Jorge Amado
Hoje, 10 de agosto, dia em que Jorge Amado completaria 98 anos se vivo estivesse, reproduzo uma belíssima entrevista autobiográfica, talvez a mais importante que o autor de “Mar Morto” concedeu em toda sua vida. Ocorrida em julho de 1981 ao jornalista Antônio Roberto Espinosa para o caderno Literatura Comentada da Editora Abril.
LITERATURA COMENTADA - Há meio século, Jorge Amado, você lançou seu primeiro livro. Em setembro de 1981 comemora-se o cinqüentenário de O País do Carnaval. Esta entrevista será incluída num livro dedicado especialmente a você, que será lançado no dia 10 de agosto, exatamente o dia em que você estará completando 69 anos de idade. Nossa intenção é fazer uma entrevista biográfica. Mas, numa entrevista de 1980, à revista francesa Lui, você disse que não gostava de falar de si mesmo. Por quê?
JORGE AMADO - É verdade, não gosto. Tem gente que adora falar de si próprio, alguns porque não têm importância nenhuma e falam para se dar importância, e outros, que são importantes, falam porque gostam. Agora, eu não sou importane e não gosto de falar sobre mim; aliás, não gosto nem de ouvir falar a meu respeito: fico encabuladíssimo, fico assim sem jeito... eu não gosto, é uma maneira de ser.
LC - Portanto, é normal que o público tenha uma grande curiosidade sobre o homem Jorge Amado. Em grande parte, os leitores de Literatura Comentada são jovens que não viveram tudo isso e querem saber suas opiniões, suas versões. Insistindo: essa entrevista tem um objetivo basicamente biográfico.
JA - Está bem, concordo. Estou às ordens. Toca o bonde!
LC - Para começar, você poderia falar um pouco sobre seu pai, João Amado de Faria, e sobre dona Eulália Leal, a dona Lalu, sua mãe.
JA - Eu quero falar um pouco também sobre o meu nascimento porque há uma coisa controvertida. Há notícias diferentes, erradas. Há muitíssimos anos, na Enciclopédia Larousse, da França, existe um verbete que me dá como nascido em Piranji. Piranji é uma coisa que não existe mais. Deve existir outro no Brasil, porque aquele teve que mudar de nome, passou a ser Itajuípe. Outro dia, num texto que escrevi para uma revista que dedicou um número a mim, a Vogue, eu disse que não nasci em Piranji, ao contrário, Piranji eu vi nascer. Eu assisti ao seu nascimento, desde as primeiras casas que foram construídas. Em geral, me dão como nascido em Ilhéus, o que é muito compreensível, pois eu fui pra Ilhéus com um ano, ou, para ser exato, com um ano e cinco meses, pois fui pra lá em janeiro de 14 e nasci em agosto de 12. Mas eu nasci realmente numa fazenda de cacau que meu pai estava montando, perto de um arraial chamado Ferradas, distrito do município de Itabuna. O nome da fazenda era Auricídia... hoje, o arraial cresceu, chegou lá, chegou até a casa onde nasci. Aliás, faz poucos anos, eu estive lá e a população foi muito generosa comigo, muito cordial, todo mundo me esperando na rua... Sou nascido em Ferradas, distrito de Itabuna, sou itabunense, ou seja, sou um grapiúna da região do cacau. Mas Ilhéus também é minha cidade no sentido de que é o lugar onde eu vivi a minha infância - a infância, um tempo muito importante na vida da gente. E também a minha adolescência, as férias. Ilhéus é uma cidade extremamente ligada à minha vida, como todo o sul da Bahia, toda a região do cacau. Itabuna fica a 25 quilômetros de Ilhéus. Quando estava em Ilhéus, ia pra Itabuna sempre. Quando morreu meu irmão Jofre, nós fomos pra Itabuna porque minha mãe não quis ficar em Ilhéus. Passamos lá um ano e tanto, foi quando nasceu meu irmão Joelson, que é médico e mora em São Paulo. Dos três irmãos, o único nascido em Ilhéus é James. Assim, eu sou, ao mesmo tempo, um menino de Itabuna e Ilhéus, como o Adonias Filho, que é nascido em ltajuípe, o antigo Piranji, e criado em Ilhéus.
LC - Seu pai era fazendeiro, pioneiro do cacau ...
JA - Meu pai foi um homem que viera muito cedo de Sergipe, da cidade de Estância. Viera no início do século, quando das grandes lutas envolvendo o cacau, ele se envolveu nessas lutas, participou delas...
LC - Lutas pela posse das terras?
JA - A terra não era de ninguém, era mata, ele veio para ocupar a mata. A luta era para ver quem ficava com as melhores terras para plantar cacau. Meu pai plantou essa fazenda Auricídia - aliás, a saga que está contada em Terras do Sem Fim - e, bastante tempo depois, casou-se com minha mãe, dona Eulália Leal, que também era de uma família de desbravadores da terra.
LC - Em conseqüência você acabou fugindo. Conta essa fuga.
JA - Quando terminei o segundo ano, pedi a meu pai que não me mandasse mais pro colégio interno. Como eu estava indo bem na escola, o Vieira era o melhor colégio de Salvador e meu pai podia pagar, ele disse que sentia muito, mas como eu já estava lá, queria que eu continuasse. Cheguei aqui pra ir pro Vieira e o meu tio Alvaro, esse personagem formidável da minha infância, me levou até a porta do colégio e me deixou lá com o dinheiro pra pagar as despesas. Bem, aí ele foi para um lado, eu fui pro outro e fugi. Eu tinha menos de treze anos naquela época. Foi uma coisa muito importante pra mim essa fuga.
LC - E foi pra onde?
J A - Eu atravessei todo o sertão da Bahia até Sergipe. É uma viagem hoje, você pode fazer em horas... tão poucas horas, mas, naquele tempo, eu levei dois meses para atravessar, dois meses vagabundando. Pelo caminho, eu fui parando, fazendo amizades. Meu dinheiro acabou logo. Gastei rapidamente o dinheiro que tinha, logo no início da viagem. Comprei uma coleção de revistas de cinema num sebo de livros. Mas consegui atravessar e viver sem nenhuma dificuldade. Cheguei até Itaporanga, onde vivia meu avô, o velho Zé Amado, pai de meu pai. E o curioso é que meu pai deixou.
LC - Ficou acompanhando à distância?
JA - À distância. Pronto, naturalmente para intervir se qualquer coisa de pior me passasse, mas ele deixou... Depois, quando chegou junho, as férias de São João, meu pai pediu pra tio Álvaro ir me buscar. Eu vim certo que ia levar uma surra, mas quando cheguei em casa ele só perguntou por que tinha fugido. Eu disse que não queria mais estudar. Pois muito bem, ele respondeu, você vai pra fazenda.
LC - Foi plantar cacau?
JA - Eu fiquei lá seis meses. No fim do ano, ele me perguntou se queria voltar a estudar e eu disse que queria. Ele me mandou pro ginásio Ipiranga, um internato que fica aqui pertinho. No Ipiranga, fui colega do Adonias Filho. No Vieira, fui contemporâneo de muita gente depois importante, como o Mirabeau Sampaio, meu amigo até hoje, o Giovanni Guimarães, o Paulo Peltier de Queirós, o Antônio Balbino, que foi governador da Bahia, o jurista Maximiano da Mata Teixeira, o poeta Hélio Simões, o jornalista Jorge Calmon.
LC - Só que, apesar de tudo, você acabou voltando a um internato.
JA - O Ipiranga era um internato muito mais brando. A gente pulava o muro todas as noites e ia pras casas de putas, ia pras festas, para a rua Carlos Gomes, pro beco de Maria Paz ... eu fui amigado com uma rapariga chamada Benedita e então, toda noite, à meia-noite, pulava o muro e ia ficar com ela. O Ipiranga era muito mais livre que o Antônio Vieira. Isaías Alves de Almeida era um homem que deixava o barco correr. A meu ver, tinha mais sensibilidade pra tratar com os jovens do que os jesuítas hoje não, mas, naquela época, os padres eram mais presos, mais conservadores. Um grupo de internos pulava o muro do colégio todas as noites e saía para a vida. Passei lá um ano mas, no fim, já tinha liberdade de sair sem precisar fugir. No outro ano, já estava com catorze anos de idade, não voltei mais para o internato, cumprira minhas primeiras prisões.
LC - Em 1927, ao voltar pra Salvador, você fica externo do colégio e publica um poema?
JA - Ah! publicado na Luva, uma revista considerada importante. O título era Poema ou Prosa: Uma sátira aos poemas da época, poema-rosa, prosa-poema... é uma coisa assim, uma espécie de gozação, um certo tipo de poesia modernista. Bem, ao voltar, eu comecei a viver a vida do povo da Bahia. Para mim, foi a coisa mais importante de todas. Eu tinha catorze anos e comecei a trabalhar em jornal, primeiro no Diário da Bahia, depois num jornal chamado O Imparcial - onde eu viria a trabalhar de novo, em 43, depois de ser solto pela polícia do Rio. Como eu dizia, em 27 comecei a trabalhar em jornal e a viver misturado com o povo da Bahia. Era o pior estudante do mundo... vivia num casarão, no Pelourinho. Hoje tem uma placa no sobrado onde habitei, atualmente um hotel. Uma placa, falando de Suor, que eu iria escrever em 34. Eu morava naquele casarão, numa água-furtada, nos altos. Quando morei lá, via aqueles ratos que subiam escada acima ... era cada rato deste tamanho, um negócio terrível! Mas eu não achava terrível na época, eu era um garoto. Comia nos botecos mais incríveis, porque não tinha dinheiro.
LC - Doenças venéreas já com catorze, quinze anos?
JA - É, eu tinha uma vida muito ativa e misturada: festinhas populares, casas de raparigas. Posso dizer que a minha educação, em grande parte, se processou nas casas de raparigas.
LC - Enfim, para um adolescente dos anos 20, você tinha uma boa vida?
