Henry Miller
Entrevistado por George - Extraído de COWLEY, Malcolm.
Wickess em setembro de Escritores em ação. Rio de Janeiro:
1961, em Londres Paz e Terra, 1968.
Henry Miller nasceu no distrito de Yorkville, da cidade de New York, a 26 de dezembro 1891. Freqüentou por dois meses o Cíty College, antes de empregar-se numa companhia de cimento e entrar num período de "rígoroso atletismo", que durou sete anos. Miller diz que teve sua primeira amante, "um mulher com idade suficiente para ser minha mãe", aos dezessete anos. Em 1913, começou suas viagens, percorrendo a região oeste dos Estados Unidos, dedicando-se às mais diversas tarefas. Em 1914, retornou a New York e trabalhou na alfaiataria pertence ao seu pai, deixando-a depois de uma tentativa no sentido de entregar a alfaiataria aos seus empregados
Miller escreveu seu primeiro livro, jamais publicado, em 1922, durante umas férias de três semanas, quando trabalhava na Western Union. Ele, porém, assinala o ano de 1924 como sendo aquele em que começou a escrever a sério, vendendo poemas em prosa ("Mezzotints") de porta em porta. Começando nessa época, e durante muitos anos consecutivos, passou por grande pobreza, dependendo, para a sua manutenção, do auxílio de outros. Hoje, sua obra, segundo Lawrence Clark Powell, bibliotecário da Universidade da Califórnia, é a mais amplamente lida dentre as de autores americanos vivos, com exceção de Upton Sinclair ou de escritores americanos já mortos, exceto Mark Twain e Jack London.
Suas obras incluem Tropic of cancer (l934), Black spring (l936), Tropic of capricorn (l939), The colossus of Maroussi (l941), The wisdom of the heart (l941), The air-conditioned nighttnare (l945), Remember to remember (l947), The books of my life (l952), Big Sur and the oranges of Hieronymus Bosch (l957), Stand still like the hummingbird (l962), e Watercolors, drawings an his essay "The angel is my waterinark!" (l962). Durante muitos anos, vem ele trabalhando em seu livro The rosy crucifixion, uma trilogia autobiográfica, da qual Sexus (l949), Plexus (l953) e Book of the nexus (l960) já foram publicados. As edições americanas de Tropic of cancer e Tropic of capricorn foram lançadas, respectivamente, em 1961 e 1962.
Em 1934, Henry Miller, que contava então quarenta e dois anos e vivia em Paris, publicou seu primeiro livro. Em 1961, o livro foi finalmente publicado em seu país natal, onde logo se tornou best-seller e uma “cause célebre”. Hoje, as águas tornaram-se tão turvas devido a controvérsias acerca de censura, pornografia e obscenidade, que é mais provável que se fale sobre tudo o mais do que sobre o próprio livro.
Mas isto não é nada novo. Como D. H. Lawrence, Henry Miller converteu-se há muito numa coisa proverbial e numa lenda. Defendido por críticos e artistas, venerado por peregrinos, emulado por beatniks, ele é, mais que qualquer outra coisa, um herói - ou um vilão - da cultura, para os que vêem nele uma ameaça à lei e à ordem. Poderia até mesmo ser descrito como um herói folclórico: vagabundo, profeta, exilado, o rapaz de Brooklyn que foi para Paris quando todos os outros estavam voltando para casa, o boêmio faminto a suportar os apertos dos artistas criadores na América e, nos últimos anos, o sábio de Big Sur.
Sua vida está toda descrita numa série de narrativas picarescas escritas na primeira pessoa do presente histórico: seus primeiros anos em Brooklyn, narrados em Black Spring, suas lutas para encontrar a si mesmo, na década de 1920, em Capricorn, e os três volumes de Rosy crucifixion, suas aventuras em Paris durante o decênio de 30. em Tropic of câncer
Em 1939, Henry Miller foi à Grécia visitar Lawrence Durrell; sua estada lá proporciona a base da narrativa de The colossus of Maroussi. Isolado pela guerra e obrigado a regressar aos Estados Unidos, empreendeu a longa odisséia de um ano registrada em The air-conditioned nightmare. Depois, em 1944, Miller fixou residência num trecho de costa magnificamentee deserto da Califórnia, levando a vida descrita em Big Sur and the oranges of Hieronymus Bosch. Agora, que o seu nome converteu o Big Sur num centro de peregrinação, ele foi de lá expulso e se encontra de novo a mudar de um lugar para outro,
Aos setenta anos, Henry Miller assemelha-se antes a um monge budista que engoliu um canário. Impressiona-nos imediatamente como sendo uma criatura humana sensível e singular. Apesar de sua cabeça calva, com seu halo de cabelos brancos, não há nele nada de velho. Sua figura, surpreendentemente esguia, é a de um jovem; todos os seus gestos e movimentos são jovens.
Sua voz é magicamente cativante, de inflexão melodiosa, ressoante, mas bastante profunda, com grande variação e variedade de modulação; não é possível que seja tão inconsciente como parece de sua inflexão musical. Fala com um sotaque de Brooklyn um tanto modificado, pontuado por pausas retóricas, como, por exemplo, "Percebe?", "Compreende?", bem como com uma série de ruídos reflexivos e decrescentes: "Yas, yas, . . hmm ... humn ... yas... hm ... hm." Para que se obtenha o pleno sabor e a honestidade de tal homem, é mister que se ouçam as gravações de sua voz.
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- Antes de mais nada, poderia o senhor explicar de que maneira se dedica à sua tarefa de escritor? Acaso faz ponta em lápis, como Hermingway, ou algo semelhante, a fim de pôr o motor em movimento?
Não, em geral não; não faço nada disso. Geralmente, ponho-me a trabalhar logo após a breakfast. Sent-ome logo diante da máquina. Se vejo que não sou capaz de escrever, desisto. Mas não há, via de regra, fases preparatórias.
- Há certas horas do dia, certos dias em que trabalha melhor que em outros?
Prefiro, agora, trabalhar pela manhã, e só durante duas ou três horas. No começo, eu costumava trabalhar desde depois da meia-noite até ao alvorecer, mas isso foi bem no começo. Mesmo depois que fui para Paris, verifiquei que era muito melhor trabalhar pela manhã. Mas, nessa época,eu costumava trabalhar durante longas horas. Começava pela manhã, tirava uma soneca depois do almoço, levantava-me e punha-me de novo a escrever, às vezes até à meia-noite. Nos últimos dez ou quinze anos, constatei que não é necessário trabalhar-se tanto. É mau, na verdade. Esgota-se o reservatório.
- Diria que escreve rapidamente? Perlès disse, em My friend Henry Miller, que o senhor era um dos datilógrafos mais rápidos que ele conhecera.
