Volta para a capa
Grandes entrevistas

Jack Kerouac

Entrevista conduzida por Ted Berrigan, publicada em Os escritores 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 (tradução de Celso Nogueira)

Apresentação:

       Jack Kerouac tem hoje 45 anos. Seu décimo terceiro livro, Vanity of Duluoz, foi publicado no início do ano (1967). Casado há um ano, mora com a esposa, Stella, e a mãe - inválida -, num bairro residencial de Lowell, Massachusetts, a cidade onde passou a infância. Os Kerouac não têm telefone. Havia entrado em contato com Kerouac há alguns meses, quando então o convencera a dar a entrevista. Quando senti que a hora do encontro tinha chegado, simplesmente apareci na casa de Kerouac. Dois poetas amigos me acompanharam, Aram Saroyan e Duncan McNaughton. Kerouac atendeu a porta. Apresentei-me e expliquei o motivo da visita. Kerouac cumprimentou os poetas, mas, antes que pudéssemos entrar, sua mulher, uma pessoa muito decidida, segurou-o por trás e disse ao grupo que fôssemos embora imediatamente.
      Jack e eu começamos a falar ao mesmo tempo, dizendo Paris Review! Entrevista! etc. Nisso, Duncan e Aram já estavam voltando para o carro. Tudo parecia perdido, mas continuei falando, num tom de voz que tentava ser o mais civilizado, razoável, calmo e cordial possível. A sra. Kerouac acabou deixando a gente entrar, por vinte minutos, com a condição de não beber nada.
Lá dentro, quando ficou claro que nosso propósito era sério, a sra. Kerouac tornou-se mais amistosa, e deu para começar a entrevista. Pelo jeito as pessoas ainda aparecem com freqüência na casa de Kerouac, à procura do autor de On the road, e ficam por vários dias, acabando com a bebida e distraindo Jack de suas atividades mais sérias.
       O clima mudou muito no decorrer da noite. Stella, a sra. Kerouac, revelou-se uma anfitriã agradável e charmosa. A coisa mais incrível em Jack Kerouac é a voz, mágica, que parece saída de seus livros, capaz das mudanças mais assombrosas e desconcertantes num piscar de olhos. Ela tem a capacidade de dominar tudo, a começar por esta entrevista.
       Depois da entrevista, Kerouac, que ficou sentado o tempo todo em uma cadeira de balanço igual à do presidente Kennedy, acomodou-se em uma poltrona confortável e disse: ”Quer dizer que vocês são poetas, não é? Bom, então vamos ouvir alguns poemas”. Ficamos lá cerca de mais uma hora. Aram e eu lemos alguns poemas nossos. No fim, ele deu a cada um cópias autografadas de um poema recente, e fomos embora.
      Algumas lacunas desta entrevista foram preenchidas com respostas de Kerouac, por escrito, a perguntas feitas posteriormente. Achamos que os acréscimos dariam mais peso ao retrato do autor e de seu oficio.
                                             ***


PERGUNTA: Dá para puxar o banquinho para cá e colocar isto em cima?

STELLA: Sim.
KEROUAC: Meu Deus, como você está desajeitado aí, Berrigan. PERGUNTA: Bem, não sou nenhum técnico de gravação, Jack. Sou só um tagarela, como você. OK. Tudo pronto.
KEROUAC: OK? (Assobia) OK?
PERGUNTA: Já dá para começar... O primeiro livro seu que li, por incrível que pareça, já que a maioria começa lendo On the road ... foi The town and the city ...
KEROUAC: Puxa!
PERGUNTA: Peguei na biblioteca ...
KEROUAC: Nossa! ... Você leu Doctor Sax? Tristessa? ...
PERGUNTA: Li até Rimbaud. Tenho um exemplar de Visions of Cody que Ron Padgett comprou em Tulsa, Oklahoma.
KEROUAC: Ron Padgett que se foda! Quer saber por quê? Ele começou a fazer uma revistinha chamada White Dove Review em Kansas City, acho. Ou Tulsa, Oklahoma ... Ele me escreveu dizendo: "Ajude a revista a decolar, mande um bom poema, longo". Enviei "Thrashing doves". Depois mandei outro, e ele recusou o segundo, porque a revista já tinha decolado. Isso é para você ver como estes vagabundos tentam se dar bem nas costas dos outros. Ora, ele não é nenhum poeta. Você sabe quem é um grande poeta? Eu sei quem são os grandes poetas.
PERGUNTA: Quem?
KEROUAC: Vamos ver, é. " William Bissette, de Vancouver. Um garoto Índio. Bill Bissette, ou Bissonnette.
SAROYAN: Vamos falar de Jack Kerouac.
KEROUAC: Ele não é melhor que Bill Bissette, mas é muito original. PERGUNTA: Por que a gente não começa pelos editores? Como você .. KEROUAC: OK. Todos os meus editores, desde Malcolm Cowley, têm instruções para deixar meu texto exatamente como eu o escrevo. Na época de Malcolm Cowley, com On the road e The Dharma bums, eu não tinha poder para defender meu estilo, bom ou ruim. Malcolm Cowley fez revisões intermináveis e incluiu milhares de vírgulas inúteis. Gastei quinhentos dólares para fazer a reconstituição completa do original de Bums, e recebi uma fatura da Viking Press, falando em "Revisões". Rá rá rá. Você perguntou como eu trabalho com um editor ... Bem, hoje em dia apenas agradeço a ajuda dele em ler o original e apontar erros lógicos, tais como datas e nomes de lugares. No meu último livro, por exemplo, escrevi estuário do Forth, e depois fui conferir, por sugestão do editor. Descobri que, na verdade, eu tinha saído do estuário do Clyde. Coisas do gênero. Escrevi Alisteir Crowley, em vez de Aleister, e ele encontrou pequenos erros nas medidas em jardas nos jogos de futebol... e assim por diante. Se você não revisar o que acabou de escrever passa ao leitor o processo real de sua mente no momento da criação: revela suas impressões sobre os acontecimentos de um jeito inconfundível... Você já ouviu um cara contar um caso comprido para um monte de gente em um bar, e todo mundo fica prestando atenção e dando risada? Por acaso o sujeito pára alguma vez e começa a fazer a revisão, volta para uma frase anterior e tenta melhorá-la, para reforçar o impacto do ritmo do pensamento?... Se ele pára e assoa o nariz, já não está preparando a frase seguinte? E, se deixa a frase seguinte no ar, ela não fica assim para sempre, do jeito que ele queria? Não desvia do assunto, e, como disse Shakespeare, "segura a língua para sempre", como um trecho do rio passa por cima de uma pedra e nunca retorna, nem consegue mudar o rumo a tempo? Aliás, em relação à minha implicância com pontos finais, tive uma atitude deliberada em October in the Railroad Earth, bem experimental, que pretendia estalar durante todo o tempo, como uma locomotiva a vapor puxando um cargueiro de cem vagões, e um bando de ferroviários falando sem parar no último vagão. Era assim que eu fazia na época, e ainda é possível, se o ato de pensar, durante a escrita rápida, for puro, confessional e estiver excitado com a vitalidade contida nele. E sabia que passei minha juventude inteira escrevendo devagar, revisando, especulando se devia cortar, e no fim redigia uma frase por dia, e a frase não tinha EMOÇÃO. Que se dane, o que me agrada na arte é a EMOÇÃO, e não a TÉCNICA e o disfarce do sentimento.
PERGUNTA: O que o motivou a usar o estilo "espontâneo" em On the
road?
KEROUAC: Tive a idéia de usar o estilo espontâneo em On the road ao ver como meu velho amigo Neal Cassady escrevia suas cartas, sempre na primeira pessoa, rápidas, loucas. confessionais, completamente sérias, minuciosas, com os nomes reais, no caso dele (eram cartas). Também lembrei do aviso de Goethe - em uma profecia Goethe disse que a literatura do Ocidente seria confessional por natureza. Dostoiévski também percebeu isso, e poderia ter seguido por aí, se tivesse vivido o bastante para realizar a obra-prima que planejou, O grande pecador. Cassady também começou seus escritos juvenis com tentativas de fazer um negócio lento, sofrido, cheio da droga da técnica, mas ficou cheio, como eu, vendo que não botava as coisas para fora do modo visceral como elas brotavam. Mas seu estilo só me deu um toque. É uma mentira cruel daqueles vagabundos da costa oeste dizer que eu tirei dele a idéia para fazer On the road. Todas as cartas que me escreveu falavam do tempo em que era mais jovem, antes que eu o conhecesse, uma criança com o pai etc., e das experiências seguintes da adolescência. A carta que ele me mandou tem a fama injusta de possuir treze mil palavras... Não, o texto de treze mil palavras foi The first third, que ele conservou em seu poder. A carta, quer dizer, a maior carta, tinha quarenta mil palavras, veja bem, um pequeno romance completo. Foi a maior obra escrita que já vi, melhor que qualquer um faria nos Estados Unidos - ou pelo menos dava para Melville, Twain, Dreiser, Wolfe e sei lá quem mais tremerem na sepultura. AlIen Ginsberg pediu esta carta enorme emprestada. Depois que leu, passou para um sujeito chamado Gerd Stern, que morava em um harco-casa em Sausalito, Califórnia, em 1955, e esse cara perdeu a carta, deve ter deixado cair dentro d'água. Neal e eu a chamávamos de loan Anderson Letter, por conveniência ... Contava tudo sobre um fim de semana de Natal em salões de bilhar, quartos de hotel e prisões de Denver, estava cheia de casos hilariantes, e trágicos também, tinha até o desenho de uma janela, com as medidas, para ajudar o leitor a entender, e muito mais. Veja bem: esta carta teria sido publicada com o nome de Neal, se fosse possível encontrá-la. Mas, como você sabe, era uma carta para mim, propriedade minha, e Allen não poderia ter sido tão descuidado com ela, nem o cara do barco. Se nós pudéssemos descobrir esta carta de quarenta mil palavras, faríamos justiça a Neal. Além disso, gravamos várias conversas rápidas por volta de 1952, e as ouvimos várias vezes, nós dois pegamos o segredo do código para contar uma história, e percebemos que era o único jeito de registrar a velocidade, a tensão e as bobagens deslumbradas da época ... É o bastante?
PERGUNTA: Em sua opinião, de que maneira este estilo se modificou, desde On the road?
KEROUAC: Que estilo? Ah, o estilo de On the road. Bem, como eu disse, Cowley mexeu no texto original, sem que eu pudesse reclamar. Depois disso, todos os meus livros foram publicados do modo como eu os escrevi, como já falei, e o estilo tem variado desde a escrita rápida altamente experimental de Railroad Earth até o estilo místico voltado-para-dentro de Tristessa, da loucura confessional à la Memórias do subterrâneo de Dostoiévski em The subterraneans e a perfeição dos três reunidos em Big Sur, que conta uma história simples no estilo fluente da prosa literária melosa, até Satori em Paris, que é, na verdade, o primeiro livro que escrevi com bebida ao lado (conhaque e bourbon)... Sem falar em Book of dreams, no estilo de uma pessoa que mal acordou, escrevendo a lápis na beira da cama... , sim, a lápis ... que trabalho! Olhos congestionados, a mente insana confundida e mistificada pelo sono, detalhes que pipocam e que você não entende o significado, enquanto escreve. Aí você acorda, toma café, olha para aquilo e percebe a lógica dos sonhos na própria linguagem dos sonhos, sabe como é?... Eu decidi, finalmente, em minha meia-idade cansada, decidi ir mais devagar, e fiz Vanity of Duluoz em um estilo mais comportado. Desta forma, após tantos anos sendo esotérico, os leitores antigos podem voltar e ver o que dez anos fizeram com meu pensamento e com minha vida ... o que é, no final das contas, a única coisa que tenho a oferecer: a verdadeira história daquilo que vi, e como vi.
PERGUNTA: Você ditou certas passagens de Visions of Cody. Voltou a usar este método alguma outra vez?
KEROUAC: Não ditei passagens de Visions of Cody. Datilografei um trecho de uma conversa com Neal Cassady, ou Cody, falando sobre suas primeiras aventuras em Los Angeles. São quatro capítulos. Não usei mais este método. Não funciona muito bem, sabe, para mim e para Neal, quando vai tudo para o papel, cheio de Ahs e Ohs e Hums, e o fato assustador daquela maldita coisa estar rodando e a gente ser forçada a não desperdiçar eletricidade nem fita ... Talvez tenha que recorrer a isso algum dia, mais uma vez, não sei. Estou ficando cansado e cego. Esta questão me confunde. De algum modo, todos estão fazendo isso, pelo que sei, mas eu continuo escrevendo ... McLuhan diz que estamos ficando mais orais, de modo que vamos acabar aprendendo a falar na máquina cada vez melhor.
PERGUNTA: O que é o estado de "semitranse yeatsiano" que cria o ambiente ideal para a escrita espontânea?
KEROUAC: Bem, é isso aí - como entrar em transe enquanto estamos conversando? O ato de escrever pelo menos é uma meditação silenciosa, mesmo que você esteja a cem por hora. Vocês lembram daquela cena de La doIce vita em que o velho padre fica furioso, porque um bando de maníacos aparece para visitar a árvore onde as crianças viram a Virgem Maria? Ele diz: "Não é possível ter visões no meio desta loucura frenética, gritaria e empurrões. As visões são obtidas somente através do silêncio e da meditação". É isso.
PERGUNTA: Você disse que o haicai não é escrito espontaneamente, mas sim trabalhado e revisado. Isso vale para todas suas poesias? Por que o método de escrever poesia tem que ser diferente do utilizado na prosa?
KEROUAC: O haicai fica melhor retrabalhado e revisado. Eu sei, eu tentei. Ele tem que ser totalmente econômico, sem enfeites nem floreios ou linguagem ritmada, tem que ser uma pequena imagem despojada, em três linhas curtas. Pele menos era assim que os antigos mestres faziam, passavam meses debruçado em três versos curtos, chegando, digamos, a isso:
                       No bote abandonado O granizo
                             Bate na borda

