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Grandes entrevistas

 

Alfred Hitchcock

 

Entrevista conduzida por Pete Martin publicada originalmente no The Saturday Evening Post, de 27/07/1957 e republicada no livro: ALTMAN, Fábio. A arte da entrevista. São Paulo: Scritta, 1995, de onde foi extraída.

 

Sir Alfred Joseph Hitchcock (1899-1980), cineasta inglês que se transferiu para os Estados Unidos em 1939, ensinou o mundo a sentir medo. Sua carreira de cinquenta anos como diretor inclui clássicos do suspense como Os 39 degraus, Janela indiscreta, Um corpo que cai, Psicose e Os pássaros. Mestre em um gênero tido durante muito tempo como menor, marginal na cultura de Hollywood, Hitchcock foi recuperado para a fama pelos textos elogiosos publicados por François Truffaut nas páginas do Cahiers du Cinéma, no final dos anos 50.

 

Pete Martin é um dos grandes nomes do jornalismo de entretenimento dos Estados Unidos - suas séries de conversas com Bing Crosby e Bob Hope, ainda no final da década de 40, publicadas em quatro partes seriadas, ajudaram a alavancar a tiragem do The Saturday Evening Post .As conversas com Martin foram durante muito tempo a marca registrada do Post

 

* * *

 

   O escritório de Alfred Hitchcock ficava no primeiro andar do Studio Paramount. A medida em que eu ia entrando, tudo aquilo voltou. Eu estivera naquele escritório antes, para conversar com Frank Capra ou com Willie Wyler. Não consigo lembrar-me qual dos dois. Foi há muito tempo, e tanto Capra quanto Wyler já saíram da Paramount há anos. Pelo que sei, eles devem estar voltando. As coisas acontecem desse jeito em Hollywood.

   O pequeno homem gordo que ocupava esse escritório agora tinha um longo nariz cor-de-rosa e uma voz lenta que chiava enquanto ele falava. Ele não era Capra, nem Wyler. Tinha sua própria individualidade, muito peculiar. Inúmeras pessoas inteligentes acreditavam que, em seu campo de atividade, Alfred Hitchcock, como um gênio da direção, não teria rivais.

   Há uma semana eu vinha tentando vê-lo, mas ele estivera muito doente, e depois disseram que estava convalescendo. Finalmente prometeram-me que se eu estivesse na Paramount às três horas da tarde seguinte ele me receberia para uma conversa. Quando eu o vi, achei que estava com ótima aparência. Fiquei surpreso. Eu o encontrara uma vez antes quando fazia a cobertura da agitação de Hollywood, e ele parecia melhor agora do que naquela época.

   "Ouvi dizer que você se submeteu a mais de uma cirurgia", disse eu. "Uma logo depois da outra, deve ter sido um choque... "

   "Um médico de Nova York disse-me uma vez que sou um tipo adrenal", disse ele. "Aparentemente isso significa que sou todo corpo e minhas pernas são apenas rudimentares. Mas como não sou um corredor nem um dançarino, e meu interesse atual em meu corpo é quase todo só da cintura para cima, isso não me incomoda muito."

   "Quem desenhou essa caricatura sua que vejo sempre na tela de minha tele­visão?", perguntei. "Aquela composta de duas ou três linhas que gradualmente vão se transformando em você."

   "Eu mesmo desenhei", disse ele. "Comecei a desenhá-la há alguns anos, quando era diretor de arte no cinema. Com uma única exceção, ela tem sofrido poucas mudanças desde então. Naquela época eu tinha mais cabelo; todos os três eram ondulados.”

   "Os espectadores de televisão são engraçados", comentei. "Notei que uma das coisas a seu respeito que parece atrai-los é o fato de que quando olham para você na tela de uma televisão, você os encara com insolência. Mas o que parece fascinar seus telespectadores mais do que sua arrogância é sua falta de reverência pelo patrocinador."

   "Lembre-se do antigo ditado, uma pancada é tão boa quanto um empurrão, disse ele. "Meu palpite é que meu patrocinador gosta muito de minha falta de subserviência; no começo eles tinham dificuldades em acostumar-se com meu jeito e sentiram-se ofendidos com meus comentários tão pouco reverentes. Mas no momento em que perceberam os efeitos comerciais do meu menosprezo - deram uma olhada em seus gráficos de vendas - eles pararam de questionar a conveniência de minhas maluquices. Mas não há como rodear o assunto, eu me acostumei com isso. A tradição diz que o patrocinador deve ser bajulado. Num clima desses eu era uma novidade.