JA - E tem mais. O pessoal dos saveiros, por exemplo, era todo meu amigo. Eu saía, tomava um saveiro, ia pra Cachoeira, Valença, Porto Seguro, Maraú. Eu tinha uma vida muito livre, admirável no sentido de gostosa, de agradável.
LC - No início dessa entrevista, você disse que adquiriu consciência do problema racial em Salvador, em 1927...
JA - Foi quando eu passei a viver misturado com o povo da Bahia que o problema racial começou a me afetar. Foi sobretudo a minha relação com o povo dos candomblés, vendo a perseguição terrível de que eram objeto os cultos afro-brasileiros. Mas eu nunca tive dúvidas: o problema racial é conseqüência do problema social. Não existe um problema racial isolado do contexto social. Se você isolar, vai errar na apreciação do problema e na busca das soluções. A solução não é você botar os pretos e os brancos a se matarem entre si.
LC - A solução é fazê-los dormir uns com os outros?
JA - Exato. Não há outra solução para o problema de raça no mundo senão a mistura. Não há outra e, se alguém tiver, que me apresente... quero ver! Não é um racismo diferente, seja racismo preto, seja racismo árabe ou judeu, que vai acabar com o problema. Você não acaba com o racismo botando racismo contra racismo. Isso é uma coisa idiota, que está em moda, mas é uma moda superficial... é como uma dessas erupções que se tem na pele, brotoejas, coceiras, que acabam passando.
LC - Você já fazia literatura nesse período?
JA - Subliteratura. Naquele tempo, as idéias viajavam em navio de carga e levavam anos pra chegar. O Modernismo, que explodiu em São Paulo em 22, levou cinco, seis anos pra chegar aqui... chegou por volta de 26, 27, com o primeiro livro de Eugênio Gomes, o poema Moema, com o primeiro livro de Godofredo Filho, A Balada de Ouro Preto. Por volta de 27, formaram-se aqui três grupos de jovens: o grupo Arco e Flecha, que publicava a revista Arco e Flecha, o Samba, que tinha a revista Samba, e a Academia dos Rebeldes, que editava a revista Meridiano. O Arco e Flecha tinha como guru o Carlos Chiacchio, crítico literário do jornal A Tarde, e reuniu pessoas como Pedro Aguiar, Hélio Simões, Carvalho Filho, o próprio Godofredo - Godofredo era mais velho -, Queirós Júnior e Eurico Alves. O nosso grupo era a Academia dos Rebeldes, de uma rebeldia arretada. Na Academia estavam pessoas que depois foram literariamente muito importantes: o contista Dias da Costa, o grande ensaísta e etnógrafo Edison Carneiro, o grande poeta Sosígenes Costa, João Cordeiro, Walter da Silveira, Clóvis Amorim, Aidano do Couto Ferraz. Nosso guru era um homem chamado Pinheiro Viegas, poeta panfletário muito importante. Era um homem de quase oitenta anos, que é um pouco o Pedro Ticiano do meu primeiro, livro, O País do Carnaval. Eu e o Edison Carneiro vivíamos juntos o dia inteiro. Nós, mais o Dias da Costa, íamos juntos pras casas de mulheres, vivíamos comendo no mercado das Sete Portas ... comendo. sarapatel à meianoite na feira de Água de Meninos. Brigávamos uns grupos com os outros, mas todos queríamos a mesma coisa, a renovação literária e modificações na sociedade. Era o tempo do "tenentismo". Nós éramos muito ligados à vida popular. O Edison já começava seus estudos de etnografia, de antropologia social. Com ele e Artur Ramos, comecei a freqüentar os candomblés. Outro dia, a Menininha de Gantois recordava que ela me conhece há mais de cinqüenta anos, daí pra lá... ela jovem mãe-de-santo, hoje está com 84 anos, devia ter uns, trinta anos. Nessa época me tornei amigo do pai-de-santo Procópio. Foi ele quem me deu o primeiro título de candomblé, Ogan de Oxóssi. Procópio foi o pai-de-santo que mais perseguição sofreu da polícia por causa da questão religiosa. Ele tinha as costas marcadas pelas torturas. A questão religiosa, racial, era muito mais intensa do que hoje... muito mais violenta. A polícia chegava, invadia, prendia. Eu marquei isso, primeiro em Jubiabá, depois em Tenda dos Milagres.
LC - Aliás, você é um dos doze Obás da Bahia, não?
JA - Sou, o Carybé é outro e o Caymmi também. E não é por acaso. Tenho vários títulos, um título dado por Joãozinho da Goméia, Ogan de Iansã no candomblé da Goméia. Joãozinho foi meu amigo e seu caboclo Pedra Preta foi herdado pela minha amiga Mirinha do Portão, que dançou tão bonito outro dia na festa do povo pra Carybe. Essa gente toda é minha amiga, eu sou um deles. Não é por acaso que tenho esses títulos. Desde criança eu vivo misturado com o povo dos candomblés. Em 43, quando a polícia do Rio me soltou e me forçou a viver em Salvador - e eu vivi aqui até 44, dois anos -, não fiz outra coisa senão ir à polícia buscar as armas de santo e as coisas todas dos candomblés que a polícia invadia, tomava os emblemas sagrados e os levava. Eu ia lutar para tirar meus amigos da cadeia ... Fui amigo de Procópio, de Aninha, a mãe-de-santo Aninha, uma figura extraordinária de mulher. Quando ela morreu, em 38, o enterro dela foi acompanhado por 5 mil pessoas, um enterro nagô, magnífico.
LC - Logo depois disso, Jorge, você se ligou ao Partido Comunista, um partido marxista, materialista ...
JA - Em Tenda dos Milagres, que é o romance meu de que mais gosto, a certa altura, o professor de medicina pergunta a Pedro Archanjo como é que ele, sendo um materialista, conciliava isso com sua atividade no candomblé. Pedro Archanjo respondeu que "o meu materialismo não me limita". Eu sou materialista, mas meu materialismo não me limita. Então, se o povo dos candomblés me dá um título e eu aceito, eu tenho que cumprir as obrigações desse título. Senão, eu não estaria tendo com eles o mesmo tipo de relacionamento, de amizade que eles têm comigo. Por isso, quando entro no Axé Opô Afonjá, com meus colares, faço tudo o que tenho que fazer e faço exatamente tudo com o maior prazer... Eu não poderia escrever sobre a Bahia, ter a pretensão de ser um romancista da Bahia se não conhecesse realmente por dentro, como eu conheço, os candomblés, que é a religião do povo da Bahia.
LC - Em 1935, você lançaria Jubiabá, em 1936 publicaria Mar Morto ... mas no começo de 1936 foi preso.
JA - No começo de 36. Em novembro de 35, no dia 27, houve o levante do III Regimento de Infantaria. Fomos presos vários intelectuais... Eu acho que alguém que foi preso antes, foi espancado e falou. Graciliano Ramos foi preso em Maceió e levado pro Rio. Eu fiquei preso dois meses na Polícia Central. Vários intelectuais foram presos na época, Santa Rosa, Caio Prado Júnior, Di Cavalcanti, Hermes Lima, Eneida, Castro Rebelo, Aporelly, Álvaro Moreyra etc.
LC - Nunca te interrogaram?
JA - Nunca me interrogaram. Fiquei lá um bocado de tempo... era uma prisão muito ruim por ser na Policia Central, com presos sendo torturados à noite. Eu não fui torturado, mas estive preso com gente que foi terrivelmente espancada.
LC - Você atribui sua prisão a seus livros?
JA - Eu tive uma militância grande na Aliança Nacional Libertadora... O Congresso Juvenil Proletário-Estudantil... não me lembro mais o nome, de 34, foi convocado com três assinaturas: a minha, a do Carlos Lacerda e a de um rapaz cujo nome não recordo, que era secretário da Juventude Comunista.
LC - Só um parêntesis: em outras entrevistas, em artigos e verbetes de enciclopédia, consta que você só entrou no Partido Comunista em 1945.
JA - Meu contato com o Partido é anterior a essa época. Em 45 minha militância fica pública. Eu era ligado à juventude. Naquele tempo, havia Juventude Comunista.
LC - Como foi sua libertação?
JA - Em certo momento me botaram em liberdade. Nunca me ouviram. Fiquei dois meses lá, jogado. Saí, fui pra Sergipe, a cidade em que meu pai nasceu, Estância, e lá terminei Mar Morto. Em 37, a coisa tinha melhorado um pouco, acabara o estado de guerra, a candidatura de Zé Américo estava lançada. Aí eu viajei por toda a América Latina: Uruguai, Argentina, Chile, México ... onde conheci Orozco e Rivera, escritores como Alfonsus Reves. E depois fui até os Estados Unidos, onde conheci Michael Gold, vários escritores, John dos Passos.
LC - Você voltou pouco antes do golpe do Estado Novo?
JA - Eu cheguei a Belém em outubro. O Dalcídio Jurandir foi me ver às escondidas e disse pra eu sair imediatamente do Brasil que ia haver um golpe. Ele achava que eu seria mais útil no exterior, pra gritar contra o golpe lá fora.
LC - Capitães da Areia tinha sido lançado em setembro, não?
JA - Tinha saído e estava sendo apreendido. Em São Paulo, na Bahia, estava sendo queimado em praça pública. Em Salvador tem até ata da queima... 1 694 exemplares dos meus romances queimados em praça pública por ordem do comando da 6ª. Região Militar.
LC - Em 1945 você presidiu a delegação baiana e foi vice-presidente do Primeiro Congresso dos Escritores.
JA- O Congresso foi a primeira demonstração pública contra o Estado Novo. Aqui na Bahia eu escrevi São Jorge dos Ilhéus e a primeira versão do Guia da Bahia de Todos os Santos, que teve sucessivas modificações para se atualizar. E escrevi uma peça de teatro, “D. Amor do Soldado”, pra Bibi Ferreira, que colocou em minha mão um cheque de 20 contos, um dinheiro aloprado naquele tempo... não resisti, aceitei e escrevi; só que quando terminei, ela já não tinha a companhia teatral. Ai fui pra São Paulo, passei um ano em São Paulo, aceitei mudar porque o Partido decidiu que eu devia ficar lá. Fui diretor do jornal do Partido, o Hoje, junto com o Caio Prado, o Clóvis Graciano...
