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Grandes entrevistas

ISAK DINESEN

Entrevista conduzida por Eugene Walter, publicada originalmente na Paris Review, nº de e republicada no livro: Os escritores 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, de onde foi extraída.

* * *

    Isak Dinesen nasceu em 1885, em Rungstedlund, Dinamarca, com o nome de Karen Dinesen. Freqüentou, na juventude, a sofisticada classe alta de Copenhague. Em 1913 ficou noiva de seu primo sueco, o barão Bror von B1ixen-Finecke. Decidiram então emigrar para a África e lá comprar uma fazenda. Casaram-se em 1914, em Mombasa, e mudaram para uma fazenda próxima a Nairobi. Foi um casamento infeliz; em poucos anos separaram-se e em 1921 divorciaram-se. Karen (agora) Blixen continuou a viver da plantação de café, que desenvolveu e administrou por dezessete anos. Quando o mercado do café entrou em colapso, em 1931, foi forçada a deixar a África e voltar para sua antiga casa, em Rungstedlund. Ali dedicou-se à literatura, escrevendo sob o pseudônimo de Isak Dinesen.
     Seven gothic tales (Sete novelas fantásticas) foi publicado na Inglaterra e nos Estados Unidos em 1934, e deu-lhe fama imediata. Out of Africa (Uma fazenda africana), sobre seus anos no Quênia, foi lançado em 1937. Alguns de seus trabalhos posteriores são Winter's tales, 1942; Last tales, 1957; Anedoctes of destíny, 1958; Shadows on the grass, 1960 e Ehrengard, 1963.
     Isak Dinesen continuou a morar na Dinamarca até o fim de sua vida. Tem-se atribuído a saúde extremamente precária da escritora a uma doença venérea, que ela teria adquirido do marido nos primeiros anos do casamento, e que não foi devidamente tratada. Com longos períodos de internação, quase sempre doente e fraca demais até mesmo para se manter sentada, ditou suas últimas histórias à secretária. Faleceu aos setenta e sete anos, no dia 7 de setembro de 1962.
     Foi, de certa forma, uma escolha perfeita, quando há poucos anos, planejou-se um filme com Greta Garbo no papel de Isak Dinesen, na versão cinematográfica de Out of Africa. Pois a escritora é, como a atriz, uma Misteriosa Criatura do Norte. Isak Dinesen é, na verdade, a baronesa Karen Christentze Blixen-Finecke, dinamarquesa, filha de Wilhelm Dinesen, autor de uma obra clássica do século XIX, Boganis' Jagtbreve (Cartas de um caçador - ou esportista). A baronesa Blixen publicou seus livros em vários países usando nomes diferentes: geralmente Isak Dinesen, mas também Tania Blixen e Karen Blixen. Os velhos amigos a chamam de Tanne, Tanya e Tania. Há, além disso, um romance delicioso, que ela preferiu não reconhecer como de sua autoria por um certo tempo, se bem que qualquer leitor, sem dificuldade, seja capaz de ver a .baronesa se escondendo atrás de um outro pseudônimo, Pierre Andrézelo Os círculos literários viviam cheios de lendas e rumores a seu respeito:
     Ela na verdade é um homem; ele na verdade é uma mulher; "Isak Dinesen" na verdade é a criação conjunta de um casal de irmãos; "Isak Dinesen" foi para os Estados Unidos por volta de 1870; ela na verdade é parisiense; ele mora em Elsinore; ela passa a maior parte do tempo em Londres; é freira; ele é muito hospitaleiro e recebe jovens escritores; ela é difícil de se encontrar, vive como reclusa e escreve em francês; não, em inglês; não, em dinamarquês; na verdade, ela. .. - os rumores nunca terminavam.
     Em 1934, a editora Haas e Smith (posteriormente incorporada à Random House) lançou Seven gothic tales, livro que Robert Haas tinha resolvido publicar no instante em que o lera. Tornou-se um best seller. Popular entre escritores e pintores, o livro foi, desde seu lançamento, tema de discussões que duraram um bom tempo.
     Fora dos cânones da literatura moderna, como um pássaro livre espiando uma gaiola, “Isak Dinesen" oferece aos leitores a satisfação infinita do conto contado: “E então, o que aconteceu? ... Bem, então ... " Seu instinto de contadora de histórias, ou de autora de baladas, associado a um estilo pessoal marcado pela clareza ornada com extremo bom gosto, levou Hemingway a fazer um protesto, no instante em que recebia seu Prêmio Nobel, dizendo que o prêmio deveria ter sido dado a Dinesen.


