Jeanette Rozsas
Entrevista concedida à Editora Geração, São Paulo,agosto de 2015
Geração Editorial: Você tem se dedicado bastante ao romance biográfico. Saberia dizer por que razão esse gênero híbrido nunca foi muito praticado pelos escritores brasileiros?
Jeanette Rozsas: Talvez pela dificuldade que apresenta e pelo tempo que consome. Para escrever um romance desse tipo, há que se aprofundar na bibliografia do biografado, ler sua obra de maneira sistemática, incluindo cartas, artigos e tudo quanto lhe diga respeito para, de-pois, numa montagem quase de quebra-cabeça, romancear a vida, mantendo sempre a maior fidelidade aos textos de referência.
GE: Quais são as dificuldades e os prazeres de se trabalhar com personagens reais e ficcionais, em romances de fundo biográfico?
JR: As dificuldades quase se ombreiam ao prazer. Você vai escrever sobre uma pessoa famosa, cuja obra e vida estão registradas em livros, em várias línguas, em vários países, ao mesmo tempo em que a coloca convivendo e conversando com personagens ficcionais, mantendo a viabilidade de diálogos e do contexto. É um exercício muito prazeroso, mas que exige cuidado e rigor. E muito estudo e pesquisa, sempre.
GE: Edgar Allan Poe e Franz Kafka já protagonizaram livros escritos por você. Agora temos Mary Shelley e seus amigos. O que essas personalidades literá-rias têm a nos ensinar?
JR: Eles nos ensinam como é sofrida e difícil a vida do escritor, como é importante amá-la a ponto de fazer renúncias, especialmente no caso de Poe, que tinha família para manter. É claro que tais personagens têm muito mais a nos ensinar do que a simples constatação que acabo de fazer. É preciso mergulhar em suas biografias para se ter uma noção de quanto é penoso e doloroso o processo de criação.
GE: O que a motivou a escrever sobre a luta obstinada da ciência e da medicina contra a morte biológica?
JR: Escolhi Mary Shelley ao acaso. Mas quando reli Frankenstein, que por sinal é um livro magnífico, me ocorreu como o assunto, mais do que nunca, se mantém atual. E pelos caminhos do acaso e da pesquisa fui estudar os princípios da alquimia, de onde se originou a química como a conhecemos. Os alquimistas pretendiam realizar a Grande Arte, isto é, dar vida, juventude e saúde eternas aos humanos, o que só seria alcançado se tivessem qualidades éticas, como bondade, honestidade e desapego material. Veja como o assunto é atual.
GE: Por meio da engenharia genética e da biotecnologia, hoje a vida está sendo criada e manipulada em laboratórios do mundo todo. O que a ética tem a dizer sobre isso?
JR: A discussão é das mais acaloradas. O conceito filosófico de ética varia no correr dos tempos. O que era ético há cem, 200 anos, deixou de sê-lo com as novas conquistas sociais. Para complicar, a ciência se desenvolveu com uma rapidez incrível, criando novos temas e suscitando dúvidas de até onde se pode avançar. Passou-se a estudar uma nova ciência, a bioética. Existe a Comunidade Científica Internacional que, em princípio, deveria marcar os limites. Mas como saber se os princípios éticos estabelecidos não estão sendo postos de lado pelos cientistas, no afã de criarem o que sempre foi o maior desafio ao homem?
GE: Elizabeth Medeiros está fascinada com os avanços da ciência e da medicina contemporâneas. Você também acredita que em breve a dramática questão da morte biológica será coisa do passado?
JR: Não entendo assim. Acho que os grandes passos da ciência poderão chegar até quase a formação da vida. Mas o princípio vital ainda é e continuará sendo terreno reservado a Deus ou alguma força que equivalha ao divino. Este é meu ponto de vista, já que não possuo conhecimento científico para embasar a resposta.
GE: Você concorda com Francis Fukuyama, quando ele diz: “Se casais endinheirados, por meio da engenharia genética, tiverem a oportunidade de aumentar a inteligência de seus filhos, assim como a de todos os seus descendentes, teremos não apenas um dilema moral, mas uma guerra total de classes”?