Sim, muita gente diz isso. Devo fazer muito barulho, quando escrevo. Creio que escrevo rapidamente. Mas isso varia. Posso escrever com rapidez durante algum tempo, mas há momentos em que empaco, e é possível que demore uma hora para escrever uma página. Isso, porém, é bastante raro, pois, quando vejo que estou me atolando, salto o trecho difícil e prossigo, voltando ao mesmo, com a cabeça fresca, noutro dia,
- Quanto tempo levaria para escrever um de seus primeiros livros, quando estava a trabalhar?
Eu não saberia responder a isso. Não saberia jamais prever quanto tempo um livro iria levar: nem mesmo hoje, quando me proponho fazer algo, não saberia dizê-lo. E é um tanto falso tomar-se a data em que um autor diz ter começado e terminado um livro. Isso não significa que ele estivesse a escrever o livro, incessantemente, durante esse tempo. Tomemos, por exemplo, Sexus, ou toda a Rosy Crucifixion. Creio que comecei em 1940, e aqui estou ainda entregue ao trabalho. Bem, seria absurdo dizer-se que estive a trabalhar durante todo esse tempo. Nem sequer pensei em tal coisa durante anos consecutivos. Como é que se pode, pois, falar nisso?
- Bem, sei que o senhor reescreveu várias vezes o Tropic of Cancer, e que essa obra lhe causou, provavelmente, maiores dificuldades que quaisquer outras, mas, claro, tratava-se do começo. Imagino, neste momento, se o escrever não lhe é, agora, mais fácil.
A mim, essas questões me parecem fúteis. Que importa o tempo que se demora a escrever um livro? Se o senhor fizesse tal pergunta a Simenon, ele a responderia com toda a precisão. Penso que demora de quatro a sete semanas para escrever uma novela. Ele sabe que pode contar com ela. Seus livros têm, em geral, determinado número de páginas. Além disso, ele constitui uma dessas raras exceções, um homem que, quando diz, "Agora vou começar a escrever este livro", se entrega a ele por completo. Cerca-se de barricadas - não tem mais nada a pensar ou a fazer. Bem, minha vida jamais foi assim. Sempre tive tudo o mais debaixo do sol para fazer, enquanto escrevia.
- O senhor seleciona ou modifica muito?
Isso também varia. Jamais faço qualquer correção ou revisão enquanto estou escrevendo a obra. Digamos, por exemplo, que eu escreva algo de alguma maneira antiquada; deixo, então, a coisa refrescar (ponho-a de lado durante algum tempo, um mês ou dois, talvez) e vejo-a com novos olhos. Divirto-me, então, a valer com ela. Ponho-me a trabalhar como que com um machado. Mas nem sempre. Às vezes, a coisa sai quase como eu queria.
- E quanto à sua maneira de revisão?
Quando estou revendo, uso lápis e tinta para fazer modificações, excluir e incluir coisas. O manuscrito, depois disso, fica com um aspecto estupendo, como um manuscrito de Balzac. Depois, torno a datilografar e, enquanto o faço, efetuo novas modificações. Eu próprio prefiro tornar a datilografar tudo, pois, mesmo quando julgo que já fiz todas as modificações que desejava, o simples ato mecânico de bater nos teclados aguça-me as idéias, e eu me vejo a fazer nova revisão, à medida que vou terminando o trabalho.
- Quer dizer que se passa algo entre o senhor e a máquina de escrever?
Sim. De certo modo, a máquina age como um estímulo; é algo que coopera.
- Em The books of my life, o senhor diz que a maioria dos escritores e pintores trabalha em posição pouco confortável. Acha que isso ajuda?
Acho. De certo modo, acabei por acreditar que a última coisa em que um escritor ou qualquer artista pensa, enquanto está trabalhando, é no conforto. Talvez o desconforto constitua algo assim uma ajuda ou um estímulo. Homens que podiam permitir-se trabalhar em melhores condições preferem fazê-lo, não raro, em condições miseráveis.
- Acaso esses desconfortos não são, às vezes, psicológicos? Veja o caso de Dostoievski...
Bem, não sei. Sei que Dostoievski vivia sempre num estado miserável, mas não se pode dizer que ele escolhesse deliberadamente tais desconfortos psicológicos. Não, duvido vivamente disso. Não creio que alguém escolha tais coisas, exceto inconscientemente. Penso que muitos escritores possuem o que se poderia chamar uma natureza demoníaca. Estão sempre, como sabe, metidos em complicações, e, isso não só quando estão escrevendo ou porque o estão fazendo, mas em todos os aspectos de suas vidas, como casamento, amor, negócios, dinheiro, tudo. Está tudo ligado entre si - tudo é parte e parcela da mesma coisa. É um aspecto da natureza criadora. Nem todas as personalidades criadoras são assim, mas algumas o são.
- O senhor se refere, num de seus livros, "dítado", a quase ser "possuído", a ter o que escreve quase jorrar do senhor. De que modo funciona esse processo?
Bem, isso ocorre apenas em raros intervalos... esse tal "ditado". Alguém assume o comando, e a gente apenas copia o que está sendo dito. Ocorreu, de modo sumamente poderoso, no trabalho sobre D. H. Lawrence, trabalho que jamais terminei - e isso porque tive de pensar demais. Como vê, penso que pensar é mau. Um escritor não deveria pensar muito. Mas aquela era uma obra que requeria pensamento. Eu não sou muito bom quanto a pensar. Trabalho com material que provém de alguma fonte de origem profunda - e quando escrevo, bem, não sei exatamente o que irá acontecer . Sei aquilo sobre que pretendo escrever, mas não me interessa muito de que modo irei dizê-lo. Naquele livro, porém, eu estava me agarrando a idéias; ele precisava ter alguma forma e sentido, e coisas semelhantes. Entreguei-me a ele, creio, durante uns bons dois anos. Fiquei saturado dele, tornei-me obcecado e não conseguia largá-lo. Não conseguia sequer dormir. Bem, como digo, o "ditado" manifestou-se de maneira mais forte naquele livro. Isso ocorreu, também, com Capricorn, bem como com partes de outros livros. Creio que tais trechos se sobressaem. Não sei se os outros o percebem ou não.
- São, acaso, as passagens a que o senhor chama cadências?
Sim, usei essa expressão. Os trechos a que me referi são tumultuosos, as palavras atropelam-se. Eu poderia prosseguir indefinidamente. Claro que acho que essa é a maneira que se deveria escrever sempre. Vê-se ai toda a diferença, a grande diferença, existente entre a disciplina e a maneira de pensar e de agir do Ocidente e do Oriente. Se, digamos, um artista Zen vai fazer algo, já teve uma longa preparação de disciplina e meditação, tranqüilo e profundo raciocínio a respeito, e, depois, silêncio, vazio, nada de pensamento e assim por diante - e isso poderá levar meses, anos. Depois, quando começa, é como um relâmpago, exatamente como ele deseja - perfeito. Bem, assim é que penso que toda arte deveria ser feita. Mas quem o faz? Vivemos vidas que são contrárias à nossa profissão.
- Existem, acaso, condições particulares a que o escritor deva adaptar-se, como o faz o esgrimista Zen?