                                         CENA 1

    Roma, verão de 1956. O primeiro encontro acontece em um restaurante com mesas na calçada, em Piazza Navona - aquele lugar amplo, outrora coberto de água, onde se travavam batalhas navais simuladas. O crepúsculo tinge o céu de flores iridescentes. O obelisco, rodeado pelas figuras de Bernini, parece pálido e insignificante contra o céu. Em uma das mesas do café encontram-se a baronesa Blixen, sua secretária e acompanhante de viagem, Clara Svendsen, e o entrevistador. A baronesa parece um personagem de suas histórias. Esguia, refinada e elegante, ela está vestida de preto, com longas luvas pretas e um chapéu parisiense igualmente preto, que esconde seus olhos extraordinários, mais claros na parte superior do que embaixo. O rosto é fino e distinto; em torno de sua boca e dos olhos há sugestões de sorrisos que mudam constantemente. A voz é agradável, suave, mas com força e timbre suficientes para que se perceba de imediato que aqui está uma senhora com opiniões de grande profundidade e da mais encantadora frivolidade. Sua acompanhante, Clara Svendsen, é jovem, tem um rosto expressivo e sorriso encantador.

Entrevista? Oh, Deus ... Bem, tudo bem, acho que sim ... Mas não uma lista infinita de perguntas, ou um interrogatório, espero ... Fui entrevistada há pouco tempo... Terrível...

SVENDSEN: É, um homem veio fazer um documentário... Foi como uma aula de catecismo ...

Não podíamos ficar conversando, como agora, e você anotaria o que quisesse?

- Está bem. Assim a senhora poderia eliminar algumas coisas e acrescentar detalhes.

Isso. Eu não devo me esforçar muito. Estive doente por mais de um ano, numa casa de saúde. Pensei até que fosse morrer. Planejei a minha morte, quer dizer, tomei algumas providências. Esperava a morte.

SVENDSEN: o médico em Copenhague me falou: "Tania Blixen é muito inteligente, mas a coisa mais inteligente que ela fez na vida foi sobreviver a duas operações".

Até cheguei a planejar o último programa de rádio ... Havia dado uma série de palestras sobre diversos assuntos pelo rádio, na Dinamarca . . . . Eles pareciam gostar de me ouvir. .. Planejei um programa sobre como era fácil morrer ... Não uma mensagem mórbida, não era isso o que eu queria, mas uma mensagem de, bem, de alegria. .. dizendo que a morte era uma experiência intensa e bela. Mas eu estava muito doente, você sabe, para fazer isso. Agora, depois de ficar tanto tempo na casa de saúde, e tão doente, não sinto que eu pertença mais a esta vida. Estou flutuando como uma gaivota. Sinto que o mundo é feliz, esplêndido e segue seu curso, mas que não faço parte dele. Vim a Roma para tentar entrar no mundo novamente. Oh, veja o céu agora!

- A senhora conhece bem Roma? Há quanto tempo a senhora esteve aqui?

Há poucos anos, quando tive uma audiência com o papa. A primeira vez foi em 1912, quando era menina. Fiquei com minha prima e melhor amiga, que era casada com o embaixador dinamarquês em Roma. Passeávamos na Villa Borghese, todos os dias. Havia carruagens, que conduziam as beldades da época. Podíamos parar e conversar. Era maravilhoso. Agora olhe para esses carros, motocicletas, todo esse barulho e correria. Mas é isso que os jovens de hoje querem: a velocidade é a coisa mais fantástica que existe para eles. Quando me lembro do tempo em que eu andava a cavalo - sempre tive cavalo quando era menina - sinto que algo muito especial se perdeu para os jovens de hoje. As crianças de antigamente viviam de outro jeito. Tínhamos poucos brinquedos, mesmo nas famílias ricas. Brinquedos mecânicos modernos, que se movem sozinhos, mal começavam a aparecer. Nossos brinquedos eram mais simples e tínhamos que fazer toda a parte de animação. Acho que a minha paixão pelas marionetes vem daí. Tentei escrever peças para marionetes. Podia-se, naturalmente, comprar um cavalinho de pau, mas gostávamos muito mais de escolher pessoalmente um galho nodoso na floresta, que a imaginação logo transformava em Bucéfalo ou Pégaso. Ao contrário das crianças de hoje, que se contentam, desde que nascem, em serem observadores. .. éramos criadores. Os jovens de hoje não estão familiarizados com os elementos e nem em contato com eles. Tudo é mecânico e urbano: as crianças são criadas sem conhecer o fogo em brasa, a água corrente, a terra. Os jovens querem romper com o passado, eles odeiam o passado, não querem nem ouvir falar do passado, e, em parte, pode-se entender esta atitude. O passado imediato, para eles, não é nada além de uma história interminável de guerras, que não tem o menor interesse. Talvez seja o fim de alguma coisa, de um tipo de civilização.