JR: Como concordar ou não com uma hipótese? Só posso dizer que hoje já podemos ver e rever mutações genéticas, selecionar embriões, escolher o sexo, interferir em vários processos, clonar animais. Mesmo que a possibilidade fosse aberta a todos, independentemente de dinheiro, seria bom para a humanidade a planificação, eliminar a diversidade numa sociedade? Sim, tudo poderia acontecer, inclusive uma guerra de classes ou um mundo de seres superdotados. Prefiro que o assunto seja objeto de um bom livro de ficção científica,
x.x.x
Entrevista dada ao www.digestivo Cultural.com.br em 10/08/2009
Para mim, o presente demonstra a tremenda contemporaneidade de Franz Kafka ? a terrível visão que ele, com sua sensibilidade de artista, teve do futuro. Afinal, o que são os campos de concentração senão a materialização do pesadelo kafkiano? E as guerras que se seguiram (e estão aí, até hoje)? As faxinas étnicas, a fome, a violência, o fundamentalismo (venha de onde vier)... ? enfim, toda essa barbárie que nos rodeia e apavora?"
1. Kafka morreu quase anônimo, embora sua literatura o tenha consagrado como um dos maiores autores do século XX. Na sua atual biografia romanceada de Kafka, como fez para harmonizar o homem de vida pacata com o escritor de inesgotável imaginação?
A vida pacata e burguesa de Kafka estava só no exterior... Mas que imenso mundo dentro de sua cabeça! Algo que o torturava e que ele só extravasava por meio da literatura. Sua vida interior era tão densa e criativa que gerou incontáveis estudos. À medida que estudamos Kafka, mais e mais nos enredamos nos seus diversos aspectos: psicológico, social, religioso etc. Sua obra não cabe em nenhuma escola literária ou "categoria". Ele abrange e supera todas... Cada vez que relemos um conto ou romance, novos significados se revelam. É um trabalho sem fim, e apesar de ter lançado recentemente Kafka e a marca do corvo, não consigo parar de estudar o autor... Quase tenho vontade de reescrever meu livro!
2. Modesto Carone, nosso melhor tradutor de Kafka, diz que, para alguns estudiosos da produção kafkiana, o escritor transformou a opressão que sentia do pai na "burocracia opressora" de romances como O Processo. Carta ao Pai é um exagero literário ou valeu a pena, em certo sentido, sofrer para escrever como Kafka?
No meu entender, a burocracia opressora na vida do autor vem desde as normas impostas pela família, especialmente o pai, e também pelas escolas rígidas, pela faculdade de Direito (que seguiu contra a vontade), pelo trabalho (para o qual não se sentia vocacionado, apesar de desempenhá-lo com muita eficiência), pela necessidade de se casar e de constituir família (em oposição ao medo do compromisso) ? enfim, pela "vida regrada" que se esperava de alguém da sua classe social... Tudo isso lhe causava ojeriza. Para a nossa sorte, Kafka transpôs essa ojeriza para a literatura, produzindo obras como O Processo e tantas outras...
Já Carta ao Pai é um monumento literário, uma autobiografia, sem que, aparentemente, esse fosse o objetivo do autor... É um grito desesperado, um desabafo tormentoso, de um filho em busca do pai ? mas escrito de forma brilhante. (Peço desculpas pela adjetivação excessiva, mas ao falar de Kafka só penso em adjetivos e superlativos!)
3. Eu considero que Kafka teve uma existência realmente sofrida, para não dizer trágica, embora tenha produzido como um deus... E você vem de outro livro trabalhoso, que foi Morrer em Praga, sobre um amor, igualmente, trágico... O que essas duas realizações te trouxeram em termos de amadurecimento, como escritora?
Morrer em Praga é um livro também biográfico baseado na vida de J.B. Gelpi (co-autor), que forneceu dados, e escritos em estado bruto, sobre suas experiências desastrosas as quais culminaram na morte de uma jovem tcheca... Eu transformei essa história num romance. Foi, sem dúvida, um trabalho enriquecedor, pois escrevi em primeira pessoa, como se adotasse a persona do biografado que, por sinal, teve uma existência conturbadíssima...