Oh, certamente! Mas quem o faz? Todavia, quer ele queira ou não fazê-lo, todo artista adota uma disciplina e se adapta desta ou daquela maneira. Cada homem possui sua própria maneira. Afinal de contas, a maior parte do que se escreve é feito longe da máquina de escrever, longe da escrivaninha. Eu diria que ocorre nos momentos tranqüilos, silenciosos, enquanto se está caminhando, fazendo a barba, entregue a este ou àquele jogo - ou até mesmo falando com alguém por quem se está muito interessado. A gente está trabalhando - nossa mente está trabalhando - no problema que se tem no fundo da mente. De modo que, quando a gente se senta à máquina de escrever, trata-se de mera questão de transferência.
- O senhor disse, há pouco, que há algo em seu íntimo que assume o comando.
Sim, sem dúvida. Ouça. Quem escreve os grandes livros? Não somos nós, os que assinamos os nossos nomes. Que é um artista? É um homem que possui antenas, que sabe de que modo captar as correntes que há na atmosfera, no cosmo; ele simplesmente possui a facilidade de fisgá-las, por assim dizer. Quem é original? Tudo o que estamos fazendo, tudo o que pensamos, já existe, somos apenas os intermediários, nada mais, do que está no ar. Por que razão certas idéias, certas grandes descobertas científicas, ocorrem, simultâneamente, em diferentes partes do mundo? O mesmo é verdade quanto aos elementos que entram na composição de um poema, de um grande romance, ou de qualquer obra de arte. Os elementos estão no ar, não receberam ainda vozes, eis tudo. Necessitam do homem, do interprete, para que surjam. É verdade, também, que certos homens se encontram à frente de seu tempo. Mas, hoje, não creio que seja tanto o artista que esteja muito à frente de sua época, mas o homem de ciência. O artista está ficando para trás, sua imaginação não acompanha os passos dos cientistas.
- Como explica o senhor o fato de certos homens serem criadores? Angus Wilson diz que o escritor escreve devido a uma espécie de trauma - que usa sua arte como uma espécie de terapia para dominar sua neurose. AIdous Huxley, por outro lado, adota opinião inteiramente oposta, e diz que o escritor é preeminentemente são: que, se tiver uma neurose, isto só servirá para aumentar suas dificuldades como escritor. O senhor tem alguma opinião a respeito?
Penso que isso varia, de acordo com cada escritor. Não acho que se possam fazer tais enunciações, quanto a escritores, de um modo geral. Um escritor, afinal de contas, é um homem, um homem como qualquer outro; pode ser neurótico ou não. O que quero dizer é que sua neurose, ou o que quer que constitua a sua personalidade, nada tem que ver com sua literatura. Acho que se trata de algo muito mais misterioso do que isso, e eu nem sequer tentaria abordar tal questão. Eu disse que um escritor era um homem que tinha antenas; se ele soubesse realmente o que era, seria muito humilde. Reconheceria a si próprio como um homem dotado de certa faculdade destinada a ser usada a serviço de outros. Ele nada tem de que orgulhar-se, seu nome nada significa, seu ego é zero; ele não passa de um instrumento numa longa marcha.
- Quando descobriu que o senhor possuía tal faculdade? Quando foi que começou a escrever?
Creio que deve ter sido quando eu trabalhava para a Western Union. De qualquer modo, foi então que escrevi, certamente, meu primeiro livro. Escrevi, também, naquela época, outras pequenas coisas, mas a verdadeira coisa aconteceu depois que deixei a Western Union - em 1924 quando resolvi que seria escritor e que me dedicaria inteiramente a isso.
- Quer dizer que o senhor continuou a escrever durante um período de dez anos, antes de Tropic of cancer ter sido publicado.
Sim, mais ou menos isso. Entre outras coisas, escrevi, naquela altura, duas ou três novelas. Escrevi duas, com certeza, antes de escrever o Tropic of cancer.
- Poderia dizer-me alguma coisa a respeito dessa época?
- Bem, já contei bastante, a respeito, em The rosy crucifixion, Sexus, Plexus e Nexus tratam dessa época. Haverá ainda mais, na última metade de Nexus. Contei tudo acerca de minhas tribulações durante essa época: minha vida física, minhas dificuldades. Trabalhava como um cão e, ao mesmo tempo - que é que direi? - vivia como que em meio de uma névoa. Não sabia o que estava fazendo. Não conseguia perceber para onde me dirigia. Supunha estar trabalhando num romance - escrevendo esse grande romance - mas, na realidade, eu não chegava a parte alguma. Às vezes, eu não escrevia mais que três ou quatro linha por dia. Minha esposa costumava chegar tarde da noite em casa e indagar: "Bem, com vai a coisa?” (Eu jamais permito que ela veja o que está na máquina.) E eu respondia: "Oh, prossegue maravilhosamente." "Bem, em que ponto está você agora?" Ora, veja o senhor: de todas as páginas que se supunha que eu escrevera, talvez houvesse escrito apenas três ou quatro, mas eu falava como se tivesse escrito umas cem ou duzentas e cinqüenta páginas. Continuava a falar acerca do que fizera, compondo o romance enquanto lhe falava. E ela ouvia e encorajava-me, sabendo muitíssimo bem que eu estava mentindo. No dia seguinte, aproximava-se e perguntava-me: "E aquele trecho de que você me falou outro dia? Como vai indo?" E era tudo uma mentira, como o senhor percebe: algo que nós dois fabricávamos. Maravilhoso, maravilhoso ...
- Quando começou a conceber todo o conjunto daqueles volumes autobiográficos?
No ano de 1927, quando minha mulher foi para a Europa e eu fiquei sozinho. Ocupei, durante algum tempo, um emprego, no Departameno de Parques, em Queens. Certa vez, no fim do dia, ao invés de ir para casa, assaltou-me a idéia de planejar o livro de minha vida, e passei a noite em claro a fazê-lo. Em cerca de quarenta ou cinqüenta páginas datilografados, planejei tudo o que havia feito até então. Escrevi-o em notas, em estilo telegráfico. Mas a coisa toda lá está. Todo o meu trabalho, desde Capricorn, passando por The rosy crucifixion - exceto Cancer, que era algo que pertencia ao presente imediato - se refere aos sete anos que vivi com essa mulher, desde que a conheci até que parti para a Europa. Eu não sabia, então, quando partiria, mas sabia que o faria, mais cedo ou mais tarde. Foi esse o período crucial de minha vida como escritor - o período pouco anterior à minha partida dos Estados Unidos.
- Durrell refere-se à necessidade que o escritor tem de uma ruptura em seus escritos, a fim de ouvir o som de sua própria voz. Na realidade, não é essa a sua própria expressão?