- Mas o ódio leva ao amor: eles podem ser levados, como num círculo, de volta à tradição. Eu temeria mais a indiferença.

Talvez. E eu mesma, sabe, gostaria de amar o que eles amam. Hoje eu adoro jazz. Acho que é a única novidade que surgiu na música, desde que nasci. Ainda prefiro a música antiga, mas gosto muito de jazz.

Uma boa parte da sua obra parece pertencer ao século passado. Por exemplo, The angelíc avengers.

(rindo): Ah, esse é o meu filho ilegítimo! Durante a ocupação alemã da Dinamarca, eu pensei que iria enlouquecer de tanto tédio e desânimo. Queria tanto ter algum tipo de distração, me divertir, e, para completar, estava sem dinheiro. Então fui ao meu editor em Copenhague e disse: "Olha, você pode me dar um adiantamento por um romance e enviar uma estenógrafa para que eu possa ditá-lo?". Eles concordaram, ela apareceu, e comecei a ditar. Eu não tinha a menor idéia sobre o que seria a história, quando comecei. Acrescentava um pouco a cada dia, improvisando. Era tudo confuso demais para a pobre estenógrafa.

SVENDISEN - É ela estava acostumada a cartas comerciais, e quando datilografava a história, com base nas anotações que havia feito, às vezes, colocava números, como "as 2 garotas apavoradas" ou "1º amor".

Um dia eu comecei dizendo: "E aí o Sr. Fulano de Tal entrou no quarto", e a estenógrafa protestou: "Oh, Deus, mas ele não pode fazer isso! Ele morreu ontem, no capítulo dezessete". Não, prefiro manter The angelic avengers como sendo um segredo meu.

- Adorei esse livro, e lembro que recebeu críticas favoráveis. Muitas pessoas adivinharam que a senhora era a autora?

Algumas.

- E quanto a Winter's tales? Foi lançado no meio da guerra ... como a senhora conseguiu levar o livro para os Estados Unidos?

Fui para Estocolmo - o que em si já não foi fácil de se fazer - e o mais difícil foi levar o manuscrito comigo. Fui à embaixada norte-americana e perguntei se eles tinham aviões saindo para os Estados Unidos todos os dias, e se poderiam levar o manuscrito, mas disseram que só levavam documentos políticos ou diplomáticos. Então fui à embaixada britânica para me informar, e eles perguntaram se eu tinha referências na Inglaterra, e eu tinha (vários amigos meus faziam parte do ministério, entre eles Anthony Eden). Eles passaram um telegrama para verificar a informação e disseram que sim, que enviariam,e foi assim que o manuscrito se pôs a caminho dos Estados Unidos.

- Eu me sinto envergonhado pela embaixada norte-americana. É lógico que eles poderiam ter levado.

Ah, não seja tão duro com eles. Devo muito ao público norte-americano. De qualquer forma, além do manuscrito enviei uma carta a meus editores nos Estados Unidos, para dizer que tudo estava nas mãos deles, e que não poderia me comunicar com eles de forma alguma. Não soube nada sobre Winter's tales, sobre como foi recebido, até o final da guerra, quando, de repente, chegaram dezenas de cartas encantadoras de soldados e marinheiros norte-americanos de todas as partes do mundo. O livro havia sido incluído nas Armed Forces Editions - livros pequenos, que cabiam no bolso de um soldado. Fiquei muito emocionada. Recebi dois exemplares; dei um para o rei da Dinamarca e ele ficou feliz em ver que, apesar de tudo, uma voz havia se erguido do silêncio de seu país, naquele tempo de escuridão.

- A senhora estava falando sobre seu público norte-americano?

É, jamais vou me esquecer de como eles me receberam bem. Quando voltei da África em 1931, depois de ter morado lá desde 1914, eu havia perdido todo o dinheiro que tinha quando me casei, porque a plantação de café não deu retomo. Pedi a meu irmão que me sustentasse por dois anos, enquanto eu preparava Seven gothic tales, e disse a ele que em dois anos estaria vivendo por minha conta, Quando o manuscrito ficou pronto fui para a Inglaterra, e um dia, num almoço, encontrei um editor, Huntington, e disse: "Sr. Huntington, tenho um manuscrito; gostaria muito que o senhor desse uma olhada", E ele: "Do que se trata?", E quando respondi: "Um livro de contos", ele jogou as mãos para o alto e exclamou: "Não!". E eu implorei: "O senhor não vai nem ao menos dar uma olhada?". E ele: "Um livro de contos de uma autora desconhecida? De jeito nenhum!", Então enviei o manuscrito para os Estados Unidos, e ele foi aceito imediatamente por Robert Haas, que o publicou, e os leitores, de um modo geral, acolheram bem o livro, gostaram, e sempre foram muito fiéis. Não, muito obrigada, chega de café. Vou fumar um cigarro.