Mas Kafka foi uma experiência única: um mergulho na angústia, na depressão, na culpa, nas frustrações, na doença e, principalmente, na obra de um dos maiores escritores de todos os tempos. Ninguém passa impunemente três anos estudando, e escrevendo, sobre Kafka. Se o trabalho é feito com dedicação e seriedade, como no meu caso, o amadurecimento vem por si só...
4. Kafka dizia preferir os livros perturbadores. Numa época como a nossa ? em que os consumidores querem ser adulados o tempo todo (vide a autoajuda) ?, como apresentar, principalmente no Brasil, um autor que não tinha uma visão esperançosa do mundo e que, com sua percepção bastante aguda, previu horrores como o holocausto?
Se você observar, nas bancas de revistas, verá o olhar penetrante e inconfundível do Gênio de Praga em títulos de revistas, e de livros, voltados a literatura. É bem verdade que grande parte dos leitores num País em que pouco se lê prefere literatura "ligeira", best-sellers ou mesmo fórmulas de "bem viver", ditadas por um guru qualquer... Porém, o número de livros que vêm sendo publicados sobre Kafka inclusive em edições populares nos faz pensar que, felizmente, há mais coisas entre o céu e a terra... Para mim, isso demonstra a contemporaneidade de Kafka, da terrível visão que ele, com sua sensibilidade de artista, teve do futuro. O que são os campos de concentração senão a materialização do pesadelo kafkiano (como digo, aliás, na introdução do meu livro) E as guerras que se seguiram (e estão aí, até hoje) As faxinas éticas, a fome, a violência, o fundamentalismo (venha de onde vier) enfim, toda essa barbárie que nos rodeia e apavora.
5. Admiro sua disposição em participar de eventos, divulgando, incansavelmente, seus livros e suas realizações como escritora. Kafka morreu quase inédito, e não iríamos conhecê-lo se não fosse por Max Brod, amigo que o desobedeceu (e que, justamente, não queimou sua obra). Kafka, se vivesse hoje, teria de mudar seu temperamento, ou morreria quase inédito, mais uma vez?
Se um escritor hoje não se dispuser a participar de eventos de divulgação de sua obra, morrerá desconhecido junto com todo o trabalho e a frustração de ver naufragar um projeto de vida...
Quando se escreve, se quer compartilhar naturalmente o resultado. (Assim como em qualquer arte.) Nunca vi um pintor que escondesse um quadro ou um músico que tocasse apenas no quarto. (A menos que tenha muito medo da crítica, ou do julgamento dos demais...)
O mesmo acontece com a escrita: tanto trabalho é feito na elaboração de um livro. Primeiramente pela necessidade de escrever (e, óbvio, pelo prazer pessoal). Mas, depois, porque a obra tem de seguir seu caminho: sair das mãos do criador e ganhar vida independente.
Kafka, por exemplo, ficava frustradíssimo quando não conseguia publicar um livro! E só teve a sexta parte de sua obra editada em vida... Mesmo assim com a ajuda de Max Brod, que o apresentava a editores... Ele procurava divulgar sua obra, sim! Tanto é que fazia "leituras públicas" com certa regularidade causando, inclusive, mal-estar na plateia... Quando leu Na Colônia Penal, algumas senhoras se retiraram, e pelo menos uma delas desmaiou...
6. Vi você na televisão, falando sobre Morrer em Praga, com a participação de João Baptista Gelpi, que te chamou para escrever o livro a quatro mãos. Neste seu Kafka, você frisa que quis ser totalmente fiel à história, apesar da disposição em romanceá-la. Descrever a realidade é sempre um bom desafio para um ficcionista?
Escrever biografias, sim especialmente quando se trata de um autor como Kafka. A ideia de fazer um "romance biográfico" foi um desafio que me custou muitas noites de sono.
Teses, biografias e estudos sobre o autor existem aos milhares, mas escrever um romance sobre sua vida, sem falsear os fatos, acho que o meu é o único caso...
Sendo um romance, tinha de haver um narrador e, claro, diálogos. Mas eu não queria colocar quaisquer palavras na boca de Kafka... Até que me ocorreu montar situações na qual ele falava diretamente com sua família, com seus amigos, parentes etc. usando o que já constava do seu vasto material epistolar, nos Diários e na recorrente Carta ao Pai.