Sim, creio que sim. Seja lá como for, isso me aconteceu com Tropic of cancer. Até aquela altura eu era, poder-se-se-ia dizer, um escritor inteiramente derivativo, influenciado por todos, adotando todos os tons e sombras de todos os outros escritores que eu amara. Eu era, poder-se-ia dizer, um literato. E tornei-me um homem não literato: cortei o cordão umbilical. Disse comigo mesmo: farei somente o que posso fazer, exprimirei o que sou ... Eis aí por que empreguei a primeira pessoa do singular, por que escrevi somente a respeito de mim mesmo. Resolvi escrever partindo de minha própria experiência, daquilo que eu sabia e sentia. E isso foi a minha salvação.
- A que se assemelhavam aquelas primeiras novelas?
Imagino que o senhor descobriria, que, naturalmente, deveria encontrar nelas alguns traços do meu próprio eu. Mas eu estava bastante convicto, na época, que se precisaria ter uma espécie de história, um enredo para se desenvolver. Eu preocupava-me mais com a forma e a maneira de fazê-lo que com a coisa vital.
- É a isso que o senhor se refere corno sendo coisa "literária"?
Sim, algo que é gasto e inútil, de que a gente deve descartar-se. O homem literato tem de ser extirpado. A gente, naturalmente, não mata esse tal homem, pois ele é um elemento sumamente vital de nós mesmos como escritores, e, certamente, todo artista se sente fascinado pela técnica. Mas a outra coisa que existe no escrever é a gente. Uma coisa que descobri é que a melhor técnica é não se ter técnica alguma. Jamais achei que deveria aderir a qualquer maneira de tratar um tema. Permaneço aberto e flexível, pronto para seguir a direção dos ventos ou das correntes de pensamento. Eis ai minha atitude e minha técnica, se se quiser, flexíveis e alertas para empregar o que quer que me pareça bom no momento.
- Em An open letter to surrealists everywhere, o senhor diz: "Eu já escrevia surrealisticamente, nos Estados Unidos, antes sequer de ter ouvido tal palavra." Que quer o senhor dizer por surrealismo?
Quando eu morava em Paris, tínhamos uma expressão, muito americana, que, de certa maneira, explica isso melhor que qualquer outra coisa. Costumávamos dizer: "Let’s take the lead." (Tomemos a Iniciativa.) Isto significava ir ao extremo, mergulhar no inconsciente, obedecendo apenas aos nossos próprios instintos, seguindo nossos impulsos, quer fossem do coração, das entranhas, ou o que quer que se deseje chamá-los. Mas essa é a minha maneira de dizer a coisa, não se tratando, na verdade, da doutrina surrealista: isso não resistiria, receio, aos argumentos de André Breton. Todavia, o ponto-de-vista francês, o ponto-de-vista doutrinário, não significava grande coisa para mim. Só o que me importava era o fato de eu haver encontrado nele outro meio de expressão, um meio adicional, mais intenso, mas que deveria ser usado muito judiciosamente. Quando os surrealista conhecidos empregavam tais técnicas, faziam-no demasiado deliberadamente, parecia-me. Ela tornava-se ininteligível. Quando se perde toda inteligibilidade, está-se perdido, creio eu.
- Acaso é surrealismo aquilo ao que o senhor se refere com a frase "pela vida da noite adentro"?
Sim, há, primordialmente, o sonho. Os surrealistas fazem uso do sonho e, certamente, esse constitui sempre um aspecto maravilhoso e fecundo da experiência. Consciente ou inconscientemente, todos os escritores empregam o sonho, mesmo quando não são surrealistas. A mente desperta, é, como sabe, o que há de menos útil nas artes. No ato de escrever, a gente está lutando por trazer à tona o que nós próprios desconhecemos. Escrever meramente aquilo de que se tem consciência não nos conduz, na verdade, a parte alguma. Qualquer um pode fazer isso com um pouco de prática, cada qual pode converter-se nessa espécie de escritor.
- O senhor chamou de surrealista a Lewis Carroll, e o nome dele sugere a espécie de jabberwocky (1) que o senhor, de vez em quando emprega ...
Sim, sim, claro que Lewis Carroll é um escritor que amo. Eu teria dado meu braço direito para ter escrito os livros que ele escreveu, ou para poder aproximar-me, de algum modo, do que ele fez. Quando eu terminar meu projeto, se continuar a escrever, adoraria escrever pura tolice.
- Que me diz acerca do dadaísmo? Já se meteu alguma vez nisso?
Sim, o dadaísmo foi mais importante para mim que o surrealismo. O movimento dadaísta foi algo verdadeiramente revolucionário. Foi um esforço conscientemente intencional no sentido de virar as mesas de pernas para o ar, no sentido de mostrar a absoluta insensatez de nossa vida cotidiana, a absoluta insignificância de todos os nossos valores. Houve homens maravilhosos no movimento dadaísta, e todos eles possuíam senso de humor. Era algo para fazer-nos rir, mas, também, para fazer-nos pensar.
- Parece-me que, em Black spríng, o senhor se aproximou bastante do dadaísmo.
Sem dúvida. Eu era, então, sumamente impressionável. Achava-me predisposto a tudo que estava acontecendo, quando cheguei à Europa. É verdade que já sabia certas coisas, nos Estados Unidos. Transition chegou até nós, na América; Jolas foi maravilhoso, ao selecionar aqueles escritores estranhos e bizarros de que jamais tínhamos ouvido falar. Depois, lembro-me de ter ido, por exemplo, ao Armory Show, a fim de ver Nude descending a staircase, bem como muitas outras coisas maravilhosas. Eu estava fascinado, arrebatado. Tudo aquilo era o que eu buscava, tão familiar me parecia.
- O senhor sempre foi melhor compreendido e apreciado na Europa que na América ou na Inglaterra. A que atribui isso?
Bem, em primeiro lugar em não tinha muita oportunidade de ser compreendido na América, porque meus livros não se achavam impressos lá. Mas à parte isso, embora eu seja cem por cento americano (e eu o sinto cada vez mais, a cada dia que passa), tinha ainda mais contato com os europeus. Podia falar com eles, exprimir mais facilmente meus pensamentos, ser mais facilmente compreendido. Tinha mais rapport com eles que com os americanos.
- Em seu livro sobre Patchen, o senhor diz que, na América, o artista jamais é aceito, a não ser que faça concessões. Ainda pensa assim?
Sim, mais vivamente que nunca. Sinto que a América é, essencialmente, contra o artista, que o inimigo da América é o artista, pois ele é a favor da individualidade e do espírito criador, e isso é, de certo modo, antiamericano. Penso que, dentre todos os países (temos de passar por alto, sem dúvida, os países comunistas), a América é a mais mecanizada, a mais "robotizada" de todos.
- Que achava o senhor, em Paris, na década de trinta, que não pudesse encontrar nos Estados Unidos?
Por um lado, creio que encontrei uma liberdade tal como jamais conheci nos Estados Unidos. Achava muito mais fácil o contato com as pessoas - isto é, as pessoas com quem eu gostava de conversar. Encontrei, lá, mais gente que tinha afinidade comigo. Sentia, sobretudo, que era tolerado. Não pedia que me compreendessem ou aceitassem. Ser tolerado era o bastante. Nos Estados Unidos, jamais senti isso. Além disso, a Europa era um mundo novo para mim. Suponho que talvez pudesse ter sido bom em quase qualquer outro lugar: apenas estar em algum outro mundo diferente, desconhecido. Porque durante toda a minha vida, com efeito - e isso faz parte de minha - como direi? – psicologia singular, sempre gostei somente do que é diferente.