É de Shiki. Mas, no caso da minha poesia comum em inglês, eu a despejava depressa, como a prosa, usando, preste atenção, o tamanho de uma folha de caderno como medida da forma e extensão do poema, exatamente como o músico tem que fazer. O músico de jazz dá seu recado dentro de um certo número de compassos, dentro de um chorus, que se projeta sobre o seguinte, mas ele tem que parar quando a página termina. E tem mais. Você também pode dizer tudo que quiser na poesia, não tem que contar uma história, pode usar jogos ocultos de palavras. É por isso que sempre digo, quando estou fazendo um texto em prosa: "Nada de poesia agora, conte sua história e pronto.

PERGUNTA: Como você escreve haicais?
KEROUAC: Haicai? Você quer ouvir haicais? Sabe, você tem que condensar uma grande história em três linhas. Primeiro, começa com uma situação de haicai - assim, expliquei para ela uma noite dessas, você vê uma folha caindo nas costas de um pardal durante uma ventania forte em outubro. Uma folha grande cai nas costas de um pequeno pardal. Como resumir isso em três linhas? Em japonês é preciso condensar isso em dezessete sílabas. Não temos que fazer isso em americano - ou inglês - porque não seguimos a mesma divisão silábica idiota da língua japonesa. Então você diz: Pequeno pardal - não precisa falar pequeno - todos sabem que os pardais são pequenos... porque eles caem... e fica assim.
                               Pardal
                                       com folha grande nas costas
                                       Ventania

Não presta, não funciona. Rejeito.
                       Pequeno pardal
                             então uma folha seca vem por trás, de repente,
                             montada no vento.

Ah, agora sim. Não, está um pouco longo demais. Percebe, ainda está um pouco longo demais, Berrigan. Entende onde quero chegar?
PERGUNTA: Parece que tem alguma coisa a mais, talvez o "então". Que tal tirar o "então"? E dizer:
    Pardal
     uma folha seca vem por trás, de repente, montada no vento!

KEROUAC: Ficou melhor. Acho que "então" era a palavra que estava sobrando. Você pegou o espírito, O'Hara! Um pardal, a folha seca que de repente - a gente não precisa dizer "de repente", não é?
                           Pardal
                                  folha seca vem por trás montada no vento!

(Kerouac anota a versão definitiva em um caderno espiral)
PERGUNTA: "De repente" é o exemplo exato de expressão desnecessária. Quando você publicar isso vai por uma nota dizendo que me fez umas perguntas?
KEROUAC (escrevendo): Mencionar Berrigan. Certo?
PERGUNTA: Você escreve muita poesia? De outro gênero, fora haicai?
KEROUAC: É difícil fazer haicais. Eu costumo escrever longos poemas Índios absurdos. Você quer ouvir meus poemas Índios absurdos e longos?
PERGUNTA: Que tipo de Índio?
KEROUAC: Iroquês. Como você pode perceber, olhando para mim. (Lê no caderno)
                  No gramado, a caminho do armazém
                      44 anos para os vizinhos ouvirem
                      olha mãe, eu me machuquei. Especialmente
                      com aquele esguicho.