   "O tipo de humor que eu pretendia usar na televisão era do tipo que eu usara em meu filme, The trouble with Harry (O terceiro tiro). Nesse filme, Harry era um defunto que se constituía numa amolação para os que estavam vivos. A horrível pergunta, O que faremos com Harry? estava sempre no ar. Houve aque­les que acharam a idéia medonhamente divertida, por isso pensei comigo mesmo, se a falta de respeito por um morto pode ser divertida, a falta de respeito por um patrocinador vivo pode ser divertida também.

   "Ao selecionar as histórias para o meu show na televisão, tento fazê-lo do modo mais substancial possível, de acordo com o patrocinador e a rede. Espero compensar qualquer tendência ao macabro com humor. Como eu o vejo, é uma forma tipicamente inglesa de humor, um tipo de humor tipicamente londrino. São piadas como aquela do homem que estava sendo levado ao patíbulo para ser enforcado. Olhou para o alçapão, fragilmente construído, e perguntou nervoso, Digam-me, essa coisa é segura?

   "Do mesmo gênero de humor faz parte a história do comediante Charles Coborn...", disse Hitchcock. "Quero dizer, o Charles Coborn original, não aquele de Hollywood, cujo nome se pronuncia de um modo ligeiramente diferente. O primeiro Charles Coborn, que ficou famoso ao cantar The man that broke the bank at Mont Carlo, assistia ao funeral, durante a guerra, de outro comediante chamado Harry Tate, que fora atingido por alguns fragmentos de mísseis anti­aéreos. Havia uma grande quantidade de comediantes reunidos no túmulo. O velho Charles estava tão velho que já se aposentara, e enquanto o caixão era baixado à sepultura, um jovem curioso inclinou-se e cochichou ao seu ouvido, Quantos anos você tem, Charlie?

   "Oitenta e nove, respondeu Coborn.

   "Quase nem vale a pena voltar para casa, comentou o jovem.

   "Esse é um exemplo do tipo de humor do qual eu estou falando", disse Hitchcock."Mas caso você já conheça essa piada, vou lhe contar outra sobre duas faxineiras, num dia de folga, passeando numa feira. Assistiam a um show em que um homem, com uma estranha noção de entretenimento do público, mordia as cabeças de ratos e galinhas vivas. Na gíria, as pessoas que oferecem esse tipo de diversão são chamadas gooks. As duas faxineiras olharam para o gook, horrorizadas, mas uma delas não resistiu e tentou fazer uma gracinha: Você não gostaria de comer um pedacinho de pão junto?, gritou ela.

   Hitchcock olhou-me com uma expressão satisfeita, como se acabasse de pronunciar um dito espirituoso frágil e delicioso. Sinceramente, fiquei feliz de já ter almoçado. No entanto, a sua menção às galinhas provocou meu comentário seguinte.

   "Ouvi dizer que seu pai era um comerciante de galinhas", disse.

   "Era sim", disse Hitchcock. "E há uma teoria de que eu nunca gostei de ovos por causa da profissão de meu pai. É verdade que eu considero os ovos repulsi­vos, e para mim, o cheiro mais repulsivo do mundo é o de um ovo cozido, mas a profissão de meu pai não tem nada a ver com a minha reação. Odeio tanto a simples idéia de um ovo que, quando posso, coloco-os de forma negativa em meus filmes para cobri-los com a difamação que merecem. Por exemplo, em To catch a thief (Ladrão de casaca) mostro uma mulher apagando o cigarro numa gema de ovo."

   "Lembro-me disso", eu disse, "mas é a única das suas cenas de ovo de que me lembro."

   "Num filme de alguns anos atrás, The doubt of a shadow (A sombra de uma dúvida)", disse ele, "houve um momento em que eu queria que um homem ficasse chocado com algo que alguém dizia. Sua faca estava apontada diretamente a um ovo frito, e no momento do comentário a faca espetou a gema e imediata­mente ela espirrou por todo o prato. Para mim, foi muito mais eficaz do que sangue escorrendo."