- Em outras palavras, se o senhor tivesse ido para a Grécia em 1930, ao invés de o fazer em 1940, acha que talvez pudesse ter encontrado a mesma coisa?
Talvez não tivesse encontrado a mesma coisa, mas teria encontrado lá os meios de auto-expressão, de auto-libertação. Talvez não tivesse me tornado a espécie de escritor que hoje sou, mas sinto que teria encontrado a mim mesmo. Na América, eu corria o perigo de enlouquecer ou de suicidar-me. Sentia-me completamente isolado.
- E que diz de Big Sur? Encontrou lá um ambiente adequado?
Oh, não! Não existe nada lá, exceto a natureza. Eu vivia sozinho, que era o que desejava. Fiquei lá porque era um lugar isolado. Eu já havia aprendido a escrever em qualquer que fosse o lugar em que morasse. Big Sur constituiu uma mudança maravilhosa. Nessa altura, eu já havia deixado, definitivamente, as cidades para trás. Já estava farto da vida citadina. Claro que jamais escolhi Bíg Sur, o senhor compreende. Fui deixado lá, na estrada, certo dia, por um amigo. Ao deixar-me, ele me disse: "Vá procurar tal e tal pessoa, e ela o acolherá durante uma noite ou uma semana. É um lugar maravilhoso; acho que você gostará dele". E foi assim que fui parar lá. Eu jamais ouvira falar, antes, de Big Sur. Sabia a respeito de Point Sur porque lera Robinson Jeffers. Lera o seu Women at point sur no Café Rotonde, em Paris ... Jamais o esquecerei.
- Não é surpreendente que haja se aproximado da natureza dessa maneira, já que sempre havia sido um homem de cidade?
Bem, o senhor compreende, tenho uma natureza de chinês. Como sabe, na velha China, quando o artista ou o filósofo começava a envelhecer, retirava-se para o campo. Para viver e meditar em paz.
- Mas, no seu caso, foi algo assim como uma coincidência?
Inteiramente. Mas, como vê, tudo de significativo, em minha vida, aconteceu dessa maneira - por puro acaso. Claro que não acredito nisso, tampouco. Creio que sempre houve um propósito, que estava destinado a ser assim. A explicação acha-se em meu horóscopo... Esta seria a minha resposta mais franca. Para mim, tudo é bastante claro.
- Por que razão jamais retornou a Paris, para viver lá?
Por várias razões. Em primeiro lugar, casei logo após chegar a Big Sur; depois, tive filhos; depois, não tinha dinheiro - e, depois, apaixonei-me por Big Sur. Não tinha desejo de reiniciar minha vida em Paris; esta terminara. A maior parte de meus amigos se foi; a guerra despedaçara tudo.
- Gertrude Stein diz que viver em Paris apurou o seu inglês, pois que ela não usava seu idioma na vida cotidiana, sendo que isso fez dela a estilista que é. O fato de morar em Paris exerceu o mesmo efeito sobre o senhor?
Não exatamente, mas percebo o que ela quer dizer. Claro que eu falava muito mais inglês, quando morava lá, do que Gertrude Stein. Em outras palavras: falava menos francês. Todavia estava, o tempo todo, saturado de francês. Ouvir, diariamente, outra língua, aguça nosso próprio idioma, faz com que se perceba sombras e nuanças de que jamais se suspeitou. Ademais, há um ligeiro esquecimento, que faz com que se anseie por recapturar certas frases e expressões. A gente torna-se mais consciente de nossa própria língua.
- O senhor, em alguma ocasião, teve algo que ver com Gertrude Stein ou com as pessoas que a cercavam?
Não; nada, absolutamente. jamais a encontrei; não, nada sabia que dissesse respeito ao seu grupo. Na verdade, eu pouco sabia a respeito de qualquer grupo, poder-se-ia dizer. Fui sempre um lobo solitário, sempre contra grupos e ambientes e seitas e cultos e ismos, e coisas semelhantes. Conhecia vários surrealistas, mas jamais pertenci ao grupo surrealista ou a qualquer outro.
- Conheceu algum escritor americano em Paris?
Conheci Walter Lowenfels, Samuel Putnam, Michael Fraenkel, Sherwood Anderson, Dos Passos, Steinbeck e Saroyan conheci mais tarde, nos Estados Unidos. Encontrei-os apenas algumas vezes, nada mais. Jamais tive qualquer ligação real com eles. De todos os escritores americanos que conheci, Sherwood Anderson destaca-se como tendo sido aquele de que mais gostei. Dos Passos era um sujeito cordial, estupendo, mas Sherwood Anderson... bem, eu estivera apaixonado por sua obra, por seu estilo, por sua linguagem, desde o começo. E gostava dele como pessoa - embora discordássemos inteiramente a respeito da maioria das coisas, principalmente as que se referiam aos Estados Unidos.
- Conheceu muitos escritores ingleses? O senhor teve longa amizade - não teve? - com Durrell e Powys?
Com Durrel, seguramente, mas mal penso nele como sendo um escritor inglês. Penso nele como sendo inteiramente não-britânico.John Cowper Powys exerceu, certamente, tremenda influência sobre mim; mas, na realidade, jamais o conheci, jamais cultivei sua amizade. Eu não me atrevia! Eu era um pigmeu, e ele um gigante. Ele era o meu deus, o meu mentor, o meu ídolo. Deparei-me com ele quando eu tinha vinte e poucos anos. Ele costumava fazer conferências, então, em círculos trabalhistas de New York, Cooper Union e lugares semelhantes. Custava apenas dez centavos uma entrada para a gente ouvi-lo falar. Cerca de trinta anos depois, fui conhecê-lo no País de Gales e, para minha surpresa, verifiquei que ele conhecia minha obra. Parecia ter grande respeito pelo meu trabalho - o que me surpreendeu ainda mais.
- Naquela época, o senhor também conheceu Orwell?
Avistei-me com Orwell talvez duas ou três vezes, em suas visitas a Paris. Eu não o chamaria amigo, mas, apenas, um conhecimento passageiro. Mas eu era louco pelo seu livro Down and out in Paris and London; penso que se trata de um clássico. Para mim, esse é ainda o seu melhor livro. Embora ele fosse, à sua maneira, um sujeito maravilhoso, no fim me pareceu um tolo. Era como muitos ingleses, um idealista e, parecia-me, um idealista tolo. Um homem de princípios, com dizemos. Os homens de princípios enfadam-me.
- E o senhor não se interessa muito pela política?
Nada, absolutamente. Encaro a política como uma coisa inteiramente suja, um mundo podre. Não se chega a parte alguma através da política. Ela avilta tudo.