LC - E acabou sendo deputado por São Paulo à Assembléia Constituinte?
JA - Eu não queria ser candidato, aceitei por decisão do Partido e acabei eleito. O Partido disse: "Você se candidata e depois renuncia". Mas eu fui muito votado, fui um dos quatro eleitos, o mais votado foi o José Maria Crispim, o segundo foi o Osvaldo Pacheco, eu fui o terceiro e o quarto, um ferroviário, não lembro o nome dele ... Eu conheci muita gente do povo aí, nos comícios ... em Santos eu tinha tanta popularidade que o Partido, para garantir a eleição do Osvaldo Pacheco, proibiu a ida das minhas cédulas pra lá. Consideravam que eu estava eleito no Estado, o que era verdade.
LC - Você lembra quantos votos teve?
JA - Não, não me lembro. Bem ... eu fui eleito, deixei minha carta de renúncia com o Partido e fui pro Uruguai com Zélia. Nós tínhamos casado em julho. Ela não conhecia o Uruguai. Quando estava lá, recebi um telegrama pedindo que eu voltasse. Queriam que eu assumisse, porque eu tinha tido uma grande votação e o fato de eu renunciar podia soar mal junto àqueles que tinham votado em mim. Queriam que eu ficasse três meses.
LC - Falando um pouco de coisas íntimas, você se casou em 1933 com Matilde Garcia Rosa.
JA - É verdade. Fui casado com ela até 44, quase dez anos.
LC - Tiveram filhos?
JA - Tive uma filha, Lila, em 35, que morreu quando eu estava na Europa, ela estava com catorze anos.
LC - Sua atual esposa escreveu Anarquistas, Graças a Deus. No intervalo da conversa, ela disse que está escrevendo um livro contando fatos de sua vida.
JA - Zélia é uma ótima contadora de histórias.
LC - Desde quando vocês estão casados?
JA - Em 45 me casei com Zélia ... casei sem casar, porque naquele tempo não havia o divórcio. Ontem nós comemoramos três anos de casados pela lei. Legalmente. E temos... faz... vai fazer 36 anos em julho que realmente somos companheiros.
LC - Seus filhos nasceram durante os cinco anos de Europa?
JA - Não, João Jorge está com 33 anos, nasceu aqui em 47. Paloma nasceu em Praga, em 51, fará trinta anos em agosto.
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http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/jamado.htm
sem data
O que é ser escritor num país onde pouco se lê?
Eu vou começar discordando. Eu acho que não é verdade. Começa-se a ler bastante, no Brasil. Há uma coisa muito curiosa. Eu tenho a impressão de que, às vezes, as pessoas, inclusive os jornalistas, não se dão conta de que o País avançou. Ficam com uma imagem muito atrasada, muito anterior do Brasil. Houve um momento que realmente não se lia no Brasil. Quando estreei o meu primeiro livro, há 57 anos, em setembro de 1931, uma edição de mil exemplares já era uma boa edição, dois mil já era excelente, três mil então... nem se fala... Quando José Olympio fez cinco mil exemplares de meu livro Jubiabá e de Banguê de José Lins do Rego, foi aquela coisa... o mundo vinha abaixo... cinco mil exemplares! Compreende? Nunca se tinha feito aquilo, pelo menos até aquele momento.
E como é que o sr. se sente sendo o escritor mais lido no Brasil?
Eu me sinto mal. Porque acho que deviam ter cinqüenta escritores mais lidos no Brasil. Eu não sei se sou o escritor mais lido no Brasil, talvez. Há algum tempo, nós éramos dois: Érico Veríssimo e eu próprio. Deixa te dizer uma coisa, neste particular. Eu me sinto muito satisfeito de que hoje no Brasil existam já vários escritores que vivem da sua profissão de escritor. Houve um momento em que nós éramos dois no Brasil a viver dos nossos livros. O grande mestre da literatura brasileira que se chamou Érico Veríssimo e eu próprio.
Como é que o sr. vê a produção literária brasileira nos dias de hoje, na década de 80?
Você fala da produção sob o ponto de vista editorial ou literário?
Sob o ponto de vista literário.
Do ponto de vista literário acho que há uma coisa extremamente positiva. Há uma grande diversificação na literatura brasileira... esta diversificação sempre existiu, faz com que você tome autores contemporâneos e... deixa primeiro te dar um exemplo... veja por exemplo, José de Alencar e Machado de Assis. Você vê que é a mesma grande literatura brasileira, mas cada um com a sua matriz própria.
Dois grandes mestres.
Eu acrescentaria três mestres em vez de dois: Machado de Assis, José de Alencar e Manuel Antônio de Almeida, apesar de autor de um único livro, a meu ver, tão importante quanto estes dois e com uma matriz sua própria, que não é nem a de Machdo nem a de José de Alencar. Agora, hoje, você tem uma imensa gama de nuances dentro da literatura brasileira, e de diversificações das mais variáveis, seja no que se refere ao conteúdo dos livros, a temática que move o escritor, seja a escrita do livro, aos programas relativos aos textos, a linguagem... mas se mantém a unidade brasileira. Você reconhece o escritor, antes eu diria, ou seja, em Guimarães Rosa, Clarice Lispector, José Lins do Rego, Érico Veríssimo ou Lúcio Cardoso. Hoje, você reconhece o escritor dentro de uma diversidade imensa de escritores. Quando comecei a escrever, meu amor, nos anos de 31 e 32, não eram mais que trezentos os que escreviam no Brasil. Nós nos conhecíamos a todos, líamos os livros uns dos outros, escrevíamos etc... Hoje, acho que só na minha rua, na rua Alagoinhas, lá onde moro, no Rio Vermelho, deve ter uns quinhentos escritores. São Paulo deve ter uns... sei lá... pululando, uns cem ou duzentos mil
A quantidade nem sempre significa qualidade.
Mas, isso é importante, porque é importante que existam numericamente escritores para que exista uma literaturaa. Isso é importante. O que é que parece importante para mim? É que, quando comecei, nós éramos todos amadores. Porque é que comecei a viver de livro? Porque nós tínhamos uma mentalidade profissional. Eu passei miséria, mas nunca quis ser outra coisa senão escritor. Comi o pão que o diabo amassou. Se não tivesse um pai... que não era rico, mas era remediado, e que era extremamente atento, apesar de que ele tinha tido muita vontade que eu fosse doutor, médico, ou isso ou aquilo... felizmente o meu irmão que está ali (aponta para o seu irmão que está assistindo à entrevista) lhe deu esta alegria, ele foi médico, enquanto que eu e James demos, de descarados, para escritor. Mas ele (meu pai) foi muito generoso e muito orgulhoso dos seus filhos escritores. E ele me ajudou muito, se não eu teria passado fome e... mas lutei para ser escritor.
E se tornou um escritor profissional.
Esta mentalidade profissional que não existia já começa a existir. Eu não diria que ela seja ainda a mentalidade dominante e geral, ainda há muitos de mentalidade amadora, que é anti, contra a literatura, porque em vez de você trabalhar para a literatura, você vai fazer vida literária, que é uma desgraça, né? Vida literária é fuchico, é o grupismo, é a pequena coisa, é o elogio mútuo, toma cá, dá lá, e etc... esta coisa medonha, né? Mas começa a haver mentalidade profissional, sobretudo entre os jovens. Isso me dá uma grande alegria. Eu tenho certeza de que amanhã, como em países como a Inglaterra, a França, Itália, como os Estados Unidos e só falo do mundo capitalista, para não falar do mundo socialista, que é a mesma coisa os escritores brasileiros sejam escritores, desde o começo do seu trabalho, e nenhuma outra coisa, não sejam médicos que escrevem nas horas vagas, compreende? O que é muito ruim. Isso me parece um fato novo dentro da literatura brasileira que me dá várias possibilidades, além de que no meu tempo, quando surgia um escritor ou outro, o número era pequeno, isto é, o escritor válido. Já nos dias de hoje surgem muitos escritores porque são muito mais aqueles que escrevem.
E há, ainda, os que não conseguem publicar.
Há, evidentemente, uma grande quantidade de coisas muito ruins, eu mesmo sou testemunha disso. Você me dizia há pouco que sou um escritor muito lido e que tem público e etc... sou muito solicitado por gente que tem livros e quer publicar, e sou muito sensível a isto, porque fui um jovem escritor, e sei o quanto devo àqueles que me ajudaram no difícil começo, que é o começo de um escritor. Mas, posso te dizer que de trinta livros um tem uma importância, vinte e nove não prestam. Mas tem um que é bom.
Como foi o seu contato com os "subterrâneos" da vida baiana?
Subterrâneos? A própria cidade na Bahia tem uns subterrâneos, que os jesuítas, que os padres faziam seus comunicados, de convento em convento, onde padres e freiras faziam patifarias. Tinha muita patifaria nos conventos, que é o lado mais simpático destes conventos. Agora, não falaria dos subterrâneos da vida baiana, eu diria a vida popular baiana, que conheço de uma forma íntima.
É uma vivência que marca toda a sua obra.
Eu vou te dizer uma coisa, já que falávamos há pouco do escritor. Eu acho que o escritor verdadeiro é aquele que escreve sobre o que ele viveu. Eu andei pelo mundo todo. De vez em quando as pessoas me dizem: Ah, por que você não escreve um romance sobre a Índia? Não posso. Eu não posso escrever sobre aquilo que não conheço, que não vivi, que não está dentro de mim. Aquilo que conheço por ouvir dizer, por ter lido e etc... não posso escrever. Então tenho um conhecimento da vida popular baiana, da cultura popular baiana, do povo da Bahia, realmente íntima, porque desde muito criança convivi de uma forma muito íntima com o povo da Bahia, seja na minha infância nas fazendas de cacau, daí toda a parte sobre a região cacaueira, sobre a conquista da terra, a vida dos trabalhadores, a vida dos jagunços, a vida dos coronéis, que está distribuída em cinco livros, né? Cacau, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, Gabriela, Cravo e Canela, Tocaia Grande e aquele pequeno volume de lembranças de infância. E também a vida do povo das cidades da Bahia.