   "As pessoas perguntam-me constantemente, Por que você está tão interessado em crimes?", continuou Hitchcock. "A verdade é que não estou. Interesso-me somente por eles na medida em que isso afeta minha profissão. Na realidade tenho pavor de policiais; tanto que em 1939, quando cheguei na América, recusei-me a dirigir automóveis com medo de que um policial me parasse e me multas­se. A idéia de que ao dirigir eu teria que encarar essa possibilidade todos os dias, amedrontava-me terrivelmente, porque não consigo suportar o suspense."

   Meu rosto deve ter registrado o espanto pois ele logo explicou: "Quer dizer, eu odeio ser cobrado. As pessoas disseram-me: Se você abrir uma porta de seu subconsciente, atrás da qual reprime alguma psicose adquirida na infância, perderá seu medo de policiais."

   "Retrocedi em minha memória e abri a seguinte porta: quando eu era mole­que, meu pai enviou-me a um delegado local com um recado. Ele leu o recado, deu risada e trancou-me numa cela por um ou dois minutos, enquanto dizia eis o que fazemos com meninos malcriados. Foi a idéia que meu pai teve para ensinar-me uma lição. Quando as pessoas ouvem isso, elas dizem: É claro! É por isso que você tem medo da polícia. Mas, infelizmente, o fato de ter trazido esse incidente à luz não aplacou meus temores. Os guardas ainda me provocam arrepios.”

   Contei-lhe que uma das minhas cenas favoritas de Hitchcock era a

sequência, no filme The lady vanishes (A dama oculta), em que dois ingleses discutem as notícias sobre os últimos resultados do cricket.

   "Você quer dizer, Basil Radford e Naunton Wayne", disse ele. "Quando descobri Wayne, ele trabalhava como compère num cabaré no Hotel Dorchester em Londres. Um compère é um homem que na verdade não está participando total­mente do show. Ele pode ser o lacaio anônimo que passa ao ilusionista o chapéu de seda cheio de coelhos. No caso de Wayne, a sua função como compère era de anunciar cada um dos atos e dizer algumas palavras nos intervalos. Radford era o líder da companhia original de Nigh Must Fall - ele também é conhecido pelo seu personagem do comandante da Guarda do Interior no filme Tight little island -, mas estou orgulhoso do fato de, tendo encontrado os dois, tê-los colocado juntos. Eles formaram uma combinação em que um completou o outro de um modo tão feliz quanto Tico e Teco ou peixe e batatinhas."

   "Para mim", comentei, "uma das cenas mais clássicas do cinema em todos os tempos foi a do casal sentado numa pequena estação de uma cidade européia com o inferno explodindo violentamente no mundo ao seu redor enquanto sua única preocupação era descobrir os resultados dos jogos de cricket na Inglaterra. Como um americano", continuei, "achei aquilo a quintessência da britanidade. Os britânicos também acham isso?"

   "Não", disse Hitchcock. "Eles sabiam que era simplesmente um exagero hu­morístico. Essas coisas eram chamadas de toque Hítchcock, mas são na verdade exemplos do humor inglês, que leva uma narração simples a um extremo absurdo.

   "Eu suponho que você possa chamá-la de enfoque indireto ao melodrama. O melodrama é a forma mais fortemente colorida de contar histórias. Seus vilões, heróis e heroínas são normalmente empavonados e representados de um modo pesado. Eu encaro a coisa de um modo um pouco diferente. Nunca adotei o tipo de suspense onde as portas rangem. Para mim, o assassinato junto a um córrego murmurante banhado pelo sol é mais interessante que aquele num beco escuro e silencioso entulhado de gatos mortos e lixo.

   "Meu herói é sempre o homem comum a quem acontecem coisas bizarras, e não o contrário. Prova disso é que sempre crio vilões sedutores e bem ­educados. É um erro pensar que quando você coloca um vilão na tela, ele deva rir asquerosamente, esfregar seu bigode negro ou chutar um cão no estô­mago. Alguns dos mais famosos assassinos da criminologia - homens para os quais o arsênico era tão repulsivamente brando que eles matavam as mulheres com instrumentos contundentes - tinham que ser sedutores para serem acei­tos pelas mulheres que matavam. A coisa realmente assustadora sobre os vilões é sua gentileza aparente."