- O editor, em qualquer lugar do mundo, é sempre um cabeça dura. É a queixa tradicional dos escritores.

O engraçado é que depois que o livro foi publicado nos Estados Unidos, Huntington escreveu para Robert Haas, elogiando o livro e pedindo o endereço do autor, dizendo que queria publicá-lo na Inglaterra. Ele tinha me conhecido como baronesa Blixen, enquanto Robert Haas e eu jamais havíamos nos encontrado. Huntington nunca fez qualquer ligação entre Isak Dinesen e eu. Tempos depois ele realmente publicou o livro na Inglaterra.

- Essa é mesmo muito boa. Parece um dos contos do livro.

Que gostoso é ficarmos sentados aqui, ao ar livre. Mas acho que está na hora de ir andando. Que tal continuarmos nossa conversa no domingo? Gostaria de ver as peças etruscas em Villa Giulia. Podemos conversar mais um pouco lá. Veja que lua!

- Perfeito. Vou chamar um táxi.

                                    CENA II

Domingo, meio-dia quente e chuvoso. A coleção etrusca da Villa Giulia não tem visitantes demais por causa do tempo. A baronesa Blixen agora veste um conjunto de lã marrom-avermelhado e chapéu ocre de palha, cônico, que novamente esconde seus olhos extraordinários. Enquanto a baronesa caminha entre as figuras, cerâmicas e jóias etruscas, recentemente incluídas na exposição, parece tão distante dos freqüentadores comuns da galeria quanto as próprias peças. Caminha devagar, ereta, parando para apreciar demoradamente os detalhes que a agradam.

Como será que eles conseguiam esse tom de azul? Lápis-lázuli em pó? Veja o porco! No Norte damos grande importância ao porco em nossa mitologia. Ele é uma espécie de protegido do sol. Imagino que seja porque no tempo do frio e da escuridão sua gordura macia ajude a conservar o corpo aquecido. Um animal muito inteligente... Amo todos os animais. Tenho um cachorro enorme na Dinamarca, um alsaciano; ele é imenso. Eu o levo para passear. Se ele morrer antes de mim, acho que vou preferir um cachorro pequeno - um buldogue-anão. Se bem que não sei se ainda é possível encontrar buldogues-anões hoje em dia. Houve uma época em que era moda ter um. Veja só os leões nesse sarcófago. Como puderam os etruscos ter conhecido o leão? Na África era o animal que eu mais gostava.

- A senhora deve ter conhecido a África em sua fase áurea. O que fez com que se decidisse a ir para lá?

Quando eu era menina, ir para a África era algo muito distante dos meus pensamentos, e nem sonhava, na época, que uma fazenda africana seria um lugar em que eu poderia ser plenamente feliz. Isso prova que Deus tem uma imaginação muito maior e muito melhor que a nossa. Mas, quando fiquei noiva de meu primo, Bror Blixen, um tio foi para a África, fazer uma grande caçada, e voltou deslumbrado com a região. Theodore Roosevelt estivera caçando por lá nesta época, também. A África Oriental era moda. Então Bror e eu decidimos tentar a sorte lá, e nossas famílias financiaram a compra da fazenda, que ficava na região montanhosa do Quênia, não muito distante de Nairobi. Logo no primeiro dia em que cheguei, fiquei apaixonada pela região, e me senti em casa, mesmo entre flores, árvores e animais desconhecidos, e nuvens inconstantes sobre as montanhas Ngong, diferentes de todas as nuvens que já tinha visto. A África Oriental era, então, um verdadeiro paraíso, aquilo que os índios norte-americanos chamavam de "terras felizes de caça". Eu gostava muito de caçar quando era jovem, mas o maior interesse durante minha longa estada na África, eram os nativos africanos de todas as tribos, em especial os somalis e os masaís. Eram povos bonitos, nobres, destemidos e sábios. Administrar uma plantação de café não era nada fácil. Dez mil acres de terras, com gafanhotos, secas ... Percebemos muito tarde que o planalto onde ficava a nossa fazenda na verdade era alto demais para ter bons resultados com o café. Acho que a vida lá era um pouco como na Inglaterra do século XVIII; podia-se ficar sem dinheiro muitas vezes, mas, ainda assim, tinha-se uma vida rica, de várias maneiras, uma paisagem linda, dezenas de cavalos e cães, e um monte de empregados.

- Imagino que foi lá que a senhora começou a escrever seriamente?