- Mesmo o idealismo político do tipo de Orwell?
Principalmente esse! Aos idealistas, na política, falta o senso da realidade. E um político deve ser, sobretudo, um realista. Essas pessoas com ideais e princípios vivem desorientadas, na minha opinião. Tem-se de ser despretensioso, possuir algo de assassino, para ser político, pronto e disposto a ver o povo sacrificado, massacrado, a bem de uma idéia, seja esta boa ou má. Quero dizer: esses são os políticos que têm êxito.
- E que tem a dizer acerca dos grandes escritores do passado que particularmente o atraíram? O senhor realizou estudos sobre Balzac, Rimbaud e Lawrence. Diria que há um tipo particular de escritor que o atrai?
Isso é difícil de dizer, já que os escritores que admiro são tão diversos. Existem os escritores que são mais que escritores. Possuem essa qualidade X que é metafísica, oculta, ou coisa que o valha - não sei que eêrmo empregar - esse pequeno algo extra situado além dos confins da literatura. Como sabe, o povo está pronto para divertir-se, passar o tempo ou instruir-se. Ora, eu jamais li para passar o tempo, jamais li para instruir-me: lia para ser levado para fora de mim mesmo, para ficar num estado de êxtase. Estou sempre à procura do autor que possa enlevar-me.
- Poderia dizer por que razão jamais terminou o livro sobre D. H. Lawrence?
Sim, é muito simples. Quanto mais eu prosseguia no livro, tanto menos compreendia o que estava fazendo, Encontrei-me em meio de uma massa de contradições. Verifiquei que eu, na verdade, não sabia quem Lawrence era; não conseguia situá-lo, não conseguia senti-lo: decorrido algum tempo, já não podia colocar-me em seu mesmo plano. Fiquei completamente desorientado. Tinha-se metido num matagal, e não sabia como sair dele. De modo que abandonei o trabalho.
- Contudo, não teve tais dificuldades com Rimbaud, teve?
Não, por estranho que pareça. Ele é mais um enigma que uma personalidade, sem dúvida. E eu não me agarrava tanto às idéias no livro de Rimbaud. Lawrence era inteiramente um homem de idéias, e dependurava sua literatura no cavalete de tais idéias.
- O senhor não subscreve, necessariamente, as idéias de Lawrence, não é?
Não, não inteiramente, mas admiro suas pesquisas, sua luta. E há muitas coisas em Lawrence com as quais concordo. Por outro lado, existem muitas outras que me fazem rir, que parecem absurdas, estúpidas e tolas. Hoje, tenho uma melhor perspectiva dele, mas já não acho importante dizer nada a seu respeito. Naquela altura,ele significava algo para mim: eu me achava inteiramente sob sua influência.
- Bem, creio que, agora, temos de abordar essa questão de pornografia e obscenidade. Espero que o senhor não se importe. Afinal de contas, o senhor é considerado uma autoridade sobre o assunto. O senhor não disse, em algum lugar: "Sou a favor da obscenidade e contra a pornografia"?
Bem, é muito simples. O obsceno seria o franco, o direto, e a pornografia seria o indireto, o perifrástico. Acho que se deve dizer a verdade, apresentando-a friamente, de modo chocante, se necessário, sem disfarçá-la. Em outras palavras, a obscenidade é um processo purificador enquanto a pornografia apenas aumenta a sujeira.
- Purificador em que sentido?
Sempre que se rompe um tabu, algo bom, algo vitalizante ocorre.
-Todos os tabus são maus?
Não entre os povos primitivos. Há razão para o tabu na vida primitiva, mas não em nossa vida, em nossas comunidades civilizadas. O tabu, nestes casos, é perigoso e mórbido. Como sabe, os povos civilizados não vivem de acordo com códigos morais ou princípios de qualquer espécie. Falamos deles, servimo-los da boca para fora, mas ninguém acredita neles. Ninguém pratica tais normas que não têm lugar em nossas vidas. Os tabus, afinal de contas, não passam de coisas remanescentes, de produtos de mentes enfermas, - poder-se-ia dizer, de gente pusilânime que não teve a coragem de viver e que, em nome da moralidade e da religião, nos impôs tais coisas. Vejo o mundo, o mundo civilizado, como grandemente irreligioso. A religião em vigor, entre gente civilizada, é sempre falsa e hipócrita, exatamente o oposto daquilo que os iniciadores de qualquer religião pretendiam.
- Todavia, já o chamaram de homem muito religioso.
Sim, mas sem adotar religião alguma. Que significa isso? Significa, simplesmente, reverenciar a vida, estando do lado da vida, em lugar da morte. Ademais, a palavra “civilização”, em minha mente, está associada à morte. Quando emprego tal palavra, vejo a civilização como sendo uma coisa estropiada, deformada, desacreditada. Para mim, ela foi sempre assim. Não acredito nas idades áureas. O que quero dizer é que havia uma idade de ouro para umas poucas pessoas, para uns poucos eleitos, mas que as massas viviam sempre na miséria, eram supersticiosas, ignorantes, pisadas, asfixiadas pela Igreja e pelo Estado. Sou ainda um grande crente em Spengler - e aí o senhor tem tudo. Ele ressalta a antítese existente entre cultura e civilização. A civilização é a arteriosclerose da cultura.
- Durrel, porém, naquele artigo que escreveu a seu respeito, há uns dez anos, em Horizon, refere-se à obscenidade como uma técnica. O senhor encara a obscenidade como técnica?
Creio que sei o que ele quis dizer. Penso que ele se referia a uma "técnica de choque". Bem, talvez eu a tenha empregado, assim, inconscientemente, mas jamais o fiz deliberadamente. Empreguei a obscenidade naturalmente, como o teria feito com qualquer outra maneira de falar. Era como respirar, aquilo fazia parte de todo o meu ritmo. Havia momentos em que era obsceno, assim como havia outros momentos em que não o era. Não acho, de modo algum, que a obscenidade seja o elemento mais importante. Mas é muito importante, e não deve ser negada, passada por alto, ou suprimida.
- Poderia, também, ser exagerada ...
Poderia sê-lo, mas que mal haveria nisso? Que mal há nisso para que nos preocupemos, ou para que o receemos? Palavras, palavras ... Que é que temos a recear delas? Ou de idéias? Suponhamos que elas sejam repugnantes... Acaso somos covardes? Acaso não temos enfrentado toda a espécie de coisas? Não estivemos à beira da destruição, repetidamente, devido a guerras, doença, peste, fome? De que modo estamos ameaçados devido ao emprego exagerado da obscenidade? Onde o perigo?
- O senhor comentou que a obscenidade é suave, comparada à espécie de violência muito comum nos livros em brochura americanos.