   "Não faz muito tempo escrevi um artigo para o The New York Times Sunday Magazine descrevendo a atração exercida pelo conto policial verdadeiro em oposição à variedade ficcional. Mais uma vez enfatizei que parte da fascinação da história verdadeira reside no fato de que a maioria dos assassinos da vida real são gente bem comum, muito bem-educada e até envolvente. Ouvi queixas de que falta mistério a uma história verdadeira de assassinato. Não concordo que isso seja uma fraqueza. Para mim, o suspense é muito mais potente que o mistério, e acho aborrecido ter que ler uma história de ficção inteira para descobrir o que aconteceu no final.

   "Nunca usei a técnica da novela, pois ela está relacionada com a mistifi­cação, que difunde e desfocaliza o suspense. É possível criar-se uma tensão quase insuportável numa peça ou num filme em que a audiência sabe o tempo todo quem é o assassino, e desde o início tem vontade de gritar para todos os outros personagens da trama: Cuidado com fulano! Ele é um matador! É assim que você consegue uma tensão real e um desejo irresistível de saber o que acontece, ao invés de um grupo de personagens dispostos num enigma humano como num jogo de xadrez. Por isso gosto de fornecer à audiência todos os fatos o mais cedo possível."

   Mal consegui esperar que ele concluísse para lhe contar que concordava plenamente, que um de meus passatempos - de fato, meu passatempo princi­pal - era colecionar, ler e reler os relatos de crimes da vida real, com uma inclinação especial para aqueles que ocorreram num cenário britânico. "Algum dia", eu disse, "espero encontrar um editor interessado em persuadir-me a com­pilar uma antologia desses escritos. Eu teria pago alegremente minha própria viagem à Inglaterra para cobrir o julgamento do doutor Adams, o médico de Eastbourne que tinha uma estranha atração por senhoras inglesas idosas e generosas." Relutantemente parei de descrever meu passatempo e voltei à discussão da técnica hitchcockiana.

   Perguntei-lhe: "Como você trataria uma explosão em potencial de uma bomba em uma de suas histórias?"

   "A questão é deixar a audiência saber onde a bomba está, mas não deixar que os personagens saibam", disse ele. "Por exemplo, você e eu estamos sentados aqui batendo papo. Não precisamos conversar sobre morte ou qualquer outra coisa que tenha conseqüências sérias, mas se a audiência souber que há uma bomba debaixo de minha escrivaninha, pronta para ser detonada, o suspense mortificará a todos eles. Mas se não contarmos nada a eles sobre essa bomba escondida, e ela explode e nos reduz a pedacinhos, a única coisa que sentirão é um choque, um choque de um segundo, em contraposição a sessenta ou noventa minutos de uma expectativa de tirar o fôlego."

   "O que realmente me angustia no que você faz", disse eu, "é que às vezes você mostra um objeto como uma cesta ou uma caixa abrindo lentamente en­quanto eu, sentado na beirada da poltrona, espero aflito para ver que tipo de coisa inominável emergirá dela. Então, algo tão perigoso quanto um gatinho pre­to saí de lá. Você me preparava para algo catastrófico, mas o que acontecia era algo totalmente inofensivo.”

   "Com informações discretas é possível persuadir-se uma audiência a inter­pretar como terríveis as coisas mais inócuas", explicou ele. "Mas você deve ter cuidado para não desapontá-los completamente. Eles reagirão com um gratifican­te arrepio às coisas que acabam se revelando não tão horríveis quanto eles pensavam, mas só se você, no final, conseguir apresentar-lhes um suspense realmente visceral. Senão eles se sentirão lesados e sairão da apresentação achando que você é uma farsa."

   "Percebi que você deixa o público tirar suas próprias conclusões, em alguns de seus shows de meia hora na televisão", comentei. "Essa é uma técnica nova para mim. Pelo menos nunca vi fazerem isso antes."

   "É uma verdadeira proeza criar 39 shows por ano, cada um com uma revira­volta no final.", contou-me ele. "Por isso às vezes nós deixamos que vocês mesmos pensem em suas próprias reviravoltas depois que desligaram a televisão, basea­dos, é claro, no que acabaram de ver e ouvir."