Não, na verdade comecei a escrever antes de ir para a África, mas antes não me passava pela cabeça ser escritora. Publiquei alguns contos em revistas literárias na Dinamarca, quando tinha vinte anos, e as resenhas foram encorajadoras, mas não fui adiante - não sei, acho que tinha um medo intuitivo de cair numa armadilha. Além disso, quando eu era moça, estudei um pouco de pintura na Academia Real Dinamarquesa; depois fui para Paris, em 1910, para estudar com Simon e Menard, mas ... (rindo) mas fiz poucos trabalhos. O impacto de Paris foi muito grande; senti que era mais importante sair e ver quadros, ver Paris, na verdade. Pintei um pouco na África, em geral, retratos de nativos, mas toda vez que ia começar a trabalhar, aparecia alguém dizendo que tinha morrido um boi ou alguma outra coisa, e eu tinha que ir para o campo. Depois, quando percebi que seria obrigada a vender a fazenda e voltar para a Dinamarca, comecei realmente a escrever. Para me distrair, comecei a escrever contos. Escrevi dois dos Gothic tales lá. Mas, antes disso, havia aprendido a contar histórias. Pois, você sabe, eu tinha a platéia ideal. Os brancos não sabem mais ouvir uma história contada. Ficam inquietos ou sonolentos. Mas os nativos ainda têm sensibilidade para isso. Eu vivia contando histórias para eles, todos os tipos de histórias. E todos os tipos de bobagens. Eu dizia: "Era uma vez um homem que tinha um elefante de duas cabeças" ... e na mesma hora eles já ficavam loucos para ouvir o resto da história. "Oh, verdade? Mas Mem-Sahib, (1)* como ele o encontrou, e como fazia para alimentá-lo?" ou outra pergunta qualquer. Eles adoravam fábulas desse tipo. Ficavam encantados ao me ouvir falar usando rimas; eles não têm rimas, você sabe, não a tinham descoberto. Eu falava coisas como "Wakamba na kula mamba" ("A tribo Wakamba come cobra"), que, em prosa, os deixaria loucos de raiva, mas que, assim, rimado, os divertia muitíssimo. Depois que fiz isso pela primeira vez, eles sempre pediam: "Por favor, Mem-Sahib, fale como a chuva", e foi aí que soube que haviam gostado, pois a chuva lá era muito preciosa para todos nós. Ah, Clara está chegando. Ela é católica, e hoje foi à missa, para ouvir a um cardeal. Vamos comprar postais agora. Tomara que tenha algum com os leões.

SVENDSEN: Bom-dia.

Clara, você tem que ver que leões lindos; depois vamos comprar alguns postais e almoçar.

Compram-se os postais, chama-se um táxi, guarda-chuvas abertos, o grupo corre para o táxi, que parte dos chuvosos jardins da Villa Borghese.

                                         CENA III

O Casino Valadier é um restaurante elegante da Villa Borghese, logo acima da Piazza del Popolo, e oferece uma vista excelente de Roma. Depois de dar uma olhada rápida na cidade cinzenta de chuva, em um terraço completamente inundado, o grupo se encaminha para o salão forrado de detalhes em relevo, iluminado suavemente por candelabros, com carpetes de cores vivas e muitos quadros.

Vou sentar aqui, assim posso ver tudo. (Acende o cigarro.)

- Lugar agradável, não?

É, muito agradável e estou reconhecendo esse lugar. Estive aqui em 1912. Em Roma, de vez em quando, reconheço lugares que já visitei; de uma forma muito vívida. (Pausa) Oh! Vou ficar louca!

- (Assustado): O que foi?

Olha como aquele quadro está torto! (Aponta um quadro escuro do outro lado do salão)

- Eu vou endireitá-lo. (Vai até o quadro)

Não, mais para a direita.

- Assim?

Assim está melhor. (Dois cavalheiros de aspecto solene, à mesa logo abaixo do quadro, demonstram certa perplexidade)

- Em casa é assim o tempo todo. O trânsito é tão intenso na rua que vivo arrumando os quadros.

Moro no mar do Norte, a meio caminho entre Copenhague e Elsinore.

- Talvez a meio caminho entre Xiraz e Atlântida?

... A meio caminho entre aquela ilha de A tempestade e onde quer que eu esteja. (O garçom anota os pedidos; o almoço é servido.) Vou fumar um cigarro agora. Você se importa de ficar aqui mais um pouco? Detesto ter que sair de um lugar, depois de estar instalada num ambiente que me agrada. As pessoas vivem me dizendo para andar depressa, ou para fazer isso ou aquilo. Uma vez, quando eu estava navegando no cabo da Boa Esperança e surgiram albatrozes no céu, as pessoas ficavam dizendo: "Por que você vai ficar no convés? Venha para dentro". Diziam: "É hora do almoço", e eu disse: "Dane-se o almoço. Posso almoçar todos os dias, mas é bem provável que eu nunca mais veja albatrozes". Um vôo tão lindo!