O que isso significa?
PERGUNTA: Dá para repetir?
KEROUAC: Olha, mãe, eu me machuquei, estava indo para o armazém e me machuquei, caí na grama e gritei para minha mãe, olha mãe, eu me machuquei. E acrescento, especialmente com aquele esguicho.
PERGUNTA: Você tropeçou na mangueira?
KEROUAC: Não, meu pai esguichou em minha mãe.
PERGUNTA: De tão longe?
KEROUAC: Chega, eu desisto. Você não vai entender este, que eu sei. Só se eu explicar. (Ele abre o caderno de novo, e lê)
PERGUNTA: Mande este para Ginsberg.
KEROUAC (lendo):
   Pessoas ditas felizes são hipócritas - quer dizer,

    a onda da felicidade não se propaga sem

    trapaça obrigatória, sem certas manhas e mentiras e

    dissimulações. Hipocrisia e trapaça, sem índios. Sem sorrisos,
PERGUNTA: Sem Índios?
KEROUAC: O motivo de sua hostilidade reprimida em relação a mim, Berrigan, tem origem na guerra entre franceses e Índios.
PERGUNTA: Poder ser.
SAROYAN: Vi uma foto sua jogando futebol, na adega de Horace Mann. Você era bem gordo naquela época.
STELLA: Tuffy! Aqui, Tuffy! Vem cá, gatinho ...
KEROUAC: Stella, por que a gente não toma mais uma garrafa? Sabe, eu ia matar todo mundo, se eles deixassem. Ia mesmo. Sundaes com calda quente! Bum! Eu sempre tomava dois ou três sundaes com calda quente antes do jogo. Lou Little...
PERGUNTA: Ele era seu técnico em Colúmbia?
KEROUAC: Lou Little era o técnico em Colúmbia. Meu pai chegou para ele e disse: "Seu vigarista fominha narigudo... Por que você não deixa meu filho, Ti Jean, Jack, entrar no exército, para se desforrar de seu grande inimigo de Lowell?". E Lou Little respondeu: "Porque ele não está preparado". "Quem falou que ele não está preparado?". "Eu estou dizendo que ele não está preparado". Aí meu pai disse: "Seu nariz de banana vigarista, vê se some da minha frente!". E saiu do escritório batendo o pé, fumando um charuto enorme. Depois saímos de Colúmbia, juntos. Aí, quando eu estava na marinha americana, durante a guerra - 1942 - ele entrou e disse, bem na frente dos almirantes: "Jack, você tem razão! Os alemães não deviam ser nossos inimigos. Eles deviam ser nossos aliados, como será provado com o tempo". E os almirantes ficaram todos de boca aberta, e meu pai não levava desaforo para casa - meu pai não tinha nada, fora uma barriga enorme, deste tamanho (faz um gesto, com o braço esticado), e fazia assim, PUM! (Kerouac levanta e mostra, inchando a barriga com força e dizendo PUM!) Uma vez ele estava andando na rua, de braço dado com minha mãe, pela parte baixa da zona leste. Nos velhos tempos, sabe, aos 40. Aí passou um grupo de rabinos, andando de braço dado... toc toc toc. .. Eles não iam dar passagem para um cristão com a mulher. Então meu pai fez PUM! E jogou um rabino de cara na sarjeta. Depois pegou minha mãe e seguiu em frente. Se você não gosta disso, Berrigan, problema seu. É a história de minha família. Eles não levam desaforo para casa. Vai chegar a hora em que eu não vou ter que agüentar mais desaforo de ninguém. Pode escrever isso. Este vinho é o meu?
PERGUNTA: The town and the city foi escrito de acordo com os princípios da composição espontânea?
KEROUAC: Sim, senhor, em parte. Também escrevi outra versão junto com Burroughs, que está escondida embaixo das tábuas do assoalho.
PERGUNTA: Sei. já ouvi boatos sobre a existência desse livro. Todo mundo quer conhecer esse texto.
KEROUAC: O nome é And the hippos were boiled in their! tanks. Os hipopótamos. Burroughs e eu estávamos sentados em um bar, de noite, e ouvimos uma notícia, que dizia: "Os egípcios atacaram blá blá blá... "enquanto isso, aconteceu um grande incêndio no zoológico, o fogo se espalhou pelo parque, e os hipopótamos foram cozidos em seus tanques! Boa noite para todos!". Foi Bill, foi ele que percebeu isso. Ele sempre nota este tipo de coisa.
PERGUNTA: É verdade que você datilografou o original de Naked lunch para ele em Tânger?
KEROUAC: Não... só o começo. Os dois primeiros capítulos. Eu tinha pesadelos, quando ia para a cama. "um monte de besteiras saindo de minha boca. Datilografar aquele livro estava me provocando pesadelos... Eu dizia, "Bill". E ele: "Continue batendo". Ele disse: "Comprei a porra do fogareiro para você, aqui, no norte da África, sabia?". É difícil conseguir um fogareiro... entre os árabes. Eu acendia o fogo, pegava as cobertas e um pouco de fumo, ou "kif", como diziam lá... Ou, de vez em quando, um pouco de haxixe... Lá é legal, por falar nisso... E ia batendo tactactactactactac, e quando ia para a cama, à noite, aquelas coisas ficavam saindo pela minha boca. De repente chegaram outros caras, como Alan Ansen e Allen Ginsberg, e estragaram todo o original, porque não o datilografaram do jeito que ele o escreveu.
PERGUNTA: A Grove Press tem lançado os livros dele da Olympia Press com uma porção de mudanças e acréscimos.
KEROUAC: Bem, na minha opinião Burroughs não produziu nada de atraente para nossos corações atormentados desde que escreveu Naked lunch daquele jeito. A única coisa que ele faz agora é um negócio fragmentado, que se chama... quando você escreve uma página em prosa, e depois escreve mais uma... aí você dobra, corta e junta tudo... [cut-ups] e outras merdas do gênero .
PERGUNTA: E o que você diz de ]unkie, então?
KEROUAC: É um clássico. Melhor que Hemingway - é que nem Hemingway, até um pouco melhor. Diz o seguinte: Danny chega em minha casa uma noite, e diz, ei, Bill, me empresta o porrete? Um porrete - você sabe o que é um porrete?
SAROYAN: Um cassetete?
KEROUAC: Isso, um cassetete. Bill conta: "Abri a gaveta de baixo, e puxei o porrete, guardado embaixo das camisas finas. Dei para Danny e disse: “Vê se não perde isso, Danny” - Danny diz: “Não se preocupe, não vou perder”. Ele vai embora e perde. Porrete. .. cassetete... isso sou eu. Porrete. .. cassetete.
PERGUNTA: Isso é um haicai: porrete, cassetete, isso sou eu. Melhor anotar.

KEROUAC: Não.
PERGUNTA: Acho que Vou anotar. Tudo bem se eu ficar com ele?
KEROUAC: Enfia no cu, com gasolina azul.
PERGUNTA: Você não acredita em parcerias? Já fez alguma parceria, a não ser com os editores?
KEROUAC: Fiz algumas parcerias na cama, com Bill Cannastra, em lofts. Com loiras.
PERGUNTA: Foi ele o sujeito que tentou trepar no vagão do metrô de Astor Place, em Go, de Holmes?
KEROUAC: Sim. Bem, ele disse: "Vamos tirar a roupa e dar a volta no quarteirão ... ". Estava chovendo, sabe. Rua Dezesseis, perto da Sétima Avenida. Eu falei: "Bom, vou ficar de calção". E ele: "Nada de calção". Retruquei: "Vou ficar de calção". "Tudo bem, mas não vou usar o meu", ele disse. E lá fomos nós, contornando a quadra. Da décima sexta até a décima sétima... voltamos para casa, e subimos a escada - ninguém nos viu.
PERGUNTA: Que horas eram?
KEROUAC: Mas ele estava completamente nu... umas três ou quatro da manhã. Estava chovendo. E todo mundo estava lá. Ele ficou dançando sobre cacos de vidro e tocando Bach. Bill era o cara que ficava se equilibrando no telhado - seis andares! Ele falava: "Querem que eu caia?". E a gente respondia "não, Bill, não". Ele era italiano. Os italianos são fogo, sabe.
PERGUNTA: O que ele fazia? Escrevia?
KEROUAC: Ele dizia: "Jack, vem cá, olhe pelo buraco". E a gente olhava pelo buraco, e via um monte de coisas - no banheiro dele. Eu disse: "Não estou interessado nisso, Bill". "Você não está interessado em nada", ele falou. Auden podia aparecer no dia seguinte, na tarde seguinte, para beber. Quem sabe junto com Chester Kallman e Tennessee Williams.
PERGUNTA: Neal Cassady circulava por lá, nesta época? Você já conhecia Neal Cassady quando se meteu com Bill Cannastra?
KEROUAC: Sim, sim, bem... ele tinha uma pacoteira de fumo. Ele sempre foi um maconheiro esperto.
PERGUNTA: Por que você acha que Neal não escreve?
KEROUAC: Ele escrevia... muito bem! Ele escrevia melhor do que eu. Neal é um cara curioso. Um californiano de verdade. A gente se divertiu mais do que cinco mil frentistas dos postos de gasolina Socony juntos. Na minha opinião, ele é o sujeito mais inteligente que já encontrei na vida. Ele é jesuíta, por falar nisso. Cantava no coro. Fazia parte do coro da igreja católica de Denver. E me ensinou tudo em que acredito agora sobre qualquer coisa que diga respeito a divindades.
PERGUNTA: Sobre Edgar Cayce?
KEROUAC: Não, antes de descobrir Edgar Cayce ele me contou muitas coisas, na época em que ficamos na estrada. Ele dizia: "A gente conhece Deus, não é, Jack?". Eu dizia: "Sim senhor". Ele dizia: "A gente não sabe que nada pode dar errado?". "Sim senhor." "E vamos seguir sempre em frente, sempre em frente, hemmmmmmm ja-bmmmmmmmm"... Ele era perfeito. Ele sempre foi perfeito. Sempre que vem me visitar, eu não consigo dizer uma só palavra atravessada.
PERGUNTA: Você escreveu a respeito de Neal jogar futebol, em Visions of Cody.
KEROUAC: Sim, ele era um ótimo jogador de futebol. Uma vez ele conheceu dois beatniks de blue jeans em North Beach, Frisco. Ele disse: "Tenho que ir, bang bang, será que tenho que ir?". Ele estava trabalhando na estrada de ferro... olhou o relógio ... "2:15, cara, tenho que chegar lá antes das 2:20. Melhor vocês me levarem de carro até lá, para eu poder pegar o trem na hora... Assim eu posso pegar meu trem para - como é mesmo o nome daquele lugar, San Jose?". Eles disseram "Claro, meu", e Neal disse: "Aqui está o fumo", E então: "A gente pode parecer dois beatniks barbudos ... mas somos da polícia. Você está preso". Depois um sujeito do New York Post foi até a cadeia e fez uma entrevista com ele, e ele disse: "Fale para Kerouac mandar uma máquina de escrever, se ainda acredita em mim". E eu mandei cem dólares para Allen Ginsberg, cem dólares para ele comprar uma máquina de escrever para Neal. E Neal conseguiu a máquina. Ele escreveu umas notas com ela, mas não deixaram que mandasse para nós. Não sei onde foi parar a máquina de escrever. Genet escreveu Notre Dame des Fleurs inteira quando estava em cana... na cadeia. Grande escritor, Jean Genet. Ele escreveu e escreveu, até que chegou ao ponto d
e gozar só por estar escrevendo sobre isso... até de gozar na cama - no xadrez. O xadrez francês. A cadeia francesa. Prisão. E este era o final do capítulo. Genet gozava em todos os capítulos. O que, devo reconhecer, Sartre percebeu.
PERGUNTA: Você acha que este é um tipo diferente de escrita espontânea?
KEROUAC: Bem, eu poderia ir para a cadeia e escrever um capítulo por noite a respeito de Magee, Magoo e Molly. É lindo. Genet é realmente o escritor mais sincero que já surgiu desde Kerouac e Burroughs. Só que ele chegou antes de nós. É mais velho. Bem, tem a mesma idade de Burroughs. Mas não acho que eu tenha sido desonesto. Sabe, me diverti muito! Meu Deus, rodei por este país, livre como um passarinho. Mas Genet é um escritor muito trágico e belo. Dou o cetro para eles. E a coroa de louros. Eu não daria a coroa de louros para Richard Wilbur! Ou para Robert Lowell. Ela pertence a Jean Genet e a William Seward Burroughs. E a Allen Ginsberg e Gregory Corso, também.
PERGUNTA: Jack, e os escritos de Peter Orlovsky? Gosta das coisas que Peter faz?