Sim, toda essa literatura perversa e sádica me é detestável. Eu sempre disse que a minha é saudável, por ser deleitosa e natural. Jamais exprimo coisa alguma que as pessoas não estejam dizendo e fazendo o tempo todo. De onde tiro isso? Não o tiro de uma cartola. É algo que nos cerca, que respiramos todos os dias. As pessoas simplesmente se recusam a reconhecê-lo. Entre a palavra impressa e a palavra falada, qual a diferença? Como sabe, nem sempre alimentamos esse tabu. Houve um tempo, na literatura inglesa, em que quase tudo era permitido. Somente nos últimos duzentos ou trezentos anos é que vimos tendo essa atitude contrafeita.
- Bem, mesmo em Chaucer a gente não encontra todas as palavras encontradas em Henry Miller.
Mas encontra-se grande cópia de alegre e saudável naturalismo, plena liberdade de expressão.
- Que lhe parece o comentário de Durrell, na entrevista por ele concedida à Paris Review? Disse ele que, retrospectivamente, achava agora demasiado obscenos certos trechos do Black Book.
Sim? Bem, permita-lhe que lhe diga que são esses os trechos que mais me agradam' Achei-os maravilhosos, quando os li pela primeira vez, e ainda hoje penso o mesmo. Talvez Durrel estivesse apenas caçoando.
- Por que escreveu tanto acerca do sexo? Que significa o sexo para o senhor? Acaso algo de especial?
Isso é difícil de responder. Como sabe, penso que tenho escrito tanto a respeito do que os meus críticos chamam de "intrujíces" - isto é, tolices metafísicas - como a respeito de sexo. Só que eles preferiram olhar apenas o sexo. Não, não sei como responder a tal pergunta, exceto dizendo que isso desempenhou papel Importante em minha vida. Tive boa e rica vida sexual, e não vejo por que razão deveria deixá-la de lado.
- Acaso isso teve algo que ver com a ruptura da vida que vinha levando em New York?
Não, não creio. Mas percebe-se, em França, depois de se deixar os Estados Unidos, que o sexo satura o ar. Cerca-nos por todos os lados, como um fluído. Não duvido, porém, que os americanos se entreguem a relações sexuais de modo tão vigoroso, tão profundo e variado como qualquer outro povo, mas, de certo modo, o sexo não se encontra no ambiente que nos cerca. Ademais, na França, a mulher exerce papel mais importante na vida do homem. Tem melhor situação lá, é levada em consideração, fala-se com ela como uma pessoa, e não apenas como esposa, amante ou coisa que o valha. Na Inglaterra e nos Estados Unidos os homens parecem comprazer-se consigo mesmos.
- Todavia, na Villa Seurat, a sua foi um tipo de vida bastante masculina.
Sem dúvida, mas havia sempre mulheres em redor. Eu tinha muitos amigos, é certo, mas, durante toda a vida, sempre tive grandes amizades. Essa é outra coisa que também está em meu horóscopo: sou um homem destinado a fazer amigos. Talvez esse o fator mais importante em minha vida, e talvez eu deva dizer algo a respeito. Quando comecei a escrever, comecei também a perceber o quanto devia aos outros. Fui ajudado durante toda a minha vida, tanto por amigos como por desconhecidos. Que é que se quer mais, se se tem amigos? Tive muitos amigos, grandes amigos, amigos de toda a vida. Só agora os estou perdendo, devido à morte.
- Deixemos um pouco o sexo e falemos a respeito de pintura. O senhor sentiu essa necessidade de escrever em meados da década de 1920; acaso começou a pintar na mesma época?
Muito pouco depois. Penso que foi em 1927 ou 28 que comecei. Mas não com a mesma seriedade, naturalmente. O desejo de escrever foi algo muito importante em minha vida... importantíssimo. Se comecei a escrever já bastante tarde (tinha trinta e três anos, quando comecei a fazê-lo definitivamente), não foi por jamais haver pensado a respeito. Eu colocara isso demasiado alto, não julgava que tivesse capacidade para tal, não acreditava em mim como escritor, como artista. Não ousava pensar que pudesse ser tal pessoa... Bem, não me dediquei à pintura desse modo. Descobri que havia outra faceta de minha personalidade que eu poderia usar. Dava-me prazer pintar; era uma recreação; era um resquício de outras coisas.
- E constitui ainda uma espécie de entretenimento para o senhor?
Oh, sim, apenas isso.
- Mas o senhor, acaso, não vê alguma espécie de conexão fundamental entre as artes?
Positivamente. Se se é criador de uma maneira, é-se criador de outra. No princípio, a música era a coisa mais importante para mim. Eu tocava piano, esperava ser um bom pianista, mas não tinha talento para isso. Vivia, porém, saturado de músíca. Poderia mesmo dizer que a música significa, para mim, mais que escrever e pintar. Está o tempo todo no fundo de minha mente.
- Nessa ocasião, o senhor se interessava muito pelo jazz.
É verdade. Mas não me interesso tanto assim, hoje em dia. O jazz, agora, parece-me bastante vazio. É por demais limitado. Assim como lamento o que aconteceu com o cinema, lamento o destino do jazz. Ele se torna cada vez mais automático, não se desenvolve o suficiente, não está se enriquecendo. É como tomar-se um coquetel. Tenho necessidade de vinho e cerveja, champanha e conhaque, também.
- O senhor, na década de trinta, escreveu vários ensaios sobre a arte do cinema. Teve, acaso, a oportunidade de praticar tal arte?
Não, mas ainda espero encontrar o homem que me dê uma oportunidade. O que mais deploro é que a arte cinematográfica jamais tenha sido adequadamente explorada. É um meio poético com toda as espécies de possibilidades. Pense apenas no elemento de sonho e fantasia. Mas quando o obtemos? De vez em quando, apenas um pequeno toque disso - e ficamos boquiabertos. E pense em todos os recursos técnicos de que dispomos! Mas, santo Deus, não começamos ainda sequer a empregá-los. Poderíamos ter maravilhas ,prodígios inacreditáveis, alegrias e belezas ilimitadas. E o que é que temos? Puras drogas. O filme é o mais livre de todos os meios: poder-se-iam fazer maravilhas com ele. Na verdade, eu acolheria de braços abertos o dia em que o cinema substituísse a literatura, em que não houvesse mais necessidade de se ler. No cinema, a gente lembra-se de rostos, de gestos, coisa que não acontece quando se lê um livro. Se o filme consegue empolgar-nos, nós nos entregamos completamente a ele. Mesmo quando se ouve música, não é a mesma coisa. A gente vai para o salão de concertos, e o ambiente é mau, as pessoas bocejam ou adormecem, o programa é longo demais, não tem as coisas que a gente aprecia, e assim por diante. O senhor sabe o que quero dizer. Mas, no cinema, sentado no escuro, as imagens aparecendo e desaparecendo, é como se uma chuva de meteoritos nos atingisse.
- Que é que existe a respeito da versão cinematográfica do Tropic of cancer?
Bem, há rumores disso. Foram-me feitas ofertas, mas eu não consigo ver de que modo se possa fazer um filme desse livro
- O senhor próprio gostaria de fazê-lo?