   "Contaram-me que você faria algo diferente na televisão nesse outono", dis­se eu. "Mas não tenho certeza do que se trata."

   "Além do nosso show semanal de meia hora, realizarei dez shows de uma hora", disse ele. "Então terei mais tempo para desenvolver os personagens neles. Para esse fim, algumas histórias vão precisar de um tempo de narração maior que outras. Uma das primeiras histórias que contarei é a de Conell Woolrich, Three o'clock .É sobre um homem que fabrica uma bomba caseira, pois suspeita que sua esposa tem um amante; está decidido a detonar ambos, mesmo que isso implique explodir sua própria casa. Entretanto, imediatamente depois que ele aciona o relógio da bomba, dois ladrões entram em sua casa, amarram-no e colocam-no no porão enquanto fazem a pilhagem da casa. Depois vão embora. E ele fica ali, indefeso, olhando sua própria bomba e pensando que a situação não era para ser exatamente essa. De fato, ele sente ser extremamente duvidoso que ele ainda tenha algum futuro."

   Esperei; então perguntei, "E daí?"

   Hitchcock piscou seus olhos grandes e redondos e disse: "Se você acha que eu pretendo contar-lhe o que acontece, está enganado. Sugiro-lhe que sintonize o programa nesse outono e descubra sozinho.

   "Nunca pensei nos filmes que fiz como primariamente comerciais", ele dis­se, pensativamente. "No entanto, normalmente, tive que enfrentar uma certa in­sistência das agências dos estúdios para os quais trabalhei, para que encontrasse um final satisfatório. Nessa comunidade, criar o que é conhecido como um final infeliz é cometer o pecado imperdoável de Hollywood chamado de ser derrotista. E quando você encontra, nos círculos cinematográficos, a veemente negação de que a audiência média possui uma inteligência de adolescentes, e quando várias pessoas do cinema pressupõem que a televisão é só para os débeis mentais, a verdade é que nós, que fazemos filmes para a televisão, podemos concluir nossas histórias com uma nota derrotista quantas vezes quisermos. Assim, apesar da taga­relice de alguns escritores de televisão, temos mais liberdade na telinha do que nos filmes para o cinema.Talvez tudo o que isso prova é que as pessoas aceitarão um entretenimento mais maduro se não tiverem que pagar por ele. Pode ser que o fato de terem de pagar para ir ao cinema faça-as sentir que compraram também o direito de saírem satisfeitas.

   "Dizem que se eu tivesse feito Cinderela, a audiência começaria a procurar um corpo na abóbora que servia de carruagem", continuou Hitchcock. "É verda­de. Apesar de meu produto não ter sido totalmente melodramático - uma vez tentei fazer uma comédia com Carole Lombard -, não há porque negar que sou completamente estereotipado. Quando uma audiência vê uma de minhas produ­ções sem sentir calafrios na espinha, fica desapontada."

   "Você se lembra de Robert Vogeler?", perguntei. "Ele era uma homem de negócios, americano, que foi misteriosamente sequestrado numa viagem entre Budapeste e Viena, desapareceu como se uma fenda na terra o tivesse engolido, apesar .de finalmente reaparecer depois numa prisão da Cortina de Ferro e ser libertado. Quando li a seu respeito, pensei: como Alfred Hitchcock poderá conti­nuar a fazer seus filmes, agora que as coisas estão acontecendo na vida real, coisas que antigamente só aconteciam nesses seus filmes?"

   "Essa questão nos colocou um problema", disse ele. "Afinal, eu nem poderia sonhar com um episódio tão bizarro quanto aquele da fuga de Rudolf Hess para a Escócia durante a Segunda Guerra Mundial. O fato é que, se eu o tivesse colocado num filme antes que acontecesse, ninguém acreditaria. E não é só isso, as coisas chegaram a um ponto em que aqueles que vivem uma vida de aventuras selvagens e improváveis estão copiando os esquemas de meus filmes!'

   "Como quais?", perguntei.

  "Como os de meu filme Foreign correspondent (Correspondente estrangeira)", respondeu. "Nele, um homem foi assassinado com uma pistola escondida numa câmera. No meu filme há um fotógrafo que diz só um momento, a um diplomata que se encontrava nos degraus de um grande edifício; então apontou a câmera para ele e lhe deu um tiro. Levei um susto quando um ano depois a mesma coisa aconteceu na vida real, em Teerã."

