e oito obras publicadas, acredito que não há exagero nem otimismo num cálculo de trezentos mil exemplares.
- Qual o que teve maior tiragem?
Messidor, com cerca de quarenta mil. Livro acessível, logo conquistou as preferências do público.
- E o que teve menor tiragem?
Não foi um só. Foram dois: Raça e Meu, com mil exemplares cada um.
- A que você atribui isso?
Ambos são vazados em forma nova e que, para o momento que foram editados, 1925, era um tanto avançada. A feição tipográfica dos dois, por sua vez, influiu no ânimo do público. Interessante e curioso, inexplicável mesmo, é que essa feição, que era apenas moderna, fosse considerada como futurista até pelos críticos... Coisas deste país, onde tudo quanto não é bem compreendido passa a ser catalogado como futurista.
O ônibus parou à esquina da Rua Pamplona, no Jardim Paulista, onde Guilherme reside, numa casa plantada em meio a uma porção de árvores. Descemos e continuamos, a pé, vagarosamente ...
Meu tem uma história pontilhada de incidentes curiosos... - acentuou Guilherme. Houve um crítico de um dos jornais cariocas que, ao falar do livro, pouco após a sua publicação, lamentou, e lamentou sentidamente, que eu tivesse passado de armas e bagagens para o futurismo. Que pena - dizia ele - Guilherme de Almeida escrever uns versos como os que compõem o seu último livro! Que pena esse poeta agora estar influenciado assim pela escola futurista! Passaram-se alguns dias e, num suplemento literário, foram estampadas algumas das poesias de Meu. Imagine você a minha surpresa quando, logo na terça-feira imediata, li um artigo enorme, assinado pelo mesmo crítico, dizendo exatamente o oposto: que aqueles versos, sim, eram admiráveis; que, felizmente, eu não fizera senão ligeira incursão pelo futurismo; que, para ventura de todos e felicidade geral, eu voltara atrás...
- Ele nem tinha lido os seus versos no livro...
Está claro. É mais ou menos assim que se faz crítica, no Brasil. Não lêem e, depois, dizem as coisas mais absurdas deste mundo. É conhecido aquele incidente em que um crítico carioca fez referências a um livro de versos que... era de contos.
As influências que você teve, em sua formação intelectual?
Meu pai, como já contei a você, foi quem se incumbiu de minha formação humanística. Tinha ele uma biblioteca magnífica. E foi aí, e a conselho dele, que li todos os clássicos portugueses. Uns mais, outros menos, todos exerceram influência em minha formação. Há ainda muitos outros que também influíram em minha maneira de escrever, em meu feitio literário. Verlaine e Baudelaire, dentre os franceses, Tolstoi e Gorki, dentre os russos, Byron e Wilde, dentre os inglêses, Edgar Poe dentre os norte-americanos - eis os que deixaram traços mais fundos em meu intelecto. De todos, Oscar Wilde e Poe foram os que mais me impressionaram e mais me impressionam, até hoje.
Foi na sede da A.P.I., num outro encontro que ali tivemos e ao qual, contrariando todas as expectativas, Guilherme compareceu com uma pontualidade britânica, que perguntei ao poeta:
- Qual a hora em que, regra geral, sente melhor disposição para escrever?.
À noite. Devo, entretanto, dizer que é pela manhã, ao fazer a barba, que penso e concateno as idéias sobre o que deverei escrever, à noite. Gasto uma hora fazendo a barba e passando a limpo, no cérebro, uma crônica, uns versos, alguma coisa que tenha desejo de transportar para o papel. Quando, porém tomo da caneta... Ah, meu caro!... Sou um torturado, ao escrever.
- Torturado? !
Sim, torturado! Jamais pude escrever um soneto, assim de um só arranco, do primeiro ao último verso. Nunca me foi dado escrever sequer uma crônica de um só jato. Os meus originais são verdadeiros logogrifos.