Não, não gostaria, pois me parece quase impossível fazer um filme desse livro. Por um lado, não vejo lá a história. Além disso, muita coisa depende da própria linguagem. Talvez se pudesse obter tal linguagem tropical em turco ou japonês. Não consigo perceber de que modo poderá ela ser vertida para o inglês, não lhe parece? O cinema é, positivamente, um meio dramático, plástico; de qualquer forma, uma coisa de imagens.
- O senhor foi um dos juízes do Festival de Cinema de Cannes, no ano passado, não foi?
Sim, embora eu fosse uma escolha bastante dúbia. Os franceses, provavelmente, o fizeram para demonstrar sua apreciação pela minha obra. Claro que sabiam que eu não era um cineasta, mas, quando um repórter me perguntou se eu ainda gostava de filmes, tive de responder-lhe que eu já quase não via nenhum deles. De quinze anos para cá, tenho visto muito poucos filmes. Mas, sem dúvida, sou ainda, no íntimo, um cineasta.
- Bem, agora o senhor escreveu uma peça. Que lhe parece esse meio de expressão?
Um meio que eu sempre quis abordar, mas que jamais tive a coragem de fazer. Em Nexus, quando estou vivendo aquela vida subterrânea e lutando por escrever, há uma descrição, muito vívida, de como tentei escrever uma peça sobre a vida que estávamos então levando. Eu jamais a terminei. Penso que consegui chegar apenas até ao primeiro ato. Tracei um plano dela, intricado, na parede, e podia falar maravilhosamente a respeito dele, mas não conseguia jamais executá-lo. A peça que acabo de escrever me saiu, como uma mágica, da cartola, por assim dizer. Eu estava num estranho estado de espírito: não tinha nada para fazer, lugar algum para ir, pouca coisa para comer, todo o mundo estava ausente, de modo que indaguei de mim mesmo por que não me sentava à máquina e a escrevia? Ao começar, não tinha idéia do que estava fazendo - não lutei com a coisa. Ela quase não requereu qualquer esforço.
- E de que trata ela?
De tudo e de nada. Não acho, na verdade, que importe muito aquilo de que trate. É uma espécie de farsa ou peça burlesca dotada de elementos surrealistas. E há música,
música eventual, vinda de uma vitrola automática, e que vem do ar. Não creio que teria muita importância. O mais que posso dizer a respeito dela é que não se adormecerá, se for vê-Ia.
- Julga que escreverá novas peças?
Sim, espero que sim. A próxima será urna tragédia, ou uma comédia que faça chorar.
- Que mais está escrevendo, agora?
Não estou escrevendo coisa alguma.
- Não irá escrever o volume segundo de Nexus?
Sim, certamente, isso é o que eu tento de fazer. Mas ainda não comecei. Fiz várias tentativas, mas desisti.
- Tem de fazê-lo, diz o senhor?
Bem, sim. Em certo sentido, devo terminar meu plano, o plano que tracei em 1927. Este é o fim do mesmo. Penso que parte de minhas delongas em terminá-lo é porque não desejo terminar esse meu trabalho. Isto significaria que eu teria de volver a página, mudar de rumo, descobrir um novo campo, por assim dizer. Isso porque não desejo mais escrever acerca de minhas experiências pessoais. Escrevi todos esses livros autobiográficos não porque me considere uma pessoa importante,mnas - e isso o fará rir - porque pensei, ao começar, que estava narrando a história do mais trágico sofrimento que um homem jamais suportara. Tive, certamente, meu pleno quinhão dele, mas já não penso que o mesmo era tão terrível. Foi por isso que intitulei a trilogia The rosy crucifixion. Descobri que aquele sofrimento era bom para mim, que me abria o caminho, mediante a aceitação do sofrimento, para uma vida feliz. Quando um homem é crucificado, quando morre para si próprio, o coração desabrocha como uma flor. Claro que a gente não morre, que ninguém morre, que a morte não existe, que é atingida apenas em um novo nível de visão, um novo reino de consciência, um novo mundo desconhecido. Assim como a gente não sabe de onde veio, tampouco sabe para onde vai. Mas que aí há algo, antes e depois, é coisa em que firmemente acredito.
- Como é que se sente ao tornar-se best-seller, depois de suportar, durante tantos anos, os apertos do artista criador?
Na realidade, nada sinto a respeito. Tudo isso me parece irreal. Não me sinto envolvido. Na verdade, isso quase me desagrada. Não me proporciona prazer algum. Tudo o que vejo é mais dilaceramento em minha vida, mais intromissões, mais tolices, As pessoas acham-se interessadas em algo que já não mais me interessa. Esse livro já não significa coisa alguma para mim. Por se acharem inteiramente interessada nisso, as pessoas julgam que eu também estou. Pensam que uma grande coisa para mim ter sido, finalmente, aceito. Bem, sinto que já havia sido aceito muito tempo antes, pelo menos por aqueles pelos quais me interessava ser aceito. Ser aceito pela multidão não significa coisa alguma para mim. Na verdade, é algo um tanto penoso. Porque estou sendo aceito por razões erradas. Trata-se de um caso sensacional, e isso não significa que estou sendo apreciado pelo meu verdadeiro valor.
- Mas isso faz parte do reconhecimento que o senhor sempre soube que lhe adviria.
Sim, certamente. Mas,como o senhor sabe, o único reconhecimento real provém daqueles que estão em no mesmo nível, que são nossos pares. Essa é a única espécie de reconhecimento que importa - e eu o tenho recebido.
- Qual de seus livros acha o senhor que lhe saiu melhor?
Eu sempre respondo: The colossus of Maroussi.
- Quase todos os críticos dizem que Cancer é o seu grande livro.
Bem, ao reler Cancer constatei que era um livro muito melhor do que eu julgara. Agradou-me. Surpreendeu-me, com efeito. Fazia já vários anos que não o lia. Considero-o um livro muito bom, que possui qualidades duradouras. Mas o Colossus foi escrito tendo como ponto de partida outro nível do meu ser. O que me agrada nele é o fato de ser um livro alegre, que expressa alegria, que proporciona alegria.
- Que aconteceu com Draco and the ecliptic, que o senhor anunciou há tantos anos?
Nada. Isso foi esquecido, embora seja sempre possível que eu possa, algum dia, escrever tal livro. Minha idéia era escrever um trabalho muito breve, explicando o que estive procurando fazer ao escrever todos esses livros a respeito de minha vida. Em outras palavras, esquecer o que e havia escrito e tentar de novo explicar o que eu esperava fazer. Dar dessa maneira, talvez, a significação da obra, do ponto-de-vista do autor. Como vê, o ponto-de-vista do auto é apenas um dentre muitos, e sua idéia quanto à significação de sua própria obra se perde em meio ao alarido de outra vozes. Acaso conhece ele seu próprio trabalho tão bem com imagina? Eu diria que não. Antes penso que ele é como um médium que, ao sair do transe, se sente atônito ante o que disse e fez.
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Nota:
(1) Referência ao monstro mítico de Through the looking-glass.
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