KEROUAC: Peter Orlovsky é um idiota! Um idiota russo. Nem chega a ser russo, é polonês.
PERGUNTA: Ele escreveu poemas admiráveis.
KEROUAC: É, tá bom. Meu... que poemas?
PERGUNTA: Ele tem um poema lindo, chamado "Second poem”.
KEROUAC: "Meu irmão mija na cama... e eu entro no metrô e vejo duas pessoas se beijando ... "
PERGUNTA: Não, falo do poema que diz "é mais criativo pintar o chão do que varrer".
KEROUAC: Isso é um monte de merda! É o mesmo tipo de poesia escrita por um outro idiota polonês, o polaco maluco do Apollinaire. Apollinaire não era seu nome verdadeiro, sabia? Meus amigos de São Francisco me disseram que Peter é um idiota. Mas eu gosto de idiotas, e a poesia dele me agrada. Pense nisso, Berrigan. De minha parte, fico com Gregory. Me dá uma dessas.
PERGUNTA: Uma das pílulas?
KEROUAC: É. O que são?
PERGUNTA: Chamam-se Obetrol. Foi Neal quem me falou a respeito delas.
SAROYAN: O que foi mesmo que você disse, na contracapa da antologia da Grove... que deixa o verso um pouco longo, para preenchê-lo com imagens secretas que surgem no final da frase?
KEROUAC: Ele é um armênio de verdade! Sedimento. Delta. Lama. É por aí que se começa um poema ...

       Quando estava andando pela rua, um dia,
       Eu vi um lago, onde as pessoas interceptavam minha retaguarda,
       17 mil padres cantando como George Burns.

e depois você continua ...
             E eu estou fazendo piadas a meu respeito

             e quebrando meus ossos na terra
             e aqui estou eu. O grande João Armênio

             de volta à terra
Aí você se lembra onde estava no começo, e diz,
             Ahahal Tatatataduuda... foda-se a Turquia.
Percebe? A gente se lembra do verso no fim... mas se distrai no meio.
SAROYAN: Certo.
KEROUAC: Isso vale para a prosa também, além da poesia.
PERGUNTA: Mas, no caso da prosa, você está contando uma história.
KEROUAC: Na prosa eu faço parágrafos. Cada parágrafo é um poema.
PERGUNTA: É assim que você escreve um parágrafo?
KEROUAC: Quando eu estava passando pelo centro da cidade, e ia fazer uma coisa, e estava deitado lá, com uma garota, um cara puxou a tesoura, e eu o levei para dentro, ele me mostrou umas fotos pornô. E eu saí e caí na escada com os sacos de batata.
PERGUNTA: Você gosta de algum trabalho de Gertrude Stein?
KEROUAC: Nunca me interessou muito. Gostei um pouco de Melanctha. Na verdade, eu devia ir para a escola, e ensinar a garotada. Poderia ganhar dois mil dólares por semana. Não se pode aprender estas coisas. Sabe por quê? Porque é preciso ter nascido com antepassados trágicos.
PERGUNTA: Você só pode fazer isso se tiver nascido na Nova Inglaterra.
KEROUAC: Por falar nisso, meu pai falou que seu pai não era trágico.
SAROYAN: Não acho que meu pai seja trágico.
KEROUAC: Meu pai disse que Saroyan ... William Saroyan não era nem um pouco trágico... Era só cheio de merda. Aí eu tive uma boa discussão com ele. The daring young man in the flying trapeze é bem trágico, na minha opinião.
SAROYAN: Ele era jovem na época.
KEROUAC: É. Mas ele estava com fome, e estava em Times Square. Voando. Um garoto no trapézio voador. E
ra uma história linda. Me deixou arrepiado, quando eu era menino.
PERGUNTA: Você lembra de uma história de William Saroyan sobre o índio que foi para a cidade e comprou um carro e chamou um menino para dirigir?
STELLA: Um Cadillac.
KEROUAC: Que cidade era essa?
SAROYAN: Fresno. Foi em Fresno.
KEROUAC: Ei, lembra daquela noite, eu estava tirando uma boa soneca, e você apareceu na minha janela em um cavalo branco ...
SAROYAN: The summer 01 the beautilul white horse.
KEROUAC: Eu olhei pela janela e perguntei: "O que é isso?". Você disse: "Meu nome é Aram. Estou montado em um cavalo branco".
SAROYAN: Moorad.
KEROUAC: Desculpe. Meu nome é Moorad. Não, meu nome é... Eu era Aram, você era Moorad. Você disse: "Acorde!". Eu não queria acordar. Queria dormir. My name is Aram é o nome do livro. Você roubou um cavalo branco de um fazendeiro, e me acordou, Aram, para cavalgar com você.
SAROYAN: Moorad era o mais louco, o que roubou o cavalo.
KEROUAC: Ei, o que foi que vocês me deram?
PERGUNTA; ObetroI.
KEROUAC: Ah,obies.
PERGUNTA: O que acha das influências do jazz e do bop, em vez de... Saroyan, Hemingway e Wolfe?
KEROUAC: Sei, o jazz e o bop, no sentido, digamos, de um músico tomando fôlego, soprando uma frase em seu saxofone tenor, até ficar sem ar, e quando isso acontece, sua frase, seu recado, já foi dado... é assim que eu separo minhas frases, como se fossem pausas mentais para respirar... Eu formulei a teoria da respiração como medida, em prosa e verso, e não importa o que Olson, o que Charles Olson diga. Eu formulei esta teoria em 1953, a pedido de Burroughs e Ginsberg. E também tem o vigor, a liberdade e o humor do jazz, em vez de todas aquelas análises maçantes e coisas do tipo "James entrou no quarto e acendeu um cigarro. Ele pensou que Jane poderia ter pensado que seu gesto era um pouco vago... ". Você conhece o gênero. Em relação a Saroyan, sim, eu gostava dele quando era adolescente, ele me tirou da trilha de estudos sobre o século XIX, que eu estava seguindo, não só por seu tom engraçado, como também pela poesia armênia elegante, não sei bem... ele me ganhou... Hemingway era fascinante, as palavras como pérolas em uma página branca, dando um quadro preciso... mas Wolfe era um jorro de céu e inferno da América, no que me abriu os olhos para os Estados Unidos como um assunto em si.
PERGUNTA: E o que me diz do cinema?
KEROUAC: Bem, todo mundo foi influenciado pelo cinema. Malcolm Cowley mencionou isso várias vezes, por acaso. Às vezes ele é bem perspicaz: observou que Doctor Sax fala muito em urina, e fala mesmo, eu não tinha onde escrever, fora uma privada de um pequeno banheiro azulejado na cidade do México, afastado dos hóspedes do apartamento. Por acaso, saiu em um estilo totalmente alucinado, já que o escrevi todo no pot * Sem querer fazer um trocadilho, ah ah. (* Pot, aqui, significa tanto maconha quanto vaso sanitário. N.T.)
PERGUNTA: De que maneira o zen influenciou seu trabalho?
KEROUAC: O que realmente influenciou meu trabalho foi o budismo maaiana, o budismo original de Gautama Sakyamuni, o próprio Buda, da lndia de velhas... O zen foi o que sobrou de seu budismo, ou Bodhi, quando passou para a China, e de lá para o Japão. A parte do zen que influenciou minha obra foi o zen presente nos haicais, como já falei, os poemas de três versos e dezessete sílabas escritos há séculos por gente como Bashô, Issa e Shiki, e mestres mais recentes. Uma frase curta e suave, com uma mudança brusca do pensamento, é uma forma de haicai, e há muito prazer e liberdade quando a gente é surpreendido por ela, deixando a mente pular, solta, do galho para o pássaro. No entanto, meu budismo sério, aquele da lndia antiga, influenciou a parte da minha obra que você pode chamar de religiosa, fervorosa ou piedosa, quase tanto quanto o catolicismo. O budismo original pregava a compaixão consciente, permanente, a fraternidade, a dana paramita, quer dizer, a perfeição da caridade, não fazer mal a uma mosca e tudo mais, humildade, mendicância, o rosto suave sofrido do Buda (que era de origem ariana, por falar nisso, de uma casta guerreira persa, e não oriental, como o pintam) ... No budismo original nenhum menino que chegasse a um mosteiro seria advertido que ali "enterram gente viva". Apenas o encorajavam, com suavidade, a meditar e ser gentil. O zen começou, na verdade, quando Buda reuniu todos os monges para fazer um sermão e anunciar o primeiro patriarca do culto maaiana: em vez de falar, ele simplesmente mostrou uma flor. Todo mundo ficou surpreso, menos Kasyapa, que sorriu. Kasyapa foi escolhido para ser o primeiro patriarca. Esta idéia encantou os chineses, como no caso do sexto patriarca, Hui-Neng, que disse: "Desde o princípio nunca existiu nada", e queria destruir os registros das palavras do Buda, conservadas nos sutras; os sutras eram "fiapos de sermões". De certo modo, portanto, o zen é uma forma suave e simplória de heresia. Mesmo assim, deve haver alguns bons velhos monges de verdade, em algum lugar, mas nós só temos ouvido falar dos malucos. Nunca fui ao Japão. O Maha Roshi Yoshi não passa de um seguidor de tudo isso, e nunca o fundador de qualquer coisa nova, é claro. No programa de Johnny Carson ele nem citou o nome do Buda. Talvez o Buda dele seja Mia.
PERGUNTA: Por que você nunca escreveu sobre Jesus? Já escreveu sobre Buda, não? Jesus não foi um cara incrível, também?
KEROUAC: Como não escrevi nunca sobre Jesus? Quer dizer que você é um impostor maluco que veio na minha casa... e ... eu só escrevo sobre Jesus. Sou Everhard Mercurian, general do exército jesuíta.
SAROYAN: Qual a diferença entre Jesus e Buda?
KEROUAC: Esta é uma boa pergunta. Não há diferença.