- Fale sobre seu pai.

Ele serviu no exército francês, como meu avô. Depois da guerra franco-prussiana, foi para os Estados Unidos e morou com os índios das planícies, na imensa região central de seu país. Construiu sua própria cabana e deu-lhe o nome de um lugar na Dinamarca onde, quando jovem, havia sido muito feliz - Frydenlund (Bosque feliz). Caçava os animais por causa das peles, e tornou-se um comerciante de peles. Vendia principalmente para os índios, e, com o que ganhava, comprava-lhes presentes. Uma pequena comunidade cresceu ao redor de sua cabana, e creio que hoje Frydenlund é o nome de uma localidade no estado de Wisconsin. Quando ele voltou para a Dinamarca, escreveu seus livros. Então, como você pode ver, era natural que eu, sendo sua filha, fosse para a África, convivesse com os nativos, voltasse para casa e escrevesse a respeito. Por sinal, ele também escreveu um livro falando de suas experiências durante a guerra intitulado Paris sob a comuna.

- E como é que a senhora escreve em inglês?

Foi um processo natural. Freqüentei escolas na Inglaterra por um bom tempo, depois de ter estudado com governantas, em casa. Por causa disso desconheço fatos comuns que são de conhecimento geral. Mas as governantas eram ambiciosas: ensinavam bem os idiomas, e uma delas me fez traduzir The lady of the lake para o dinamarquês. Depois, na África, só convivia com ingleses. Falei inglês ou swahili durante vinte anos. E lia os romancistas e poetas ingleses. Prefiro os mais antigos, mas lembro a primeira vez em que li Chrome yellow de Huxley; foi como morder uma fruta desconhecida e refrescante.

- Quase todas as suas histórias se situam no século passado. A senhora nunca escreve sobre os tempos modernos.

Escrevo, se você considerar que a época de nossos avós, uma época tão fora do nosso alcance, também faz parte de nós. Assimilamos tanta coisa sem perceber. E, além disso, escrevo sobre personagens que, juntos, são a história. Começo dando o sabor da história, entende? Depois encontro os personagens, e eles assumem o comando. Eles tomam conta de tudo, eu simplesmente permito que tenham liberdade. Agora, na vida moderna, e na ficção moderna, existe uma certa atmosfera, e principalmente, um movimento interior - dentro dos personagens - que é algo completamente diferente. Sinto que na vida e na arte as pessoas se afastaram um pouco, neste século. A solidão agora é o tema universal. Mas escrevo sobre personagens dentro de um traçado, como eles atuam uns sobre os outros. A relação com as outras pessoas é importante para mim, entende, a amizade é algo muito especial, e tenho sido abençoada com amizades verdadeiramente heróicas. Mas o tempo em minhas histórias, é flexível. Posso começar no século XVIII e ir até a Primeira Guerra Mundial. Essas épocas estão bem separadas, são claramente distintas. Além disso, são tantos os romances que pensamos que têm temas contemporâneos à data de sua publicação - pense em Dickens, Faulkner, Tostoi ou Turgueniev - e que, na verdade, situam-se em um período anterior, uma ou duas gerações antes. O presente é sempre conturbado, ninguém tem tempo para contemplá-loa com tranqüilidade... Fui pintora antes de ser escritora... , e o pintor nunca quer que o tema fique debaixo do nariz; ele quer recuar e estudar a paisagem com os olhos semicerrados.

- A senhora já escreveu poemas?

Escrevi, quando era menina.

- Qual a sua fruta favorita?

Morango.

- A senhora gosta de macacos?

Gosto, adoro macacos na arte: em pinturas, histórias, porcelanas, mas não ao vivo; de alguma forma eles parecem tão tristes. Eles me deixam nervosa. Gosto de leões e gazelas... Você acha que pareço um macaco?

(A baronesa refere-se a uma conversa anterior, em que alguém havia sugerido, caso o conto The monkey viesse a ser filmado, que ela fizesse o papel do personagem que se transforma em um macaco.)

- Sem dúvida. Mas a senhora deve saber que existem. muitos tipos de macacos.

(O entrevistador havia copiado um trecho de The monkey kingdom de Ivan Sanderson, e, para a imensa satisfação da baronesa, começa a lê-lo.)

-"A definição da palavra 'macaco' não foi, no entanto, resolvida de forma satisfatória. Além do mais, essa questão aparentemente simples requer uma análise cuidadosa, antes que possamos dar prosseguimento a nossa história, pois, embora não estejamos única nem principalmente interessados em meros macacos, não podemos, sem essa resposta, nos lançar ao universo maior das formas de vida ao qual eles pertencem."