O sr. disse que Mar Morto é seu romance preferido.
Não é verdade. Eu nunca disse que Mar Morto é meu romance preferido. Na realidade, é o meu romance que me sinto muito intimamente ligado. O que recorri quinhentas vezes com os mestres de saveiro , meus amigos, até hoje tem mestres saveiros, meus amigos, que ainda estão vivos! Recorri todo o Recôncavo... a vida do povo baiano, a vida do povo dos candomblés, a vida das festinhas de ruas, isso tudo conheço como as palmas de minhas mãos. A velha Bahia, conheço como as palmas de minhas mãos. É tudo o que aprendi e toda a minha obra e está aí, não saiu daí, tudo o que sei aprendi e trago dentro de mim. E ainda hoje, apesar de tantos anos, apesar das mudanças todas que existiram da vida baiana, nas cidades e tudo isso, ainda a minha ligação é extremamente íntima com o povo da Bahia tanto quanto as peças que tenho lá, sejam nas nacionis ou estrangeiras que lá estão.
Falando da Bahia, acho dois baianos geniais, que foram Castro Alves e Glauber Rocha. Eu faria então duas perguntas. Primeiro, como o sr. se sente sendo conterrâneo de Castro Alves? Segundo, falando de Glauber, que considero o maior cineasta brasileiro, indubitavelmente, como foi sua relação com Glauber, e o sr. gostaria de ter visto um romance seu filmado por Glauber Rocha?
Eu vou te responder primeiro ao que diz respeito a Castro Alves. Castro Alves é para nós todos o exemplo do que deve ser um intelectual, que deve ser um escritor, um poeta por excelência. Ele é nosso grande poeta do amor, não há maior que ele na nossa poesia, e é também o poeta que se bateu por todas as causas nobres do povo brasileiro. A causa da Abolição, a causa da República, a causa da liberdade.
Atualmente na sua poesia.
Não só na sua poesia como na sua ação de cidadão, fundador de causas abolicionistas, dando fugas a escravos etc... Ele e Luís Gama. Eu creio que o branco e o negro (branco até onde um baiano pode se dizer branco), o branco e o negro que exprimiram a síntese do que é o intelectual brasileiro, na luta contra a escravidão, contra o preconceito racial. Eu estudei, inclusive, no colégio que era na casa onde morreu Castro Alves. Diziam que a alma dele aparecia, às vezes. Eu nunca vi. Mas... Glauber... o que é que posso dizer de Glauber? Glauber foi como um filho meu, foi como o João que está ali (aponta para o filho ali perto), compreende? Quer dizer, conheci Glauber menino, e toda aquela geração, e o acompanhei até o fim, quer dizer, eu... (emocionado) aconteceu-me uma coisa terrível que foi ter assistido a Glauber morrer.
O sr. acompanhou os últimos dias dele.
Durante mais de um mês em Lisboa, Portugal, desde o momento que Glauber foi internado em Sintra. E depois nós o trouxemos para Lisboa, João Ubaldo e eu, nós eu digo Zélia, minha mulher, João Ubaldo Riberio e eu próprio. Até o momento em que conseguimos embarcar Glauber para o Brasil e infelizmente já sem... eu não creio que tivesse salvação. Ele tinha um câncer de pulmão bem avançado, terrivelmente avançado, acho que sem possibilidades.
O sr. se identifica com a obra dele?
Quanto à obra obra de Glauber, acompanhei desde os primeiros passos de documentários dele, da Bahia, e a cada filme, e de certa maneira a nossa obra tem uma relação de parentesco. Glauber... nós tínhamos uma relação mais do que fraterna, quase que de pai e filho, quase que paterna e filial... sua morte para mim... levei quase um ano para poder recuperar o equilíbrio emocional depois da morte de Glauber. Você disse que ele é o maior cineasta brasileiro, e digo que não só um grande cineasta como um grande brasileiro, um dos maiores brasileiros do nosso tempo e um dos mais injustiçados. Glauber foi vítima do patrulhamento ideológico mais monstruoso, sujeitos que depois que ele morreu vieram dizer que ele era isto ou aquilo, mas que o patrulharam, que o levaram a querer sair do Brasil, a querer ir embora para não ficar aqui, de tal maneira que ele foi insultado, das coisas mais miseráveis, quando ele era o único que estava vendo claro. O que aconteceu aqui, Glauber viu muito antes.
Como o sr. situa o trabalho de Glauber como cineasta?
Eu acho que Glauber está entre os vinte maiores cineastas do nosso tempo, um dos vinte maiores cineastas da história do cinema. Se ele tivesse nascido num país capitalista, e não no Terceiro Mundo, e tivesse nascido no Primeiro Mundo, ele era um homem hoje cujo nome estaria ao lado de Orson Welles e gente assim. Então, ele era um homem extraordinário... é uma pena que ele tenha morrido tão jovem, quando ainda... Quanto a livro meu, Glauber pensou em filmar todos os livros meus e não filmou nenhum deles. Para mim... você diz se foi uma decepção? Não digo que seja uma decepção, porque acho que há um parentesco tão grande entre os grandes filmes dele, como o Deus e o Diabo na Terra do Sol, o Terra em Transe e sobretudo aquele O Dragão da Maldade..., em toda a sua temática do cangaço, do sertão, do latifúndio, da luta pela terra, etc... o que está na obra dele está na minha também.
Já que estamos falando de Glauber, e falar nele é falar sobre o Brasil, o sr. acha que Gilberto Freyre foi um pioneiro no estudo da alma brasileira?
Eu vejo a obra de Gilberto Freyre como uma das mais importantes. Eu discordei muito de Gilberto durante a minha vida, por posições políticas. Eu tive uma militância política comunista, todo mundo sabe notório, durante muitos anos, e aliás, fomos colegas na Constituinte de 46. Eu era deputado comunista e Gilberto era deputado da UDN... discordamos muitas vees, mas, o fundamental é que me sinto muito feliz e orgulhoso de ter sido contemporâneo de Gilberto Freyre, de ter assistido à publicação de Casa Grande & Senzala em 1933, na edição Schmidt. Todos os grandes livros daquele tempo eram da edição Schmidt, que era a editora de vanguarda, digamos, dirigida pelo poeta Augusto Frederico Schmidt, que publicou todos os grandes daquele tempo. Mas o livro de Gilberto Freyre nos deu a nossa identidade brasileira, ele nos ensinou como é que somos brasileiros.
A ver o Brasil com olhos brasileiros.
O Gilberto tinha uma grande coisa. Os livros de Gilberto têm todas as coisas, têm marxismo, têm... têm todas as coisas... Ele usava tudo, e não era, absolutamente, nenhuma por completo. Ele era Gilberto Freyre. Homem de talento extremo.
Ele se dizia um conservador revolucionário.
É possível. No fim da vida ele dizia que era anarquista. Eu creio que bastante justa... nós somos todos um pouco anarquistas, aqueles que buscam viver um pensamento livre, que não é fácil. Então, a importância de Gilberto é imensa. Ele é o principal. Ele foi do nosso tempo, e o que a gente pode dizer? O principal autor brasileiro. Eu não te digo nem o principal poeta que este foi Carlos Drummond, figura de poeta e cidadão incomparável e, para mim, o principal romancista se chamou Graciliano Ramos.
O sr. que atualmente reside na Europa, poderia nos dizer como o Brasil é visto, hoje, lá fora, no Velho Continente?
Primeiro vou te dizer que não moro na Europa coisa nenhuma. Eu passei na Europa estes dois últimos anos mais tempo do que no Brasil, porque estou trabalhando num livro, e aqui é impossível para mim. Aqui, em qualquer parte é impossível, porque sou... não tenho a menor privacidade aqui, sou atropelado pela mídia em geral, pela televisão... a televisão na Bahia me entra pela casa adentro sem avisar, a propósito de qualquer coisa, né? Querem saber tudo. Porque que Gilberto Gil não foi escolhido? Eles vão saber a minha opinião. Eu não sei por que Gilberto Gil não foi escolhido. Na minha opinião, sei que ninguém poderia ser melhor representativo, melhor prefeito da cidade de Salvador, da Bahia, do que Gilberto Gil, que é o próprio povo da Bahia, que é a própria cidade da Bahia... mas... é assim... aqui não posso escrever já não é de hoje.
Quando começou isso?
Tieta do Agreste escrevi em Londres, no ano de 79, e só foi possível fazer esse livro porque estava disposto a fazer como fiz com Tocaia Grande, passei um ano trancado dentro de uma casa, fugindo de casa em casa; porque estive trancado numa casa nova do João, estive trancado numa casa lá no Maranhão, quando descobriram eu tinha que ir para outra lá em Petrópolis, que passei mais um ano na serra, sem sair, então fui para Paris. Eu moro em Paris.
Em sua opinião, qual é a imagem verdadeira do Brasil?
Eu acho que é bem diferente desta imagem que você (felizmente), que você lê na mídia brasileira, né? Que você tem a impressão de que o País está assim, naufragando. Não é verdade , é mentira. Uma invenção tola, da qual todo mundo vai se dar conta brevemente. Você é ainda muito menino, não viu o que foi o governo de Juscelino. Meu amor, o pau que Juscelino levou, nem Sarney está levando. O que menos se dizia de Juscelino era que tinha roubado o Brasil todo e tinha posto nas contas do estrangeiro. Eu me lembro de uma reportagem em manchete: "É a sétima fortuna do mundo a de Juscelino". Você vê. Hoje há um culto a Juscelino, ou seja, se reconhece o que Juscelino é, de forma que o Brasil andou no tempo. Eu me lembro que no tempo da ditadura militar, eu um dia estava parado na avenida... no Corredor da Vitória, na Bahia, eu esperando meu carro chegar para sair, e um senhor que estava na frente de mim para pegar um ônibus me disse assim: "Cada vez que (naquele tempo só tinha Volkswagen), cada vez que passa um carro deste vejo o quanto Juscelino foi grande". No entanto este homem levou um pau que... ele viveu amargurado, porque ele levava isso muito a sério.