SAROYAN: Nenhuma diferença?
KEROUAC: Mas há uma diferença entre o Buda original, da Índia, e o Buda do Vietnã, que só raspa a cabeça e põe um manto amarelo, mas é um agitador, um agente comunista. O Buda original não seria capaz de andar sobre a grama nova, para não estragá-la. Ele nasceu em Gorakpur, filho de um cônsul das hordas persas invasoras. E foi chamado de Sábio dos Guerreiros, tinha dezessete mil mulheres dançando para ele, oferecendo flores, dizendo: "Quer sentir o perfume, meu senhor?". Ele dizia: "Cai fora daqui, sua puta". Dormiu com uma porção delas, sabia? Mas, quando chegou aos 31 anos, ficou enjoado e cansado daquilo... seu pai o protegia do que acontecia fora da cidade. Um dia ele saiu a cavalo, desobedecendo as ordens do pai, e viu uma mulher morrendo - e um homem sendo queimado em uma pira. E ele disse: "O que significa toda esta morte e podridão?". O criado respondeu: "Ê assim que as coisas acontecem. Seu pai ocultava do senhor como as coisas aconteciam". E ele: "O quê?! Meu pai!! Quero meu cavalo, sele meu cavalo! Vamos para a floresta!". Eles cavalgaram até a floresta. "Agora tire a sela do cavalo. Passe a sela para o seu cavalo... leve o meu pela rédea, volte para o castelo e diga a meu pai que nunca mais quero vê-lo!" Kandaka, o criado, disse, chorando: "Nunca mais vou vê-l0". "Não faz mal! Vá embora! Passa! Fora!" Ele ficou sete anos na floresta. Passou fome. Nada aconteceu. Mortificou-se através do jejum. Ele disse que não abriria a boca para comer até descobrir a causa da morte. Um dia, quando cambaleava pela margem do rio Rapti, desmaiou. Uma menina se aproximou, com uma tigela de leite: "Senhor, um pouco de leite". Ele disse: "Muito obrigado, menina, isso me deu uma nova força". Foi embora em seguida, e sentou embaixo da árvore Bo. A figueira. Ele disse: "Agora... (imita a postura)... vou cruzar as pernas. " e cerrar os dentes até descobrir a causa da morte". Cem mil fantasmas o atacaram às duas da manhã. Ele não se moveu. Às três da manhã, imensos espectros azuis. Ahhhhhhhhhhh! Todos o assombraram. (Estou sendo bem escocês). Quatro horas da manhã, os maníacos raivosos do inferno... saíram dos bueiros... na cidade de Nova York. Sabe, em Wall Street, onde sai o vapor? Você sabe, em Wall Street, nos bueiros... o vapor fica saindo. Se você tira a tampa aüüüüii!!!!! Seis da manhã, tudo estava calmo - os passarinhos começaram a cantar, e ele disse: "... a causa da morte ... a causa da morte é o nascimento". Simples, não? Ele depois começou a caminhar pela estrada que leva a Benares, na lndia ... usando cabelos compridos, como os seus, vê. Encontra três sujeitos. Um deles diz: "Olha, lá vem o Buda, que passou fome conosco na floresta. Quando ele sentar perto do balde, não lavem seus pés". Quando Buda sentou perto do balde... o sujeito foi logo lavar os pés dele. Por que lavou os pés dele? Buda responde: "Porque eu vou a Benares tocar o tambor da vida". O que é isso? "A causa da morte é o nascimento". "O que quer dizer?" "Vou mostrar a vocês." Passa uma mulher, com o filho morto no colo. "Devolva a vida a meu filho, se for o Senhor", ela diz. E ele: "Claro, posso fazer isso a qualquer hora. Mas vá primeiro procurar uma família em Sravasti em que não tenha havido nenhuma morte nos últimos cinco anos. Peça uma semente de mostarda a eles, e traga-a para mim. E irei devolver a vida a seu filho". Ela percorreu a cidade inteira, cara, dois milhões de pessoas, a cidade de Sravasti era maior que Benares. Ela voltou e disse que não conseguiu encontrar uma família assim, em todas elas haviam ocorrido mortes nos últimos cinco anos. Ele disse: "Então enterre seu filho". Aí seu primo invejoso, Devadatta (é Ginsberg, sabe... eu sou Buda, e Ginsberg é Devadatta) faz um elefante ficar bêbedo... um elefante macho enorme, bêbado de uísque. O elefante faz assim (imita um elefante barrindo), com a tromba imensa, e Buda pára na estrada e se aproxima do elefante e faz assim (ajoelha). O elefante ajoelha também. "Você está mergulhado no pântano da dor! Abaixe a tromba! Fique quieto!"... Ele é um domador de elefantes. Neste momento Devadatta empurrou uma pedra grande do alto de um penhasco. Ela quase atingiu a cabeça do Buda. Passou perto. Buuuum! Ele diz "É Devadatta de novo". Então Buda faz isso (anda de um lado para outro), na frente dos rapazes, sabe. Sua prima, que estava apaixonada por ele... Ananda... quer dizer amor, em sânscrito, estava bem atrás. (Continua andando de um lado para outro.) A gente faz isso na cadeia, para manter a forma. Sei muitas histórias sobre Buda, mas não sei exatamente o que ele disse em cada uma. Mas lembro o que disse para o sujeito que cuspiu nele. Ele disse: "Como não posso usar seu insulto, pode pegá-lo de volta". Ele era grande. (Kerouac toca piano. Bebidas são servidas.)
SAROYAN: Tem alguma coisa aí
PERGUNTA: Minha mãe costumava tocar isso. Não sei se podemos transcrever as notas musicais para o texto. Talvez seja preciso incluir um disco, com você ao piano. O senhor poderia tocar este número novamente, para entrar no disco, senhor Paderewski? Sabe tocar Alouette?

KEROUAC: Não. Só música afro-germânica. Afinal de contas, sou um quadrado. O que será que o uísque vai fazer com estes obies?

PERGUNTA: E o que me diz de rituais e superstições? Tem alguma, relacionada com o trabalho?