(Até mesmo as expressões que o pai costumava usar, para intimidar os filhos, e os empregados, foram reproduzidas em forma de falas...)
O compromisso com a realidade, ao se fazer uma biografia, cresce na proporção da importância do biografado. Você fica com pouco espaço para a "invenção"... Já na ficção pura, a liberdade é total...
7. Você já deve ter pensado nisso, mas eu gostaria de te perguntar mesmo assim... Morrer em Praga e o novo Kafka têm, ainda em comum, a mesma cidade. Você acredita que Praga inspirou, de alguma forma, a produção bastante desencantada de Kafka, assim como, de alguma forma também, serviu de cenário para o amor trágico de J.B. Gelpi?
Na produção da obra kafkiana, sem dúvida Praga teve um papel fundamental. A cidade e o autor se confundem, se imbricam, e ele não consegue fugir daquela "mãezinha que tem garras". Ainda que em nenhuma de suas obras ele nomeie a cidade, Praga está presente no clima quase fantasmagórico de sua produção. Numa carta a Oskar Pollak, um de seus maiores amigos, refere-se a "pontes escuras", "santos iluminados fracamente", "céus cinzentos", "igrejas com torres sombrias" e a uma pessoa que se debruça sobre o parapeito no final do dia, olhando a água, com as mãos apoiadas em velhas pedras... Onde seria isso senão em Praga?
Além do mais: há toda a contradição de uma cidade tcheca, de fala alemã; um país sob o domínio do decadente Império Austro-Húngaro, onde nacionalistas buscam a liberdade; um bairro judeu, do qual os judeus procuram se afastar. (Essas ambiguidades se expressam claramente na obra do autor.)
Já no caso do J.B. Gelpi, acho que Praga pode ter contribuído de modo indireto para o final trágico: era uma cidade recém-saída do regime comunista, triste e escura sem dúvida, um palco propício para uma história de amor e morte. Mas não acho que ela tenha sido preponderante...
8. Nessa sua disposição de trabalhar, como escritora, em todas as mídias, você está na internet, participa de eventos literários e, inclusive, lançou um audiolivro. Queria que dividisse, conosco, suas impressões sobre novos "leitores" (eletrônicos), como o Kindle, e esta nova fase do "livro eletrônico". Qual a sua expectativa em relação às novas mídias?
A minha disposição em participar de todas as mídias é bastante relativa... Acontece que as novidades estão aí e precisam ser experimentadas! É como o computador: no começo, foi para mim quase um mal necessário; hoje, é uma paixão (não imagino como tenha vivido tanto tempo sem...).
No mais, confesso que não me atualizei muito para além da internet e do audiolivro. Uso (pouco) o Twitter, o Facebook e mesmo o Skype apenas para bater papo com os amigos e, não, como instrumento de trabalho...
Ainda sobre o audiolivro, foi uma experiência boa pois o meu audiolivro foi o primeiro e não sei se o único a ser totalmente dramatizado no Brasil... (Cada personagem foi interpretado por um ator diferente etc.)
Contudo, para mim, o carro chefe é, e sempre será, o livro em papel que tem cheiro, gosto, peso...
9. Sempre lembro que você é uma "cria" das oficinas literárias, onde trabalhou seus primeiros textos e onde começou a publicar. Ao mesmo tempo, carrega uma bagagem de produção de textos, mesmo que técnicos, por ser advogada. O que aconselharia, em termos de formação e de prática, a um escritor que deseja começar ou começar a publicar?
Leia, leia muito. E, se quiser escrever mesmo, compre um lápis vermelho para cortar os excessos do texto. Reescreva sempre. Ah, faça também um "exercício de paciência e humildade", ao se deparar com a dificuldade de ver seu livro publicado... Aceite críticas e sugestões (se pedir a opinião de outra pessoa) ou, ao menos, pense a respeito (antes de "fincar o pé" no que você escreveu)...
Por fim, tenha uma outra profissão que garanta a sua subsistência ? pois de literatura (assim como de amor) ninguém vive, exceto um ou outro...!
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