(Ri, encantada): Mas nenhuma história pode prosseguir sem a análise de questões aparentemente simples. E nenhuma cauda, também. (2)

                                                    CENA IV

Agora estamos no parapeito da torre central do Castelo de Sermonetta, no alto de um monte, rodeado por uma cidade, a cerca de uma hora e meia ao sul de Roma. Para chegar ali, havíamos atravessado a ponte levadiça sobre o fosso que cerca o castelo e subido uma escada de mão que não oferecia a mínima segurança. Vimos fragmentos de afrescos do século XIV e, na prisão da torre, frases e desenhos rabiscados na parede, que pareciam ter sido escritos hoje, mas que, na verdade, datavam da época em que soldados do exército de Napoleão haviam sido encarcerados ali. O grupo chega ao alto da torre, protegendo os olhos contra a luz do sol. Lá embaixo, a planície Pontine se estende verdejante e dourada até o mar, banhada pela luz resplandecente do sol da tarde. Lá de cima, podemos avistar figuras minúsculas trabalhando nos campos de grãos e pomares de pêssegos.

- Acho estranho que praticamente nenhum crítico, seja nos Estados Unidos, seja na Inglaterra, tenha apontado o elemento cômico tão evidente em suas obras. Acho que poderíamos falar um pouco sobre o humor de suas histórias.

Ah, fico contente por você ter mencionado isso! As pessoas vivem me perguntando qual o significado disso ou daquilo em minhas histórias - "O que isso simboliza? O que quer dizer aquilo?" E sempre é muito difícil fazer com que elas acreditem que quero dizer exatamente o que está escrito. Seria horrível se a explicação de um trabalho estivesse fora do próprio trabalho. E quase sempre tenho realmente uma intenção cômica, adoro uma história engraçada, adoro o humor. O nome "Isak" significa "riso". Freqüentemente penso que o que nós mais precisamos hoje em dia é de um grande humorista.

- Quais são os humoristas de língua inglesa que a senhora mais gosta?

Vejamos ... Mark Twain, por exemplo. Mas todos os escritores que eu admiro geralmente têm uma veia cômica. Pelo menos os escritores de contos sempre a possuem.

- E quais são os escritores de contos que mais a atraem, com os quais a senhora sente uma certa afinidade?

E. T. A. Hoffman, Hans Andersen, Barbey D'Aurevilly, La Motte Fouqué, Chamisso, Turgueniev, Hemingway, Maupassant, Stendahl, Tchecov, Conrad, Voltaire ...

SVENDSEN: Não se esqueça de Melville! Ela me chama de Babu, como o personagem de Benito Cereno - quando não me chama de Sancho Pança.

- Nossa, a senhora leu todos eles!

É que, na verdade, tenho três mil anos, e já jantei com Sócrates.

- Como?

(Rindo e acendendo um cigarro): Nunca me disseram o que eu devia ou o que não devia ler. Eu lia tudo que caía em minhas mãos. Descobri Shakespeare muito cedo, e hoje sinto que a vida seria um imenso vazio sem ele. Uma das minhas novas histórias, por sinal, é sobre um grupo de atores encenando A tempestade. Gosto muito de alguns escritores vitorianos que ninguém mais lê: Walter Scott, por exemplo. Ah, e gosto muito de Melville, da Odisséia, das sagas nórdicas - Você já leu as sagas nórdicas? Adoro Racine, também.

- Eu me lembro da observação que a senhora fez sobre a mitologia nórdica em uma das histórias de Winter's tales. (3) Por sinal, acho muito interessante o fato de a senhora ter privilegiado o conto.

Foi uma coisa natural. Meus amigos literatos na Dinamarca disseram que o coração da minha obra se encontra não na idéia, mas no fio da história, é algo que se pode contar, como se pode contar Ali Babá e os quarenta ladrões, mas não se pode contar Anna Karenina, por exemplo.

- Mas algumas pessoas acham que seus contos são "artificiais" ...

(Sorrindo): Artificiais? Lógico, eles são artificiais. Foram feitos com este propósito, pois é esta a essência da arte de contar histórias. E sinto que reconheci isso. .. ou melhor, que sugeri isso. .. ao chamar os meus primeiros contos de "góticos" .. ,. Quando usei a palavra gótico, não me referia ao gótico propriamente dito, mas à imitação do gótico, ao romantismo de Byron, à época de Horace Walpole, que criou Strawberry Hill, à época do renascimento do espírito gótico ... Você conhece Castle of Otranto de Walpole, não conhece?

- Conheço, claro. Num conto o enredo é o mais importante, não é?