Para confirmar as suas palavras, Guilherme tirou do bolso uma crônica, ou melhor, um autêntico enigma. Palavras riscadas, uma porção de chaves, uma imensidade de chamadas... Uma coisa incompreensível e, ainda por cima, repleta de bonecos e de figuras, garatujados nas margens (figuras e bonecos que, força é reconhecer, evidenciam que Guilherme não é lá muito forte em desenho...). Tudo denotando uma vontade insaciável de alcançar a a perfeição.
Isso tem uma vantagem - acentuou o poeta. Encontrando, na rua, uma coisa destas, ninguém será capaz de decifrar...
- Como você prefere escrever?
Escrevo com caneta-tinteiro, com tinta roxa.
- Por que roxa?
Acho mais repousante, para a vista. Deixe-me dizer-lhe que não sei escrever sobre uma escrivaninha, ou mesa. Tenho uma cadeia especial, com braços suficientemente largos, para que aí possa colocar os cigarros, o sifão, a garrafa de whisky, o gelo. Tomo da prancheta (só sei escrever na prancheta), ponho a cadeira perto da janela (preciso de paisagem, principalmente de céu, para produzir alguma coisa), acendo a lâmpada do do "abat-jour" e, então sim, começo a rabiscar... E é fumando, fumando sem para, é bebericando whisky, é olhando o céu, que vou escrevendo...
- Numa sala de redação...
Seria incapaz de produzir. Numa sala fechada, entre quatro paredes, nunca tentei, sequer, escrever um verso. Preciso, para compor um soneto ou fazer uma crônica, de três "sss", que são as três serpentes do meu paraíso interior: sombra, silêncio e solidão.
No Departamento Municipal de Cultura, enquanto despachava um monte de processos, Guilherme forneceu-me outros dados. Foi aí que interroguei o poeta sobre quais, a seu ver, os fatores que um livro deve reunir, para alcançar sucesso. Ele hesitou um pouco. Decidiu-se, depois:
Três fatôres essenciais: personalidade, personalidade e personalidade
- Três que se resumem num só...
Perfeitamente. Três elementos distintos, que se consubstanciam num só verdadeiro.
- Quais os autores que você prefere?
Não faz muito, naquele encontro que tivemos, no ônibus, disse a você quais os que influíram em minha formação intelectual. Esses, naturalmente, são os que prefiro. A propósito, não será demais, entretanto, referir que, há algum tempo, um jornal francês realizou uma "enquête"...
- Para saber quais os livros preferidos ...
Sim. Os livros que os escritores franceses preferiam, para ler durante uma estação de repouso. Foram interrogados todos os grandes das letras de França. E todos responderam com a mais absoluta falsidade. Ninguém foi sincero. É com lealdade que digo a você: se uma pergunta assim me fosse feita, não hesitaria em dizer que levaria, comigo, para ler, uma Bíblia, os livros de Rabelais e um guia Baedecker.
- A obra que lhe causou impressão mais forte?
Quando moço ou, mais exatamente, quando era apenas um rapazola, foi Sonata de Kreutzer, de Tolstoi.
- Você é supersticioso?
Não. Sou supersticiosíssimo. Você deve ter reparado que sou incapaz de apagar o fogo. Não uso isqueiro...
- E sempre é muito cuidadosamente que coloca o fósforo no cinzeiro...
Para que não se apague em minhas mãos, para que se queime, até o final. Adoro o fogo. Todos os dias faço uma oração mental ao fogo. Porque é ele o meu elemento protetor. Para mim, não há coisa mais linda neste mundo que os fogos de artifício. É por isso mesmo que sou pirotécnico...
- Você? !
Sim, eu mesmo. Sou pirotécnico, sei fazer fogos de artifício e nunca me canso de adorar o fogo.
Fez uma pausa. E exclamou, acentuando bem as palavras
É lindo o fogo! E é o meu protetor! O fogo destrói e purifica! E nunca se repete: é inumerável.
- Os livros que tem em projeto?
Os meus haicais, reunindo uma série de haicais, gênero de poemas muito em voga no Japão. Um livro em prosa: Histórias de Guy ...
- Histórias para crianças?
Histórias para todas as idades. Há, sempre, uma criança dentro de cada um de nós.
________________
|