O que é que se pensa do Brasil na Europa?
Que é um país que tem um número de imensas dificuldades. Com esta dívida externa que é a maior do mundo, que nem eu nem você fizemos. Os militares, os generais, os que governaram aqui durante vinte e um anos fizeram esta dívida externa para construir obras faraônicas, compreende? Que não nos servem de grande coisas. Como aquela estrada da Transamazônica que a floresta comeu no dia seguinte. Como esta barragem, este negócio de Itaipú... que serve para sustentar um velho ditador no poder, que é este paraguaio que foi mais uma vez feito presidente da República.
O sr. acha que somos culpados?
Nós o sustentamos. Se nós não tivéssemos construído esta coisa para garanti-lo no poder, ele já tinha caído. Para nós, nos serve pouco. Esta dívida externa é que pesa sobre nós, ela existe e está aí, e todos nós estamos pagando... e não há governo... você pode colocar quem você quiser, escolher seu sucessor, qualquer um destes paulistas: Ulysses, Covas, Orestes, Ermírio, Fernando Henrique, quem você quiser, bota lá, e ele vai ter a dívida em cima da cabeça, e não vai resolver, e não me pergunte como se resolve isto porque não entendo picas deste negócio de economia. Agora, qual é a imagem fiel do Brasil? Que é um país jovem, poderoso, riquíssimo, onde desgraçadamente esta riqueza pertence a um pequeno grupo que oprime a imensa maioria da nossa gente. Mas que é um país que avança. Que não é o mesmo hoje que era há cinqüenta anos, né? Eu conheci São Paulo... primeira vez que vim a São Paulo foi no ano de 1933.
Já tinha livros publicados.
Eu tinha publicado Cacau e vim fazer uma conferência num Centro de Cultura, dirigido por Flávio de Carvalho, o grande homem de São Paulo, que está, infelizmene, muito esquecido. E São Paulo era uma pequena cidade provinciana, e agora, esta coisa monstruosa que você tem aí hoje. Esta é a imagem do Brasil na Europa: a de um país jovem, que tem problemas enormes, mas que tende a solucioná-los. Quanto a mim, cheguei aqui no Brasil depois de sete meses. O que eu lia lá, de vez em quando a Varig me manda O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo, e eu leio. Eu chego no Brasil e o que é que encontro? Eu encontro o País no final da votação de uma Constituinte. Eu fui daquela Comissão Pré-Constituinte onde fizemos um anteprojeto, que me parece que era extremamente progressista. Algumas coisas deste anteprojeto não foram aprovadas, infelizmente, como o parlamentarismo... mas vejo que está se ganhando uma multidão de coisas, extremamente progressistas.
A Constituinte deu certo?
Eu nem imaginava que esta Constituinte chegasse onde está chegando. Anteontem, acabaram com a censura de vez, né. A gente encontra a censura em qualquer lugar, espero que a tenham acabado de vez mesmo, para sempre, né? Mas, acabou pela Constituição. Não pode haver mais censura. Tem que se garantir a execução do artigo da Constituição. O Brasil vive um clima de absoluta e total liberdade. Você pode dizer o que quiser, e dizem todo o dia, né? Todo dia se insulta o presidente da República, não é? Se xinga a mãe diariamente, né? E não acontece nada. Vai xingar a mãe do general Geisel, um homem com grandes qualidades, apesar disso, foi ele quem começou todo este processo, mas fosse xingar a mãe dele... e a do Médici então te arrancariam as unhas e ovos. Estamos numa liberdade, o que acho extraordinário. Nós estamos realmente construindo um país democrático, um estado democrático e de direitos. No dia em que esta Constituição for promulgada, nós estaremos num estado democrático e de direitos. Isto era a primeira coisa que tinha de ser feita. Porque, sem isso, você não sai para solução de nenhum problema. Você sai pra cadeia, você sai pra ver os militares no poder.
Como o sr. vê o futuro brasileiro?
Eu sou muito otimista, muito. O Brasil é um país de uma força enorme. Nós somos um continente, meu amor. Nós não somos um pequeno paisinho, nós somos um continente, com um povo extraordinário. E, se você pensa no povo brasileiro, e, se você reflete um minuto... o pessoal não gosta muito de refletir, não é? Pense um pouquinho... Esse povo que nasce da mistura. Da mistura de sangues, de raças, de culturas. Nesse leito de amor que tem sido o Brasil desde a descoberta, até os nossos dias, onde se deu esta coisa imensa, esta formação de uma nação mestiça, a única do mundo, com uma cultura original e única. Quando digo que não sou um escritor latino-americano, e que sou um escritor brasileiro, é exatamente para marcar a originalidade da nossa cultura, que nasce dessa mistura, onde matrizes vindas da Europa, e não única apenas, não vinda apenas da Ibéria, que é a mais importante. A portuguesa, mas também a italiana, a alemã, as eslavas, mas, sobretudo, a matriz européia, a matriz indígena e a matriz negra. as três igualmente importantes. Mas sempre digo que o nosso umbigo é a África.
Por quê?
Ali é que está o mais fundamental de tudo. Se você vai raspar... raspar... você pode não encontrar de repente, mas encontra um deles, mesmo aqueles que não têm sangue negro. Minha mulher é brasileira, muito brasileira, filha de pai e mãe italianos. Não digo que seja branca, por que aquela coisa na Itália também não é estas purezas todas, basta ver Otelo, né? Eu sempre digo a ela, vem devagar... Olha o Otelo... Agora, mas mesmo, por exemplo, Zélia, consciência mestiça. A sua concepção de cultura de misturas. Essa é a nossa grandeza, isso é que marca o nosso humanismo, que lhe dá a sua originalidade.
Mas é um povo que sofre muito.
Dificilmente você verá um povo mais sofrido que vive numa situação tão de miséria, tão de opressão do que o nosso. Existe, por exemplo, a Índia. Eu conheço a Índia. A situação é semelhante, mas, qual é a diferença? É que o povo brasileiro não está vencido. O povo de lá não tem nenhuma esperança; e ele está lá esmagado dentro daquela coisa religiosa, tremenda, o fanatismo, que é tudo voltado para a morte... e aqui o nosso povo? O nosso povo está voltado para a vida.
Foi a África que nos deu isso?
Foi a África que nos deu isso, foi o negro que nos deu esta força vital que ele tem. O português é melancólico, o europeu em geral é voltado muito mais para a morte do que para a vida. O próprio indígena é meio assim. Mas, o negro, esse não, esse era voltado para a vida, e chegou aqui como escravo, quer dizer, na pior ds condições humanas, né? E, no entanto, resistiu. Lutou desde o momento que o primeiro negro desembarcou do navio negreiro no Brasil, ele lutou contra a escravidão... você tem os Palmares, você tem aí o poeta Luís Gama, você tem aí o poeta Castro Alves, você tem esta luta formidável. O povo brasileiro tão sofrido, povo que vive nas favelas, o povo das cidades como Salvador, Recife, como São Paulo, ou qualquer cidade brasileira. É esse povo que faz o Carnaval. A maior festa... a maior festa brasileira... originalíssima... não tem nada a ver com os outros carnavais, de Nice, de Veneza. Isso aí é uma bestice. Aqui não se usam máscaras, aqui o Carnaval é o que é, uma festa do povo, é uma festa da cultura popular, é a maior festa da cultura popular que há no mundo. E isso é o povo brasileiro, que cria, porque esse povo não está vencido, esse povo está de pé, e é isso que deve nos dar confiança e certeza de que amanhã o Brasil será maior e melhor.
Atualmente, o sr. acredita em revolução social?
Olha... é um negócio difícil. Você me faz agora uma pergunta muito complicada e muito difícil. Se você me perguntasse isso nos anos 50, nos anos em que escrevi Os Subterrâneos da Liberdade, no tempo em que era ali um stalinista retado, um bolchevique, eu te diria que... ah, sim... a revolução social... vamos fazer. Quando leio aí certos líderes que são exatamente os que não são líderes da classe operária, você tem a impressão de que vai haver uma revolução e tanto, e não é tão fácil assim.
Faltam condições objetivas?
Você vê que o tempo e os problemas se modificaram profundamente. Você está vendo o que está se passndo no mundo socialista, não é? Quando Marx previu a "débâcle" do capitalismo, a crise geral do capitalismo, ele previu no século XIX, e nós estamos no século XX, e não se deu a crise geral do capitalismo. Então, você vê que países que fizeram essa revolução , de uma maneira ou de outra... a revolução que houve mesmo foi a Revolução Russa de 17, depois, o que houve de revolução? Se você pára para analisar seriamente a questão, nos países do leste europeu, Polônia, Tcheco-Elováquia, Hungria, Bulgária, Romênia, não a Iugoslávia, que lá foram os iugoslavos que a libertaram, mas, nos outros países, foi o exército vermelho, na sua vitória contra o nazismo, que entregou o poder aos comunistas, à esquerda, digamos assim, aos partidos comunistas.
E Cuba?
Essa revolução só se transformou numa revolução socialista algum tempo depois de vitoriosa... Inicialmente, Fidel não chegou ao poder com este caráter, ele chegou ao poder como um liberal-democrata, contra a ditadura Batista, buscando aqui e ali... O fato de que ele foi rejeitado pelos Estados Unidos, sobretudo, fez com que se desse a aproximação com a União Soviética e que houvesse uma evolução no pensamento de Fidel, mas foi uma revolução. E depois, cadê outra? Me diga? Não há.
Talvez na África...