Sim, é. Começo com um formigamento, uma espécie de pressentimento da história que vou escrever. Então surgem os personagens, e eles assumem o comando, fazem a história. Mas tudo isso acaba sendo um enredo. Para outros escritores, parece uma coisa artificial. Mas uma história de verdade tem forma e contorno. Numa pintura a moldura é muito importante. Onde o quadro termina? Que detalhes devem ser incluídos? Ou omitidos! Onde vai a linha que delimita o quadro? As pessoas vivem me perguntando se em The deluge at Nordeney as personagens morrem afogadas ou conseguem se salvar no final. (Você se lembra, elas ficam presas num sótão durante uma enchente e passam a noite contando suas histórias enquanto aguardam o resgate.) Bem, o que posso responder? O que dizer a eles? Isso está fora da história. Eu não sei mesmo!

- A senhora reescreve seus contos muitas vezes?

Ah, reescrevo, muitas vezes. É infernal. Muitas, muitas vezes. Aí, quando penso que terminei, e Clara faz as cópias para enviar aos editores, dou uma olhada, tenho um acesso, e reescrevo mais uma vez.

SVENDSEN: Em uma das histórias havia uma personagem secundária, Mariana the rat, dona de uma taverna chamada "The lousing-comb". Os editores mencionavam a personagem na sobrecapa do livro, mas quando estavam com as provas finais prontas, ela já não fazia mais parte da história. Isso deve ter causado uma certa perplexidade.

- Muitas pessoas ficam bastante confusas com o conto The Monkey.

É, fico cansada com tantas perguntas que são feitas sobre este conto em particular. Mas é uma história fantástica; deve ser vista como tal. A idéia é deixar que o macaco resolva toda a confusão, quando o enredo ficar complicado demais para personagens humanas. Mas as pessoas dizem: "O que isso significa?". É isso o que isso significa ... (Faz uma pausa, com um leve sorriso.) Seria horrível se eu pudesse explicar o conto melhor do que já expliquei no próprio conto. Como nunca me canso de dizer, a história deveria ser tudo.

- Acho que todo mundo tem interesse em saber como seus contos ganham forma. Especialmente aqueles com histórias dentro da história. Por exemplo, The deluge at Norderney... Parece algo tão inevitável e ordenado, mas se analisarmos a história, como ela é feita, é uma coisa surpreendente. .. Como a senhora ... ?

(Interrompe, sorrindo com uma certa malicia) Leia, leia a história, e você vai saber como ela é escrita !

Como epílogo, vamos transcrever um trecho de Albondocani, uma serte de contos interligados, inacabados devido à' morte da autora, em 1962. Esse trecho é de The blank page, publicado em Last tales (1957). Uma mulher idosa, que ganha a vida contando hist6rias, diz:

“Com a minha avó, passei por um duro aprendizado. "Seja fiel à história" a velha bruxa costumava me dizer - "seja eterna e constantemente fiel à história." "E por que tenho de ser assim, vovó?" - perguntei a ela. "Por acaso estou aqui para lhe dar motivos, atrevida?" - gritou. "E ainda pretende ser uma contadora de histórias! Bem, se você quer mesmo ser uma contadora de histórias, eu vou lhe dizer a razão! Preste atenção: quando o contador de histórias é fiel, eterna e constantemente fiel à história, então, no final, o silêncio se manifesta. Quando a história é traída, o silêncio que surge não é nada além de um vazio. Mas nós, os fiéis, quando tivermos falado nossa última palavra, ouviremos a voz do silêncio. Quer uma pirralhinha irritante entenda isso ou não!"
"Quem, então - ela continua - é capaz de contar uma história mais bonita do que qualquer um de nós? O silêncio. E onde se lê uma história mais profunda do que na página mais bem impressa do mais belo dos livros? Na página em branco. Quando a pena delicada e elegante, no momento da mais elevada inspiração, escreve a história com a mais rara das tintas - onde, então, leremos uma história ainda mais profunda, mais alegre, mais doce e mais cruel do que essa? Na página em branco."

(Tradução de Luiza Helena Martins Correia)

Notas:
(1) Forma respeitosa que os nativos usam para se dirigir a uma mulher européia. Utilizado pelos indianos, foi levado para a África pelos colonizadores britânicos. (N. T.)
(2) No original há um jogo entre as palavras tale (conto, história) e tai! (cauda, rabo). (N. T.)

(3) "E fico pensando, enquanto leio", diz o jovem nobre em "Sorrow-acre",. "que até agora não compreendemos o quanto a nossa mitologia nórdica supera em grandeza moral a mitologia da Grécia e de Roma. Não fosse pela beleza física dos deuses antigos, que chegou até nossos dias através do mármore, nenhuma mente moderna poderia considerá-los dignos de adoração. Eram deuses mesquinhos, caprichosos e traiçoeiros. Os deuses de nossos antepassados dinamarqueses são muito mais divinos, como os druidas são mais nobres do que os áugures."

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