   "Posso imaginar como isso deve tê-lo abalado", eu disse.

   "Primeiro pensei que sugerira um modus operandi aos assassinos da vida real", admitiu ele, "mas eventualmente acalmei-me com a idéia de que tudo aquilo fôra uma coincidência. Mas tenho que tomar cuidado para que a pressão da competição com a vida real não me faça ir longe demais com as situações bizarras de meus filmes, pois a chave para o suspense eficaz é a credibilidade. Quanto mais simples e doméstico o perigo, tanto mais real ele é."

   "Você editou um livro chamado Stories they won't let me do on tv, comen­tei. "Vi-o nas prateleiras das livrarias. Por que essas histórias foram rejeitadas?"

   "Muito macabras",disse ele. "Não tentarei descrever-lhe a trama da pequena história chamada Two bottles of relish, de Lord Dunsany, porque tenho certeza de que seu editor ficaria irritado e a acharia de muito mau gosto, mas há outra história nesse meu livro que ele não achará tão indigesta. Nela, um homem assassina sua esposa, e então a transforma em ração de galinhas. Depois ele serve duas de suas galinhas ao inspetor da polícia local quando este janta em sua casa."

   Peguei um pedaço de papel de minha pasta e li em voz alta esse comentário escrito a seu respeito por Ernest Havemann, para o Theater Ars:

   "Quase todo diretor pode aparecer com um bom épico histórico, ou pode traduzir uma peça de primeira linha da Broadway para levá-la às telas do cinema, mas é necessário algo mais para se pegar a simples idéia de um melodrama e usá-la de modo a manter a audiência meio tremendo de medo e meio caindo das poltronas de tanto rir".

   "E é algo mais", disse Hitchcock. "O segredo é o modo como a história é montada. Para mim, todos os pequenos detalhes e as situações devem ser cons­truídos e montados antes que a câmera entre em funcionamento. Às vezes chego a planejar quase seiscentas montagens antes de começar a rodar. Se eu tentasse improvisar a estrutura de uma cena no próprio local da filmagem, nunca obteria os efeitos ou reações que eu pretendia."

   "Deve haver muito pouco desperdício, quando você termina", disse eu.        

  "Praticamente não há metragem inútil", disse-me ele. "Dizem, de minhas histórias, que são costuradas de tal modo que tudo depende sempre de todo o resto, e que se eu fizesse qualquer mudança diante das câmeras eu poderia des­manchar tudo. Isso também é verdade. Pegue, por exemplo, uma peça de teatro pronta, como Dial M for murder (Disque M para matar). Como diretor da peça em sua forma filmada, quase não havia trabalho para eu fazer. Os vários detalhes e pedaços já haviam sido montados no palco. Muitas vezes fiquei pensando porque tantas peças de teatro de sucesso, falham na forma de filmes para o cinema. Acho que a razão é essa: alguém decide abrir a peça adicionando exteriores e transfor­mando-a em cinema, e como resultado a concisão e a tensão da peça se perdem."

   Uma das perguntas que eu queria lhe fazer era: "Em uma de suas histórias, um de seus problemas é dar uma explicação para toda aquela trama confidencial; os bandidos e os vilões continuam em perseguições? Em outras palavras, os mal­vados não têm que estar atrás de alguma coisa?"

   "É o que eu chamo de Mc Gulfin", disse-me ele. "É o truque; é aí que está a excitação. Numa história de espionagem, o Mc Guffin é aquilo que é perseguido pelos espiões. No The 39 steps (Os 39 degraus) os espiões estavam atrás da for­mula do motor de um avião, mas a parte mais estranha disso é que o Mc Guffin, nunca tem muita importância. Num filme meu chamado Notorious (Interlúdia), Ingrid Bergman ia para a América do Sul e misturava-se a uns espiões alemães. E surgia a questão, atrás do quê estavam os espiões? Em outras palavras, o que era o Mc Guffin?

   "Apesar de ter sido um ano antes de Hiroshima, eu disse: Vamos dizer que são amostras de urânio.Tive o palpite de que, em algum lugar, espiões de algum país deviam estar atrás de uma bomba atômica ou do método de fabricação dela. Assim eu fui, com Ben Hecht, o escritor da história de meu filme, procurar o doutor Millikan de Cal Tech, para perguntar-lhe o que para nós era uma questão natural e nada incomum: Qual é o tamanho de uma bomba atômica?