KEROUAC: Por um tempo eu cumpri um ritual, acendendo uma vela para escrever, que eu apagava quando terminava o trabalho daquela noite... E também ajoelhava para rezar, antes de começar (tirei isso de um filme francês sobre George Frederick Handel)... Mas hoje simplesmente odeio escrever. Superstições? Estou começando a desconfiar da lua cheia. Também sou ligado ao número nove, apesar de dizerem que um pisciano como eu devia se ligar no sete. Mas tento fazer nove flexões por dia, quer dizer, ficar de ponta cabeça no banheiro e tocar o chão nove vezes com a ponta do dedão, sem perder o equilíbrio. Isso, aliás, é mais do que ioga, é um feito atlético, sabe, imagine alguém me chamando de "desequilibrado" depois disso. Falando sério, acho que minha mente está enfraquecendo. Tem um outro "ritual", como você chamou, que é rezar para Jesus conservar minha lucidez e minha energia, para que eu possa ajudar minha família: minha mãe paralítica, minha mulher e os inevitáveis gatinhos, certo?

PERGUNTA: Você datilografou On the road em três semanas, The subterraneans ... em três noites e três dias. Você ainda produz com esta velocidade incrível? Poderia falar algo sobre a gênese de uma obra, antes de sentar e começar a datilografar deste jeito - o quanto já está pronto em sua cabeça, por exemplo?

KEROUAC: Você primeiro pensa no que realmente aconteceu, conta longas histórias a respeito, para os amigos, rumina tudo na sua cabeça, monta do jeito que quiser, e aí, quando chega a hora de pagar o aluguel de novo, você se obriga a sentar na máquina de escrever, ou a pegar o caderno de anotações, e resolver o problema o mais rápido possível... , e não há mal nenhum nisso, porque já tem a história toda esboçada. Agora, o modo de fazer isso depende do tipo de arapuca que você armou na sua velha cabecinha. Pode parecer exagero, mas uma garota disse uma vez que eu tinha um cérebro de arapuca. Ela quis dizer que eu a pegava com uma afirmação que ela tinha feito uma hora atrás, apesar de nossa conversa ter percorrido um milhão de anos-luz desde aquele momento... Você entende o que eu quero dizer? É como a cabeça de um advogado, por exemplo. Minha mente registra tudo, a não ser a linguagem que é usada no momento da conversa... E quanto a On the road e The subterraneans, não, eu não consigo mais escrever tão rápido... Escrever The subs em três noites foi realmente um feito atlético fantástico, além de mental, devia ter me visto depois que acabei ... Estava branco como um defunto, tinha perdido sete quilos e não me reconhecia no espelho. O que faço hoje é escrever uma média de oito mil palavras por vez, no meio da noite, e outro tanto uma semana depois, tirando o intervalo para descansar e reclamar. Na verdade eu odeio escrever. Não vejo graça nenhuma nisso, porque eu não consigo levantar e dizer "estou trabalhando, feche a porta", e mandar trazer café e ficar ali sentado, acomodado, como um "literato" "cumprindo suas oito horas de trabalho diário", e com isso enchendo o mercado editorial com um monte de termos áridos forçados e bombásticos... , Você já ouviu um político usando mil e quinhentas palavras para dizer uma coisa que ele poderia ter dito em apenas três palavras? Então, eu termino logo o trabalho, para não me aborrecer também.

SAROYAN: Você tenta normalmente ver tudo com clareza, sem pensar em palavras - apenas ver tudo do modo mais claro possível, e depois registrar o sentimento? Como em Tristessa, por exemplo?

KEROUAC: Parece que você está em um seminário de redação na universidade de Indiana.
SAROYAN: Eu sei, mas ...
KEROUAC: A única coisa que eu fiz foi sofrer junto com aquela pobre garota, e depois, quando ela caiu de cabeça e quase morreu... lembra quando ela caiu de cabeça?... ficou toda estourada e assim por diante. Ela era a garota índia mais maravilhosa que alguém já tinha visto. fndia, sabe, índia pura. Esperanza Villanueva. Villanueva é um nome espanhol, não sei de onde - Castela? Mas ela era índia. Ela tinha uma beleza assim, meio índia, meio espanhola. Uma beleza absoluta. Ela era puro osso, cara, só osso, osso e pele. E eu não contei no livro como foi que finalmente eu a peguei. Você sabia? Peguei mesmo. Consegui pegá-la. Ela disse: Psiu! Não deixe o senhorio ouvir ... Sabe, eu estou muito fraca e doente". Eu disse: "Sei disso, estou escrevendo um livro sobre você, fraca e doente".
PERGUNTA: Por que você não pôs esta parte no livro?

KEROUAC: Porque a mulher de Claude disse para não pôr. Ela disse que ia estragar o livro. Mas não foi uma conquista. Ela estava apagada como uma lâmpada. Com MM, quer dizer, morfina. É, eu tinha saído na batalha, para ela, do centro até a periferia, passando pela favela... E eu disse: "Trouxe o seu lance". Ela disse "Ssssssss!". E tomou uma picada... Aí eu disse: "Ah ... chegou a hora". E tirei a minha casquinha. Mas... bem, eu tinha o México como desculpa!
STELLA: Vem cá, gatinho! Ele saiu de novo.
KEROUAC: Ela era legal, você ia gostar dela. Seu nome verdadeiro era Esperanza. Você sabe o que significa isso?
PERGUNTA: Não.
KEROUAC: Quer dizer esperança, em espanhol. Tristessa quer dizer tristeza, em espanhol, mas seu nome mesmo era Esperança. Agora ela está casada com o chefe de polícia da cidade do México.
STELLA: Não é bem assim.
KEROUAC: Bem, você não é a Esperanza, se quer saber.
STELLA: Sei disso, querido.
KEROUAC: Ela era mais magra ... e tímida ... como um frango-d'água.
STELLA: Você disse que ela está casada com um dos tenentes, e não com o chefe.
KEROUAC: Ela está bem. Qualquer dia vou fazer uma visita a ela.
STELLA: Só passando por cima do meu cadáver .
PERGUNTA: Você escreveu mesmo Tristessa quando estava no México? Não escreveu depois?
KEROUAC: A primeira parte foi escrita no México, a segunda parte foi escrita ... no México. É isso aí. Primeira parte em 55, e a segunda parte em 56. Mas que importância tem isso? Não sou Charles Olson, o grande gênio!
PERGUNTA: Estamos apenas querendo os fatos.
KEROUAC: Charles Olson dá todas as datas. Você sabe. Conta como achou o cachorro na praia, em Gloucester, direitinho. Como viu alguém se masturbando na praia de... como é que chama mesmo? Praia Vancouver? Rio Dig Dog?... Praia do Cachorro. É, o nome é esse, praia do Cachorro. Muito bem, esta é a Cidade da Merda, na beira do Merrimac. Lowell é chamada de Cidade da Merda do Merrimac. Eu não vou escrever um poema chamado Cidade da Merda, e insultar minha terra. Mas se eu tivesse dois metros de altura poderia escrever qualquer coisa, não é?
PERGUNTA: Qual é seu relacionamento com outros escritores? Você se corresponde com eles?
KEROUAC: Eu me correspondo com John Clellon Holmes, cada vez menos, a cada ano. Estou ficando preguiçoso. Não dá para responder às cartas dos fãs, porque não tenho uma secretária para tomar os ditados, datilografar, arranjar os selos, envelopes, estas coisas... e eu não tenho nada a responder. Não vou passar o resto da vida sorrindo e apertando mãos e trocando elogios, como um candidato a um cargo público, porque eu sou um escritor - tenho que deixar minha cabeça sossegada, como Greta Garbo. Mesmo assim, quando eu saio, ou recebo hóspedes inesperados, a gente se diverte mais do que um bando de macacos.
PERGUNTA: Quais são as coisas que mais atrapalham o trabalho?

KEROUAC: Atrapalham... atrapalham. Perder tempo? Acho que são, principalmente, as atenções dadas a um escritor "conhecido" (note que eu não disse "famoso"), por parte de escritores em potencial, no fundo ambiciosos, que aparecem, ou escrevem cartas, ou telefonam, atrás de serviços que na verdade são a função da porra de um agente literário. Quando eu era um escritor jovem, desconhecido, batalhando, como dizem, eu ia à luta por minha própria conta. Eu bati perna na Madison Avenue durante anos, de editor em editor, de agente em agente, e, em nenhum momento, escrevi uma carta a um autor famoso, com livros publicados, pedindo a ajuda ou conselhos, ou, o céu é testemunha, tive a coragem de enviar meus originais a um autor, pobre coitado, que precisa correr para devolver o texto antes que seja acusado de roubar minhas idéias. Meu conselho aos jovens escritores é que arranjem um agente sozinhos, pode ser através dos professores da faculdade (como eu, que consegui meu primeiro editor graças a meu professor Mark Van Doren), e que batalhem por sua própria conta, virem-se... Portanto, o que atrapalha o trabalho são certas pessoas, nada mais. O que ajuda o trabalho é a solidão noturna, "quando o mundo inteiro está dormindo pesadamente".

PERGUNTA: Qual é, para você, a melhor hora, e o melhor lugar, para escrever?