Você diz dos países africanos, mas não houve revolução propriamente dita, houve alguma luta de guerrilha importante nos países, hoje, independentes, que eram colônias portuguesas, os outros que eram colônias inglesa e francesa; a luta de libertação foi, sobretudo, parlamentar, compreende? Menos do que uma luta armada, que as próprias condições do após-guerra levaram a que a França, a Inglaterra, a Bélgica e outros países colonialistas dessem a independência para continuar a manter um domínio econômico e político sobre estes países. No caso das colônias portuguesas foi diferente. Foi a vitória contra o salazarismo, o levante militar, a Revolução dos Cravos, que deu a libertação... mas você vê que todos esses países estão com problemas terríveis, né?
Tudo isso conduz a que tipo de reflexões?
Hoje, há que refletir em termos diferentes. Por exemplo, a primeira reflexão é que sem democracia não há socialismo, sem democracia, qualquer que seja o governo, marchará para uma ditadura terrível, no sentido da limitação da liberdade. Mesmo que você obtenha grandes vitórias na área social, você terá uma opressão política violenta, e isso está claro, está aí, nem mesmo os dirigentes comunistas são capazes de negar este fato, nem mesmo os albaneses.
Quando o sr. diz que a sociedade só será justa quando aliar os princípios do socialismo às garantias de liberdades individuais, como isso é possível?
Não sei. É difícil pra burro. Eu não sei se os meus netos verão isto, talvez os seus netos vejam isto. É fatal. Porque a humanidade marcha pra diante. O socialismo é fatal. O socialismo não depende de você, nem de mim, nem de ninguém. O socialismo é a marcha inexorável da humanidade que marcha pra frente. Agora, para se chegar ao socialismo verdadeiro, que o indivíduo, a sua individualidade não chega a ser esmagada, dizendo-se que é em função do coletivo, na realidade, sendo em função dos donos do poder... aí, nós vamos andar muito caminho, não tenho a menor esperança de ver, e nem sei se os meus netos verão isso, compreende? Agora, temos que lutar por isso. Porque a nossa luta caminha para isso. Só a luta mesquinha, daqueles que querem o poder imediato, que lutam para se obter alguma coisa imediamente, que é vã. A luta real e verdadeira é aquela que se faz no desejo de se obter aquilo que um dia será realidade.
O sr. escrevia na explicação introdutória de seu livro O País do Carnaval que aquele romance relatava apenas a vida de homens que seguiram os mais diversos caminhos em busca do sentido da existência. Hoje, mais de 50 anos depois de o sr. ter publicado aquele livro, como vê o sentido da existência?
Há sempre um momento em que você é um grande escritor. Quando escrevi O País do Carnaval, tinha 18 anos, e tinha 19 quando o livro saiu. Eu achava que era um escritor formidável, ia abafar, e resolver tudo, e pensava que estava escrevendo o romance da minha geração, gente que começava a escrever e que buscava um caminho. Eu acho que sempre se busca um caminho, a minha própria experiência pessoal diz isso.
A sua militância comunista foi uma dessas buscas?
Eu sempre fui, durante muitos e muitos anos, fui militante comunista, quer dizer, achava que ali, naquela fronteira, é que poderia ser útil ao meu povo, ser útil ao Brasil, ser útil à humanidade; de certa maneira, alguma coisa fiz, certamente fui útil na luta pela paz, na luta pela democracia no Brasil, contra o Estado Novo; porém, pra fazer isso, tive que abandonar qualquer tentativa de ter um pensamento livre meu, e de pensar pela cabeça dos dirigentes do PC , seja do brasileiro, seja dos PCs estrangeiros, dos países onde vivi. Então, naquele tempo, a minha solução era esta.
Depois deixou de ser.
Depois deixei de ser, depois achei que esta sociedade que nascia deste pensamento também oprimia o homem no sentido de sua liberdade, que desconhecia o valor do indivíduo, que negava esse valor, achando que só havia um valor no mundo, que era coletivo, sem saber entrosar estas coisas. Desde então, vem de muito tempo que passei vários anos sem escrever, fazendo pequenas tarefas para o Partido Comunista, que acho que muitas outras pessos poderiam fazer.
O sr. se afastou do partido para poder escrever?
Quando decidi... vinha lutando com a direção do partido há três anos para que me liberassem, para voltar a ser escritor, depois de ter escrito Os Subterrâneos da Liberdade, passei anos e anos sem escrever nada, e, não tendo conseguido, deixei de ser militante, sem me ter tornado inimigo do Partido Comunista. Eu tenho pelo Partido Comunista uma grande estima, acho que lá dentro estão os homens mais generosos, homens que se batem pela solidariedade, se batem pela liberdade, que têm esta concepção _ ao meu ver é estreita a concepção que eles têm , mas eles são homens generosos, e tenho grande admiração por eles, e tive entre eles, e tenho ainda, amigos admiráveis.
Também na cúpula do partido?
Um dos homens mais admiráveis que conheci no Brasil, que morreu no ano passado, que se chamou Giocondo Dias, quando morreu era secretário geral do Partido Comunista do Brasil. Eu o conheci da mesma maneira como conheci Glauber, tão intimamente, como conheci Glauber Rocha. Com ele, fizemos muita coisa juntos. Foi um homem extraordinário, um homem de uma grandeza humana enorme. Agora, hoje vejo com esta concepção que te digo. Eu acho que nós devemos lutar pelo socialismo, porque é justo, é correto, agora, para o socialismo com democracia, sem o que estamos capados todos nós.
Eu acho que 1930 foi um período muito importante para o Brasil, o fim do coronelismo, o início da modernização no Brasil... O que signifiou 1930 na sua vida?
Não só na minha vida, como na vida do Brasil como você disse, e para a literatura brasileira, significou muito. Primeiro porque, ao contrário dos sucessivos golpes militares, tentativas de golpes que existiram, que vieram a existir depois, culminando com o golpe de 64, 30 foi uma revolução e não um golpe de Estado.
Em que sentido?
Foi uma revolução, no sentido de que houve não só mudança, mas ela chegou com um apoio de massa enorme no Brasil; depois ela chegou até um certo ponto, e aí houve um acordo que é sempre a tradição política do Brasil, que vem do Império... mas aí houve a mudança da vida econômica. O imperialismo inglês deixou de ser dominante e passou a ser o imperialismo americano. Você teve o fim do coronelismo, é verdade, ele foi morrendo, ficou aos poucos... mas realmente foi o golpe fundamental nisso. Você teve uma modernização na vida política, com as eleições que vieram com a Revolução de 32, não é? Você teve o começo da industrialização. Dali, você parte para dois fatores importantes que deram uma luta longa: Volta Redonda, o que os americanos se opuseram de toda maneira e que nós finalmente conquistamos, e o petróleo. O petróleo, que era negado: vinham umas pessoas aqui e diziam que no Brasil não há, nem dentro de mil anos haverá, uma gota de petróleo. E o petróleo estava aí, né? Nós ganhamos uma grande batalha do povo brasileiro...
Monteiro Lobato...
Lobato. O grande Lobato. Quando eu fui condenado à cadeia, eu estive preso em 45 na cela em São Paulo em 45, fui preso aqui, fui para a mesma cela, eu e Caio Prado Júnior, para a mesma cela onde Lobato tinha gramado seis meses de cadeia porque dizia que já existia o petróleo. O Partido Comunista teve um papel muito importante nesta luta, chefiado neste tempo por Prestes. Teve um papel muito importante nesta luta. Então 30 mudou completamente.
E do ponto de vista da literatura?
Trouxe a visão dos problemas brasileiros que o modernismo não tinha realmente sabido ver. O modernismo fez uma transformação formal. Apesar de Macunaíma, apesar de sobretudo a obra de dois autores, a meu ver: Mário de Andrade e Raul Bopp. Mas é a Amazônia lá em cima, distante, que eles buscam tocar. Você vê que o conhecimento da relidade era tão pequeno que estes dois autores tão importantes, que foram Mário de Andrade e Raul Bopp, e suas obras fundamentais, foram tocar na Amazônia, 30 trouxe o romance que toca os problemas brasileiros.
De Norte a Sul.
No Sul, Érico Veríssimo, não só Érico, como Ciro Martins, e sobretudo o grande mestre da literatura brasileira que foi Dionélio Machado. Trouxe os romancistas do Nordeste e de Minas. Lúcio Cardoso é de Minas, não se pode esquecer que o romance de 30 como se fosse o romance de Graciliano, de José Lins, meu, da menina... da Raquel, e dos demais que foram também romancistas do Nordeste, mas você tem, também, os do Sul, você tem Érico, você tem Lúcio Cardoso, você tem Otávio de Faria, você tem José Geraldo Vieira, então, um conglomerado deles. E só foi possível a existência da poesia de Carlos Drummond de Andrade., por causa Revolução de 30. A poesia de Carlos Drummond de Andrade não precede a revolução. Ela vem com sua força total, a poesia de Carlos Drummond de Andrade, a poesia de Murilo Mendes, a poesia de Augusto Frederico Schimidt são produtos da Revolução de 30.
E por falar no Drummond, o sr. respondeu certa vez a Jacques Chancel, da Antenne 2 (TV francesa), que um Nobel de Literatura para o Brasil deveria premiar o nosso poeta nacional Carlos Drummond de Andrade. Hoje, um ano após a morte de Drummond, como fica o Brasil e o Nobel.
Eu vou te responder. A minha resposta é a seguinte: acho prêmio em geral uma bestice. Um escritor que se preze, ele não escreve para prêmio, você escreve por outra coisa. Você escreve para servir, escrevo para servir, servir ao meu povo, servir à minha gente, e para o meu prazer. Eu tenho um grande prazer em fazer um romance. Nesse romance que acabei de fazer agora, tem uma pequena entrada que diz: "Escrevendo este livro eu me diverti enormente. Se alguém com a sua leitura se divertir, eu me dou por satisfeito". Por que acho uma obrigação da literatura divertir. Tem uns caras aí que acham o contrário. Escrevem uns livros chatos. São de uma chatice... Agora, o Nobel. O Prêmio Nobel, como qualquer outro prêmio... muito bem... todos os prêmios que me dão recebo, agradeço, muito obrigado, mas nunca me candidatei a nenhum deles, e acho que o Brasil... que o Prêmio Nobel tem muita fama, mas essa coisa de que tem importância é muito relativa.