   "O doutor Millikan quase teve um colapso. Você quer ser preso?, perguntou abruptamente. Quer que eu também seja preso? Mas depois dessas perguntas angustiadas, ele se recompôs e passou uma hora explicando-nos como era impos­sível fabricar uma bomba atômica. Não sabíamos disso, mas o Projeto Manhattan já fora iniciado, e o doutor Millikman era um dos seus esteios. Ele deve ter se sentido de modo estranho quando nós chegamos com aquela pergunta, mas, como posso dizer, ele fez o melhor que pôde para manter seu conhecimento em segre­do ao dizer-nos o quanto nossa idéia era ridícula. Entretanto, quando saímos, eu disse a Hecht :Mesmo assim vou em frente com o Mc Guffin do urânio. Fizemos o filme e ele rendeu sete milhões. Hoje, renderia duas ou três vezes isso."

   Pedi-lhe que me explicasse a origem do termo Mc Guffin.

   "Usar Mc Guffin para designar os papéis, as jóias ou o que quer que os espiões estejam perseguindo, é uma adaptação minha, própria, da palavra", disse ele. "Provém de uma antiga piada inglesa de teatro de revista, sobre dois homens num trem. Um deles diz ao outro: O que contém esse pacote no bagageiro acima da sua cabeça? e o outro responde: Oh, é um Mc Guffin. O primeiro homem pergunta: O que é um Mc Guffin? e o segundo homem responde: Um Mc Guffin é um aparelho para pegar leões nos Adirondacks.

   Mas não há leões nos Adirondacks, diz o primeiro homem. Então isso também não é um Mc Guffin, diz o segundo."

   Disse a ele que ouvira falar de sua reputação como um excepcional autor de gracinhas.

   "Mas já superei isso há muito", respondeu. E temo que, se quiser tentar descrevê-las para você, elas lhe parecerão bem aborrecidas. Mas ainda me divirto um pouco nos elevadores. Às vezes, num elevador cheio, viro-me para alguém que está comigo e digo: É claro, eu não sabia que o revólver estava carregado, mas quando detonou, abriu um buraco enorme em sua garganta. Um pedaço de sua carne caiu ao chão, e pude ver os ligamentos brancos a descoberto. Senti algo úmido em meus pés. Estava de pé sobre um poça de sangue. Todo mundo no elevador fica rígido; então eu saio e deixo-os lá, de pé, atônitos. Uma vez, quando descrevi esse tiroteio imaginário, uma mulher implorou ao ascensorista: Deixe-me saltar aqui, por favor, e ela saiu no andar seguinte."

   Perguntei-lhe de onde vinham aqueles toques hitchcokianos, como o das pessoas que para fugir de seus perseguidores perdiam-se em procissões de fune­rais, escondiam-se em parques de diversôes, ou em ginásios onde eram feitos discursos políticos.

   "Eu simplesmente olho em volta e pergunto a mim mesmo qual o cenário que poderia usar em seguida", explicou. "Algum dia farei com que um persona­gem entre num hospital fingindo ser um paciente, deite-se numa maca daquelas com rodas com as quais eles te levam à sala de cirurgia, e antes de terminar, farei com que ele seja operado."

   Ouvi dizer que uma vez ele contou a um jovem ator, bastante nervoso, que tremia diante das câmeras: "Não entendo porque vocês se alvoroçam tanto. Não há nada que dependa de seu bom desempenho, com exceção, é claro, de toda a sua carreira".

   Eu quis perguntar-lhe o que acontecera a esse jovem ator. Sua carreira o levara a tornar-se um notável da Academia? Mas não tive oportunidade de fazer essa pergunta.

   Ele se levantou e disse: "Eu sei que você me desculpará, mas estou 15 minutos atrasado para assistir aos testes de várias atrizes que estou selecionan­do para meu próximo filme. Acontece que a moça que eu havia selecionado para o papel envolveu-se com uma ave que tem um nariz maior até que o meu - uma cegonha".

  Há coisas pelas quais até mesmo um grande diretor, que planeja cada movimento antes de filmar a cena, não pode fazer nada.

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