KEROUAC: A escrivaninha no quarto, perto da cama, com bastante luz, da meia-noite até o amanhecer, com uma bebida quando se cansar, de preferência em casa, mas se você não tiver uma casa, transforme seu quarto de hotel, ou de motel, ou acampamento, em sua casa. Paz. (Pega a gaita e toca.) Puxa, eu sei tocar!
PERGUNTA: Como é escrever sob o efeito de drogas?

KEROUAC: O poema 230, de Mexico City blues, é um poema todo escrito sob o efeito da morfina. Cada verso do poema foi escrito com o intervalo de uma hora entre ele e o seguinte... com uma grande dose de morfina. (Encontra o livro e lê.)

               O amor é o cemitério populoso da podridão
Uma hora depois:
                  O leite derramado dos heróis

Uma hora depois:
              Destruição de lenços de seda pela tempestade de pó
Uma hora depois:
                  Carícia de heróis vendados presos nos postes

Uma hora depois:
                   Vítimas de assassinatos aceitas nesta vida
Uma hora depois:
                  Esqueletos trocando dedos e juntas.
Uma hora depois:
                 A carne trêmula dos elefantes da gentileza sendo despedaçada pelos abutres

(Vê como Ginsberg roubou isso de mim?)

Uma hora depois:

              Concepções de rótulas delicadas.

Repita isso, Saroyan.
SAROYAN: Concepções de rótulas delicadas.
KEROUAC: Muito bem. Medo de ratos espalhando bactérias. Uma hora depois: A Fria Esperança da Gólgota pela Esperança do Ouro. Re
pita.
SAROYAN: A Fria Esperança da Gólgota pela Esperança do Ouro.
KEROUAC: Muito frio. Uma hora depois: Úmidas folhas de outono contra o casco dos barcos. Uma hora depois: As delicadas imagens de cola do caval omarinho. Você já viu um pequeno cavalo-marinho no oceano? Eles são feitos de cola... você já cheirou um cavalo-marinho? Vamos, repita.
SAROYAN: As delicadas imagens de cola do cavalo-marinho.
KEROUAC: Você vai conseguir, Saroyan. Morte por longa exposição à desonra.
SAROYAN: Morte por longa exposição à desonra.
KEROUAC: Seres assustadores encantadores ocultando seu sexo. SAROYAN: Seres assustadores encantadores ocultando seu sexo.
KEROUAC: Pedaços da essência do Buda congelados e fatiados microscopicamente
Em Morgues do Norte
SAROYAN: Ei, não consigo dizer isso. Pedaços da essência do Buda congelados
e fatiados microscopicamente em Morgues do Norte.
KEROUAC: Pomos do pênis a ponto de semear.
SAROYAN: Pomos do pênis a ponto de semear.
KEROUAC: Mais gargantas cortadas que grãos de areia. SAROYAN: Mais gargantas cortadas que grãos de areia. KEROUAC: Como beijar minha gata na barriga
SAROYAN: Como beijar minha gata na barriga
KEROUAC: A suavidade de nossa recompensa.
SAROYAN: A suavidade de nossa recompensa.
KEROUAC: Ele é mesmo filho de William Saroyan? Que maravilha! Poderia repetir isso?
PERGUNTA: Nós deveríamos estar fazendo uma série de perguntas sérias e objetivas. Quando conheceu Allen Ginsberg?
KEROUAC: Primeiro conheci Claude. (Claude, um pseudônimo, também aparece em Vanity of Duluoz) Aí conheci Allen, e depois conheci Burroughs. Claude entrou pela saída de incêndio... deram tiros no beco. Estava chovendo, e minha mulher falou: "Lá vem o Claude". Então aparece aquele cara loiro, pela saída de incêndio, todo molhado. Eu disse: "O que está acontecendo? Que diabo é isso?". Ele diz: "Estão atrás de mim". No dia seguinte chega Allen Ginsberg, trazendo livros. Tinha dezesseis anos e orelhas de abano. Ele disse: "Bem, a discrição é a melhor medida do valor!". Eu disse: "Cala a boca, seu intrometido". No dia seguinte apareceu o Burroughs, vestindo um terno listado de algodão, junto com o outro cara.
PERGUNTA: Que outro cara?
KEROUAC: O cara que acabou dentro do rio. Era um cara de Nova Orleans, que Claude matou e jogou no rio. Ele o esfaqueou doze vezes, no coração, com um canivete de escoteiro. Claude, quando tinha catorze anos, era o menino loiro mais lindo de Nova Orleans. Ele entrou para os escoteiros... o chefe dos escoteiros era uma bicha ruiva gorda, que estudou na Universidade de St. Louis, se não me engano. Ele já tinha ficado apaixonado por um cara muito parecido com o Claude, em Paris. Esse cara caçou Claude pelo país inteiro. Por causa dele, Claude já fora expulso de Baldwin, Tulane e do curso de preparação em Andover... , É um caso de viadagem, mas Claude não é viado.
PERGUNTA: O que diz da influência de Ginsberg e Burroughs? Você alguma vez teve noção do marco que os três foram na literatura americana?
KEROUAC: Eu estava decidido a ser um "grande escritor", entre aspas, como Thomas Wolfe, sabe ... Allen vivia lendo e fazendo poesia ... Burroughs lia muito, e andava por aí olhando as coisas... Já escreveram, muitas e muitas vezes, sobre a influência que exercemos uns sobre os outros... Nós éramos apenas três personagens curiosos, na grande e curiosa cidade de Nova York, circulando pelas universidades, bibliotecas e cafés. Você vai encontrar um monte de detalhes em Vanity... em On the road, onde Burroughs é Bull Lee e Ginsberg é Carlos Marx... Em Subterraneans, onde eles são Frank Carmody e Adam Moorad, respectivamente, e em muitas obras mais. Em outras palavras, sem querer ser rude com você, que me deu a honra desta conversa, ando tão ocupado entrevistando a mim mesmo em meus livros, e gasto tanto tempo registrando estas auto-entrevistas, que não vejo motivo para gastar minha saliva e ficar repetindo todo ano, como faço há dez anos, para cada um que me entrevista, aquilo que já cansei de explicar nos próprios livros... (São centenas de jornalistas e milhares de estudantes.) Não tem sentido. Nem tanta importância. Se alguma coisa tem importância, é o nosso trabalho, e olhe lá. Eu não sinto orgulho do meu trabalho, ou do deles, ou de qualquer outro desde Thoreau e seus companheiros, talvez porque ainda estejam muito próximos para permitir uma avaliação. Notoriedade e confidências públicas em forma de literatura são maneiras de despedaçar o coração que ganhamos ao nascer, pode acreditar em mim.
PERGUNTA: Allen disse uma vez que aprendeu a ler Shakespeare... que nunca compreendeu Shakespeare direito até que você leu Shakespeate para ele.
KEROUAC: Foi porque, em uma vida anterior, eu era Shakespeare.
Foi como o Inverno, minha distância de ti?
O prazer do ano que passa rápido... que frio
senti? Que dias sombrios vi? Mas o Verão, em seu
final senhorial, deu uma cagada em meu pomar
E um porco após outro vem comer
e quebrar minha armadilha montesa quebrada, e minha ratoeira
também! E nesta hora, para terminar o soneto, é preciso que se diga, tara-tara-tara . . . . . . . . .. !!!!!!!

PERGUNTA: Isso é composição espontânea?
KEROUAC: Bem, a primeira parte é de Shakespeare ... e a segunda parte é ...
PERGUNTA: Você já fez algum soneto?
KEROUAC: VOU fazer um soneto espontâneo para você. Tem que ter o que, mesmo?
PERGUNTA: Quatorze versos.
KEROUAC: São doze versos, com mais dois versos a reboque. É onde a gente entra com a artilharia pesada.
         Então os peixes da Escócia viram seu olho
         e todas as minhas redes chiaram ...

Tem que rimar?

PERGUNTA: Não.
KEROUAC:
     Minhas pobres mãos ásperas baixam obUquas
      e vêem o papa, seu olho atormentado.
      E maníacos cabeludos jazendo ponto em meu quarto
      e ouvindo meu túmulo,
       o que não rima.

Sete versos?
PERGUNTA: Foram oito versos.
      E todos os organismos da terra rastejarão
       como cachorros através das tumbas do Peru
       e da Esc6cia, também.

Agora são dez.
       Mesmo assim não se preocupe, meu doce anjo,
       Pois tem tua herança
       Incrustada na minha.