E por que o Nobel perdeu importância?
Porque ele foi ganho, foi dado a figuras da maior importância na vida literária, e, sobretudo, devido a coisas de ordem política. O Brasil já devia ter tido o Prêmio Nobel há muitos anos. Alguns brasileiros morreram sem ter ganho o Prêmio Nobel, o que foi uma grande injustiça. Você falou em Drummond, e você sabe que me bati por Drummond a vida toda. Gilberto Freyre merecia o Prêmio Nobel, Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, todos estes quatro nomes que estou te citando mereciam ganhar o Prêmio Nobel, e estou falando de gente mais recente. Acho que o Brasil merecia, já devia ter tido, e mais dia, menos dia, terá, não serei eu, certamente, sempre achei esse negócio, do meu ponto de vista, uma chatice. Tem gente que me vem e diz: e o Prêmio Nobel? Cadê? Como se eu tivesse... primeiro porque não mereço e, se eu fosse membro da Academia de Ciências da Suécia, não votaria em Jorge Amado. Eu acho que não mereço.
Não merece?
É verdade. É o que acho. Agora, a literatura brasileira merece, isso é outra coisa. Eu sou um modesto escritor baiano, um modesto romancista baiano, e um romancista de muita sorte, não nego a realidade, conhecido mundialmente, sou traduzido em 48 línguas, com um público na Itália enorme, um público de língua espanhola enorme. Pra governo teu, está saindo uma edição russa popular de Gabriela de três milhões de exemplares... Eu sou um escritor de muita sorte. Eu tive mais da vida do que mereci, do que pedi. A começar pela companheira que tive, pela minha mulher, pelos meus filhos, pelos irmãos que tenho, gente da melhor qualidade. Sou um homem muito feliz com a vida.
x.x.x
Entrevista de Jorge Amado a Ariovaldo Matos, publicada na Revista Viver Bahia, edição Julho/Setembro de 1978.
A.M. - Em que medida a paisagem baiana o influencia no seu trabalho de ficcionista?
J.A. - A paisagem em que sentido?
A.M. - A geografia por exemplo.
J.A. - Eu acho que está presente em minha obra. Não é a presença mais forte, evidentemente A paisagem humana é mais, eu acho. Tanto a paisagem da capital, onde se desenrola uma parte da minha obra, quanto a paisagem do cacau. Esta, eu creio, é ainda mais presente, mais densamente presente do que na parte relativa à cidade da Bahia. Ainda assim ela está na cidade da Bahia. Uma paisagem, no entanto, que intencionalmente busca guardar memória de certos valores paisagísticos, antes tão característicos e hoje sofrendo, de certo modo, a agressão de monstruosos edifício situados quase sempre onde não deviam estar. Esta paisagem assim agredida não é aquela que está mais diretamente presente na minha obra.
A.M. - A presença é a da paisagem de ontem?
J.A . - Exato. Na minha obra está mais presente a paisagem como ela era antes e assim para guardar memória de como ela era, de como ela existia. Mas essa paisagem tampouco é elemento fundamental no meu trabalho.
A.M. - E o mar?
J.A. - É personagem importante o mar baiano. Meus livros começam e acabam no mar. Ele funciona muito em meus livros. É natural. Nós estamos aqui numa península, rodeada de mar, este mar que é uma beleza extraordinária. É um privilégio que nós temos o de viver na Bahia, viver com este mar em torno de nós.
A.M. - É sabido que você tem grande vivência internacional. Em “Confesso que Vivi”, Pablo Neruda narra episódios ocorridos na Ásia, na Europa etc., nos quais você aparece.
J.A. - Já viajei muito e ainda viajo.
A.M. - Conhece todos os continentes? Você viaja por gosto?
J.A - hoje eu viajo mais para lugares que eu já conheço e amo. Quer dizer, vou mais a certos lugares... Aquela ânsia de conhecer lugares novos já não tenho tanta. Andei o mundo todo, tirando a Austrália. Conheço grande parte do Oriente longínquo e do Oriente próximo. Conheço um pouco da África. Conheço a Europa muito bem e a América, seja a América do Sul, seja a América do Norte. Mas, sobretudo, conheço a Europa. Viajei a Europa toda.
A.M. - Das cidades estrangeiras que você conhece quais as que mais lhe lembram aqui a Bahia? Pergunto não apenas do ponto de vista da paisagem física e sim mais em termos de gentes.
J.A. - Você não fala em paisagem física, evidentemente. Se falássemos em termos de paisagem física teríamos que citar Lisboa imediatamente. Dizem que Luanda parece muito com a Bahia. Eu não conheço Angola, espero conhecer, não sei, mas tenho a impressão que a Bahia Dacar, por exemplo, que lembram muito a Bahia, não é?
A.M.- Não me lembro bem. Estive lá ligeiramente, horas...
J.A.- Da maneira de ser do povo nós também somos misturas do negro,do ibérico, de gente vindas de todas as partes, e disso essa nossa doçura... por exemplo: eu acho que certas coisas da Grécia, dos gregos, certas coisas que recorda a Bahia, certas coisas dos portos meridionais, por ali. O viver da Grécia de certa forma me lembra o viver da Bahia.
A.M. - A vida intensa naquelas cidades marítimas...
J.A. - Cidades marítimas cheias de vida, de animação, de amor à vida, de vontade de fazer coisas, de realizar, capacidade de rir. Nisso os gregos se parecem mais conosco do que os próprios portugueses que são mais da melancolia, às vezes.
A.M. - Os baianos estão mudando e, se estão, em que sentido?
J.A. - Evidentemente, estão mudando.
A.M. - Para o bem ou para o mal?
J.A. - Para o bem ou para o mal é você colocar as coisas de modo demasiadamente simples. Para bem um pouco, para o mal bastante. Quer dizer que talvez se esteja pagando muito caro pelo chamado progresso que, às vezes, não é exatamente progresso. O crescimento é feito não em função do povo, mas, às vezes, às expensas do povo. Sim, o homem baiano está mudando. Acho que o homem muda mais lentamente do que a sociedade. As coisas estão mudando, mas o homem, felizmente para nós, no caso do homem baiano, conserva ainda seus valores fundamentais certamente já atingidos pela sociedade de consumo. Já atingidos por tudo isso, tudo que esse tipo de progresso traz de violência de crueldade, de dificuldades, de limitações de toda espécie. Mas, eu tenho para mim que os valores fundamentais do povo ainda estão conservados: a sua resistência, a sua capacidade de alegria...
A.M. - De que modo esses valores se expressam?
J.A. - A meu vê se expressam na vida que o povo leva. A vida é muito dura, é muito difícil para o povo. Viver é quase um milagre e esse milagre o povo realiza diariamente. No entanto, apesar dessa dificuldade, dessa dureza, o povo não perde sua capacidade de rir, não perde sua capacidade de superar tudo isso e ir para adiante. A cortesia do povo, do homem pobre baiano é coisa extraordinária.
A.M. - É nesse sentido que você diz ser o povo baiano o mais doce do mundo?
J.A. - É. Eu poderia dizer também que é um povo extremamente educado e usaria mesmo o termo “civilizado”, bastante. Civilizado no sentido de que tendo uma doçura interior enorme, ele não tem nenhuma tendência a se dobrar, a se curvar. Para mim o que define o homem da Bahia é que o mais pobre homem da Bahia sente-se igual ao homem mais rico, isso no sentido de que ele te trata com a maior cordialidade, com a maior gentileza, com a maior doçura, mas ele quer, igualmente ser tratado por você da mesma maneira. Se você trata de cima, ele imediatamente se modifica, não aceita e não admite.
A.M. - Você tem consciência de que é um eficaz “vendedor” da Bahia no Brasil e no Exterior?
J.A. - Todo escritor é um pouco isso. Todos nós que escrevemos sobre uma temática baiana fazemos a Bahia mais conhecida. Levamos as emoções, os sentimentos, a vida do povo baiano a outras terras, a outros povos, a outras gentes. Enfim, fazemos a Bahia mais conhecida, seja dentro do pais, seja no exterior. Mas, outros também o fazem muito. Um homem que realmente tem feito isso é Caymmi, são outros músicos como Caetano, Gil, vários outros, Waltinho Queiroz, Jocáfi e Antonio Carlos, são os interpretes, enfim todo o pessoal promovendo muito a Bahia, mas, não se trata da intenção de “vender” uma imagem. Há artistas plástico como Caribe, Mario Cravo, Jenner Augusto, tantos outros. Eu sou um desses e há outros escritores. Cada vez que traduzem um conto teu, um conto de Vasconcelos Maia, um poema de poeta nosso, a Bahia está sendo promovida.
A.M. - Diz-se que os baianos são os principais agentes turísticos da Bahia lá fora. Você concorda com isso?
J.A. - Eu acho que quem promove a Bahia é ela mesma, quer dizer, o próprio povo. E a Bahia no sentido de sua beleza, paisagística, dos seus costumes, dos hábitos, aquilo que o povo cria. Naturalmente os baianos são patriotas do seu pais, mas não são no Brasil, nem de longe, os mais bairristas. O baiano não é bairrista. Você vê que todo o mundo vem para aqui, o baiano acolhe. Mesmo no meio intelectual, você tem na Bahia uma circulação enorme de talentos vindos de outras partes do país e mesmo do estrangeiro. Tome por exemplo, o caso de Hansen Bahia, o grande gravador alemão.
A.M. - Em termos comerciais residir na Bahia não lhe causa prejuízos?