PERGUNTA: Saiu muito bom, Jack. Como consegue isso?
KEROUAC: Não estudando métrica... como Ginsberg... Conheci Ginsberg ... voltei de carona da cidade do México, até Berkeley, e isso é muita estrada, cara, muita estrada. Cidade do México, através de Durango.... Chihuahua... Texas. Volto para Ginsberg. Vou até sua casa, e digo. "Ei, nós vamos tocar a música?" ... ele diz: "Você sabe o que eu vou fazer amanhã? Vou jogar uma nova teoria da versificação na mesa de Mark Schorer! Sobre os arranjos dáctilos de Ovídio!". (Risos) Eu disse: "Sai dessa, cara. Senta debaixo de uma árvore, esquece disso e toma um vinho comigo... e com Phil Whalen e Gary Snyder e todos os vagabundos de São Francisco. Não tente ser um grande mestre de Berkeley. Seja apenas um poeta embaixo de uma árvore... e nós vamos lutar e romper as amarras". E ele seguiu meu conselho. Ele se lembrou disso. Ele disse: "O que você vai ensinar ... está com a boca seca!". Eu disse: "Claro, acabei de chegar de Chihuahua. Puxa, como faz calor por lá! Você sai na rua e os leitões se esfregam na sua perna. Puxa!". Aí chegou o Snyder, com uma garrafa de vinho... e depois o Whalen, e veio o... como é o nome dele... Rexroth... e todos os outros... e nós fizemos o renascimento poético de São Francisco.
PERGUNTA: O que você tem a dizer sobre a expulsão de Allen de Colúmbia. Teve algo a ver com isso?
KEROUAC: Eu não... ele deixou que eu dormisse em seu quarto. Mas não foi expulso de Colúmbia por isso. Da primeira vez ele me deixou dormir em seu quarto, e o cara que dormiu no quarto com a gente era um Lancaster, das Brancas ou Rosas Vermelhas, da Inglaterra. Mas um sujeito entrou lá... o cara que tomava conta do andar, e ele pensou que eu estava tentando pegar o Allen, e Allen já havia escrito no jornal que eu não dormia lá porque tinha tentado seduzi-lo, mas era ele quem queria me pegar. Mas nós estávamos apenas dormindo mesmo. Depois disso ele arranjou um lugar para ficar... tinha mercadorias roubadas lá ... e levou uns ladrões para lá, Vicky e Huncke. Foram todos presos por causa das coisas roubadas, o carro capotou na estrada, os óculos de Allen quebraram, está tudo em Go, de Holmes. Quando tinha dezenove anos AlIen Ginsberg me perguntou se devia mudar o nome para Allen Renard. "Se você mudar o nome para AlIen Renard te dou um chute no saco! Deixe Ginsberg mesmo... " e ele deixou. Esta é uma das coisas que gosto em Allen. Allen Renard!!!

PERGUNTA: O que foi que reuniu vocês todos nos anos 50? O que havia para unir o pessoal da “geração beat”?

KEROUAC: Bem, geração beat foi só um nome que usei no original de On the road para descrever caras como Moriarty, que percorriam o país de carro, atrás de serviços avulsos, garotas e farras. Mais tarde foi aproveitado por grupos esquerdistas da costa oeste, e ganhou um sentido de "rebelião beat" e “insurreição beat" e outras bobagens. Eles só queriam se agarrar a um movimento qualquer da juventude, para atingir seus objetivos políticos e sociais. Eu não tive nada a ver com isso. Eu era um jogador de futebol, estudante bolsista da universidade, marinheiro da frota mercante, guarda-freios de trens e carga , preparador de sinopses, secretário... e Moriarty-Cassady era um cow-boy de verdade no rancho de Dave Uhl, em New Raymer, Colorado... Que tipo de beatnik é este?

PERGUNTA: Havia alguma noção de "comunidade" no meio da turma beat?
KEROUAC: A sensação de comunidade foi largamente inspirada pelas mesmas pessoas que já mencionei, como Ferlinghetti e Ginsberg. Eles vivem com a cabeça cheia de socialismo e querem que todo mundo viva em uma espécie de kibbutz frenético, com companheirismo e tudo mais. Eu era um solitário. Snyder não é igual a Whalen, Whalen não é igual a McClure, eu não sou igual a McClure. McClure não é igual a Ferlinghetti, Ginsberg não é igual a Ferlinghetti, mas todos nós gostávamos de tomar vinho, de qualquer maneira. Conhecíamos milhares de poetas e pintores e músicos de jazz. Não havia uma “turma beat”, como você falou ... O que me diz de Scott Fitzgerald e sua "turma perdida", ou de Goethe e da "turma de Wilhelm Meister"? O assunto é muito chato. Me passa aquele copo.

PERGUNTA: Bem, e porque eles se afastaram, no começo dos anos 60?
KEROUAC: Ginsberg começou a se interessar por política, pela esquerda... como Joyce, eu disse a mesma coisa que Joyce disse a Ezra Pound nos anos 20: “Não me amole com a política, a única coisa que me interessa é estilo". Além disso. eu estou cheio da nova vanguarda, e do sensacionalismo em ascensão. Estou lendo Blaise Pascal e fazendo anotações sobre religião. Eu gosto de andar com não-intelectuais, se quiser chamá-los assim, em vez de ter minha cabeça como vítima ad infinitum do proselitismo. Eles já começaram a crucificar galinhas em happenings. qual será o próximo passo? A crucifixão real de um homem... O grupo beat se dispersou. como você disse, no começo dos anos 60, foi cada um para seu lado, e o meu caminho foi este: uma vida caseira, como no começo, com um pequeno porre, de vez em quando, em bares das redondezas.
PERGUNTA: O que você acha do que eles estão fazendo agora? Da atuação política radical de Allen, dos métodos de cut-up de Burroughs?
KEROUAC: Eu sou a favor dos Estados Unidos, e o envolvimento com o radicalismo político aponta para o outro lado... Este país deu uma boa chance para minha família canadense, ou quase isso, e a gente não vê nenhum motivo para denegrir este país. Em relação aos métodos de cut-up de Burroughs, eu gostaria que ele voltasse às histórias extremamente engraçadas que costumava escrever, e às vinhetas admiravelmente enxutas de Naked lunch. O cutup não tem nada de novo, na verdade meu cérebro é uma arapuca que faz muitos cut-ups enquanto funciona... como faz o cérebro de todo mundo. quando fala, pensa ou escreve... Não passa de um velho truque Dada, um tipo de colagem literária. Apesar disso, ele consegue bons resultados. Gosto dele quando é elegante e lógico, e por isso não gosto do cut-up, que tenta nos ensinar que a mente é fragmentada. Claro que a mente é fragmentada, qualquer um pode perceber isso quando está alucinado, mas que tal uma explicação da fragmentação que possa ser compreendida no cotidiano?
PERGUNTA: O que você acha dos hippies e da onda de LSD?
KEROUAC: Eles já estão mudando, não saberia dar uma opinião. E não são todos que têm a mesma cabeça. Os diggers são diferentes... Não conheço nenhum hippie, de qualquer forma... Acho que eles pensam que eu sou um motorista de caminhão. E sou mesmo. Em relação ao LSD, é ruim para gente com um histórico de doenças cardíacas na família. (Derruba o microfone do banquinho... ergue-o.) Existe alguma razão para se ver algo de bom nesta mortalidade?
PERGUNTA: Desculpe, você poderia repetir o que disse?
KEROUAC: Você disse que tinha um pequeno fio de cabelo branco na barriga. Por que tem um fio de cabelo branco em sua barriga mortal?
PERGUNTA: Me deixa pensar um pouco nisso. Na verdade, é uma pequena pilula branca .
KEROUAC: Uma pequena pílula branca?
PERGUNTA: É boa.
KEROUAC: Dá para mim.
PERGUNTA: Melhor esperar até que a poeira baixe um pouco.

KEROUAC: Está bem. Esta pequena pílula branca é um fio de cabelo em sua mortalidade, que o aconselha e o adverte que você vai deixar as unhas crescerem bastante nas tumbas do Peru.
SAROYAN: Você se sente na meia-idade?
KEROUAC: Não. Olha, a fita está no fim. Quero acrescentar uma coisa. Pergunte o que quer dizer Kerouac.
PERGUNTA: Jack, diga de novo o que quer dizer Kerouac.

KEROUAC: Primeiro, Kairn K (ou C)-A-I-R-N. O que é kairn? É uma pilha de pedras. Como em Cornwall (Cornualha), kairn-wall. Muito bem, kern, ou K-E-R-N, quer dizer a mesma coisa que Kairn, Kern, Kairn. Ouac quer dizer língua de. Assim, Kerouac significa língua de Cornualha. Kerr, como em Deborah Kerr... quer dizer língua da água, porque Kerr, Carr etc. significa água. E Kairn quer dizer pilha de pedras. Não há língua em uma pilha de pedras. Kerouac. Ker = água, Ouac = língua de. E tem relação com o antigo nome irlandês, Kerwick, que é uma corruptela. E é um nome da Cornualha, que em si quer dizer Kirnish. E, de acordo com Sherlock Holmes, é tudo persa. Claro, vocês sabem que ele não é persa. Não se lembram quando Sherlock Holmes foi com o dr. Watson resolver um caso na antiga Cornualha? Ele resolveu o caso e depois disse: "Watson, a agulha! Watson, a agulha ... ". Ele disse: "Resolvi este caso aqui na Cornualha. Agora posso ter a liberdade de descansar aqui e pesquisar nos livros, que me dirão por que o povo da Cornualha, também conhecidos como Kernuaks, ou Kerouacs, são de origem persa. A aventura em que estou a ponto de me engajar" - ele disse então, depois de tomar sua dose - "está repleta de perigo, e não é adequada para uma dama jovem". Lembram disso?
McNAUGHTON: Eu me lembro.
KEROUAC: McNaughton lembra. McNaughton. Você acha que eu esqueceria o nome de um escocês?

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