J.A. - Não creio. Sou um homem que vive dos direitos autorais dos meus livros. Eu mesmo escrever, por exemplo, para revistas, jornais, faço isso muito pouco. Se eu estivesse no Rio ou em São Paulo estaria mais próximo de jornais e revistas. Mas, eu pouco colaboro. Em geral colaboro mais fora do Brasil, fora da Bahia, em geral na Europa. Fora disso eu vivo mesmo é dos direitos autorais dos meus livros. Acho que em qualquer parte onde more é a mesma coisa. Pago os mesmos impostos, more aqui ou em qualquer parte do Brasil.
A.M. - E por falar em livro, uma vez você disse que “Tenda dos Milagres” é o seu melhor romance.
J.A. - É.
A.M. - Por que?
J.A. - Eu acho que das coisas, dos livros que escrevi, é aquele que me parece mais importante, se algum tem importância esse é o que terá mais. É um relato da luta do povo baiano, do povo brasileiro por consequência, contra o preconceito racial, contra o atraso, na luta pela mestiçagem que eu acho uma coisa muito importante para o Brasil. É, eu creio, um livro que trata as qualidades maiores do povo baiano. Por isso é o livro de minha preferência, entre quantos escrevi. Continuo a acha que é a melhor coisa que fiz.
A.M. - De todos os seus personagens, qual aquele do seu melhor agrado, aquele que mais o acompanha?
J.A. - Eu diria que é Pedro Arcanjo, do “Tenda dos Milagres”. Pedro Arcanjo, eu creio, é um personagem complexo, que não é fácil, que não é simples. Diria que ele é uma representação do povo, não só nas suas virtudes iniciais como também na sua possibilidade de avançar.
A.M. - Como você vê o quadro atual da literatura baiana?
J.A. - Acho que há alguns escritores muito importantes, todos os conhecem, todos sabem quais são. Não vou repetir nomes desde as gerações que vieram do modernismo (ainda vivi, com toda a sua poesia, o mestre Godofredo Filho) até os jovens que estão aparecendo aí. Gente que me parece muito boa, muita gente, não é? Evidentemente nem tudo é bom. Sou muito otimista. A Bahia sempre deu uma poderosa contribuição para a literatura brasileira. E eu creio que neste momento você conta com um grupo de poeta de alta qualidade. Mas, sobre tudo me anima essa pletora de jovens que aparecem nos suplementos, fazem jornaizinhos, sai um numero, outro não sai mais. Tudo isso é muito importante.
A.M. - Quais os artistas plásticos e cantores baianos com os quais você mais se identifica?
J.A. - Me identifico mais com aqueles cuja obra decorre diretamente da cultura popular. Sempre defendi a tese de que a importância da cultura da Bahia provém de que ela nasce da criação popular. Ou seja, se você toma nossa escultura moderna, a nossa melhor pintura moderna, a nossa plástica em geral, você vai encontrar suas raízes no artesanato daqueles que fazem e faziam, emblemas e figuras para o candomblé, por exemplo, ou daqueles que faziam imagens católicas. Dessa cultura nasce ao meu ver, a arte plástica. A nossa literatura também está extremamente ligada à cultura popular baiana, à vida popular. A nossa musica, enormemente. Na musica essa ligação é vital, é total, é completa. É evidentemente como em todos os tempos e em toda a criação artística e literária, existe sempre dois pólos: uma criação que tenha suas raízes no povo e uma criação elitista que busca a...
A.M. - Você entende por elitismo a arte erudita?
J.A. - Não. Eu acho que a arte pode ser extremamente erudita. Não gosto é do termo “erudita”. Não estabeleço uma linha de separação na arte. Ou seja, uma arte popular é uma arte erudita. Por exemplo, uma musica popular é uma musica erudita. Acho que existe uma única arte, uma única musica como uma única literatura.
A.M. - A diferença, então, resultará de puro tratamento técnico.
J.A. - É, tratamento técnico e condições de cultura daquele que a realiza. Quando falo elitista eu falo, exatamente, no sentido da realização quando separa a obra da criação do povo da grande a quem ela deve ser devolvida. Porque, ao meu ver, a criação deve nascer do povo e ao povo deve ser devolvida. Às vezes ela nasce do povo e não é devolvida ao povo. É a isso que me refiro quando digo elitista. Por conseqüência, voltando à sua pergunta, os artistas plásticos e os cantores que mais me tocam são aqueles que estão ligados à vida popular, à criação popular. Citar exemplos é sempre ruim porque você comete injustiças.
A.M. - As omissões são sempre muito chatas. Falamos em técnica, em arte. Você fez “Quincas Berro D’Água”. O tema é apaixonante, coisa e tal, mas não ouve também intenção de revelar um domínio de técnica literária?
J.A. - Não. Eu nunca tive essa pretensão nos meus livros. Acho que cada livro exige uma determinada técnica, uma determinada experiência. Cada livro é uma experiência diferente. Evidentemente ele se beneficia de suas experiências anteriores, daquilo que você adquiriu com o conhecimento do seu oficio. Mas, cada livro exige de você uma nova experiência: o “Quincas...” eu fiz para repetir uma coisa que tenho dito mais de uma vez em meus livros. Coisas que é dita, sobretudo, no “Quincas...” e na historia do Capitão Vasco Moscoso de Aragão (incluída no volume “Os Velhos Marinheiros” - nota da redação). Por isso mesmo, inicialmente, eu reuni essas duas histórias num único volume. A coisa é dizer que o homem é capaz de construir seu destino e que o homem tem possibilidade de levar adiante o grande sonho humano de fazer alguma coisa além daquilo que limitações de toda ordem - sociais, econômicas, em fim, de todo o tipo - tentam impedir que ele faça. No caso de “Quincas...” isso é levado quase ao extremo porque Quincas realiza seu destino mesmo depois de morto. Isso o que quis fazer. Não quis dar nenhum show de técnica e nem isso me passa pela cabeça. Eu não me preocupo com isso quando faço um livro.
A.M. - Já se pode falar em poluição turística na Bahia?
J.A. - E eu pergunto se já se pode falar em turismo na Bahia...
A.M. - Falou-se em uns 800 mil turistas em 1977.
J.A. - Evidentemente, não se pode negar a existência de turistas na Bahia. Eles estão ai. Eles vêm. Mas o turismo apenas começa a se organizar como industria. A se organizar no sentido de que seja um fator ativo economicamente, um fator que traga - como traz em todas as partes do mundo, seja no mundo capitalista como no mundo socialista - benefícios para toda a Nação. Já há um caminho. Não há duvida que exista esse caminho, mas há muito o que fazer para que a gente possa falar, na Bahia, em termos de turismo organizado. Deficiência de varias ordem estão ai e todo mundo sabe. Mas, agora fala-se em poluição turística...
A.M. - Não haverá indícios? Coisas que desde já requeiram atenção, cuidados?
J.A - O turismo tem duas faces da medalha. Se o turismo é um elemento que defende o candomblé, as liberdades do candomblé, ou seja, defende o candomblé como item de interesse, ele pode, de outro lado, e sem duvida ele já o faz até certo ponto, influir de forma malsã sobre o candomblé e sobre todas as demais atividades desse tipo. E já influiu.
A.M. - Dê um exemplo.
J.A. - Vou citar um: o das chamadas “escolas de capoeira” que existiam anteriormente. Ainda existem escolas de capoeira, mas elas mudaram de caráter. As antigas escolas eram para aquelas pessoas, jovens ou não, que iam aprender a jogar capoeira como elemento de defesa. E aos sábados e domingos, de tarde, mestres de capoeira e seus alunos se reuniam para brincar de jogar sem nenhuma outra intenção senão a de se divertirem. Faziam o jogo da capoeira entre eles como um elemento de diversão, de lazer, de alegria. E eram assistidos por umas poucas pessoas do povo e alguns intelectuais que se interessavam por essas coisas, por esse assuntos. Como você, por exemplo, como eu. Hoje as escolas de capoeira continuam a existir, nelas as pessoas vão estudar, vão aprender, mas já não existem aquelas agradáveis reuniões de sábados e domingos. Elas desapareceram...
A.M. - Ou só acontece de vez em quando, mas raramente.
J.A. - Porque o turismo começou a invadi-las. Aquelas pessoas e os mestres de capoeira passaram a constituir grupo folclóricos - em geral pobres, em geral deficientes, um ou outro de melhor qualidade - para se exibirem para os turistas. Quer dizer, aí você tem uma mudança qualitativa, ao meu ver para pior. Eu não sou contra grupos folclóricos, acho que eles devem existir. Creio mesmo que eles devem ser prestigiados, de modo a se tornarem excelentes, mas sem que isso venha a destruir de uma vez por todas aquela oportunidade de lazer, aquela alegria que era a capoeira.
A.M. - De todas as personalidades internacionais que você já conheceu, qual a que mais o impressionou?
J.A. - Acho que morreu a pouco tempo aquele que foi o maior homem de nossa época, Charlie Chaplin. Não tive a felicidade de privar de sua amizade, mas estive com ele duas vezes. A ultima vez foi quando entreguei o livro de Walter da Silveira (“Imagem e Roteiro de Charlie Chaplin”, nota da redação), explicando quem era Walter, o estado de saúde em que se encontrava. Disse, então, que Walter ficaria muito feliz se uma carta lhe fosse enviada. E Chaplin escreveu. Este homem, eu acho, foi aquele que mais contribuiu, mais do que qualquer estadista, mais do que qualquer outro homem, para a Humanidade, no nosso século. Charles Chaplin... tive a honra e a felicidade, em minha vida, de ser amigo de grandes homens, Joliot-Curie,Ilya Ehrenburg, Pudovkin, Picasso. De Chaplin não fui amigo. A primeira vez quando fomos entregar a ele o Premio Internacional da Paz, que lhe fora concedido, em 1953 ou 54. E outra vez, já disse, quando fui levar o livro de Walter.
A.M. - Chaplin já então residindo na Suíça?
J.A. - Sim, na Suíça. Acho que este homem deu à Humanidade uma contribuição enorme, imensa, inigualável.