José Bonifácio de Andrada e Silva
Publicada no jornal O Tamoyo, de 02/09/1823 e republicada no livro: ALTMAN, Fábio. A arte da entrevista. São Paulo: Scritta, 1995, de onde foi extraída
* * *
José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o Patriarca da Independência, foi o primeiro brasileiro a ocupar um Ministério, o do Reino, empossado em janeiro de 1822. Neste cargo, ele comandou o movimento político em favor do trono de dom Pedro I contra a corte portuguesa. Foi autor de O Manifesto, de 6 de agosto, documento diplomático que apresentava o Brasil como nação soberana aos olhos do mundo. Em outubro de 1823, José Bonifácio e seu irmão, Martim Francisco, então responsável pelas finanças do país, foram demitidos depois de sucessivos confrontos com o dom Pedro, já Imperador Constitucional do Brasil.
O povo, incitado pelos próprios Andradas, exigiu que eles retomassem ao poder. Dom Pedro cedeu e os readmitiu. No entanto, a contínua tensão entre o Andradas e seus adversários políticos acabou provocando a dissolução da Assembléia Constituinte de 1823. Em novembro daquele ano, José Bonifácio foi preso e exilado na França. Retornou ao Brasil apenas em julho de 1829. Com a abdicação de dom Pedro I, em 1831, ele assumiu a tutoria dos filhos do Imperador, função que ocuparia até 1833, quando foi sumariamente afastado. Novamente detido, acusado de conspirador e perturbador da ordem pública, seu processo se estendeu até 1835.
Durante o período em que esteve na oposição, depois de sua demissão do Ministério, José Bonifácio fundou o jornal O Tamoyo, que circulou pela primeira vez em 12 de agosto de 1823. Nesta entrevista, umna das primeiras de que se tem notícia na imprensa brasileira e mundial, ele é chamado de o Velho do Rocio.
* * *
Como vossa mercê publica um periódico que eu muito prezo pelo puro brasileirismo que nele brilha, e porque com muito boa filosofia combate coisas sem caluniar pessoas, julgo quererá fazer o favor a mim, e à nossa Pátria, de publicar no seu estimável papel uma conversa franca e amigável que anteontem tive com este raro e ótimo patriota que é o nosso Velho do Rocio.
Eu, senhor redator, em melhores eras também freqüentei a alma mater Academia, que hoje, não sei com que razão, praguentos e descontentes chamam de decrépita, ignorante e poluta. Mas não querendo aumentar o número de Galopins que atulhavam em Lisboa as ante-salas dos secretários e ministros de Estado em busca de um minguado lugarinho de juiz de fora, fui-me escafedendo para a terra do Pão de Açúcar e fiz-me roceiro. Há anos que com meu trabalho vivo sossegado e com fartura. Porém, de quando em quando venho à cidade saber das novidades políticas do tempo e conversar com algum amigo que ainda conservo neste melhor dos mundos possíveis, segundo o doutor Pangloss. Entre estes poucos amigos conto desde Coimbra com este honrado cidadão, a quem o Brasil deve muito e muito. Logo que me chegou aos ouvidos uma confusa notícia de que ele tinha pedido sua demissão, bem como o seu digno irmão, o nosso grande financeiro (1), calcei as botas e vim correndo para a cidade a saber da realidade e circunstâncias de tão detestável fato.
Cheguei e logo caí doente, sem poder ir abraçá-lo como desejava. Entretanto soube que ferviam pasquins contra os Andradas e até me vieram às mãos várias folhas impressas cheias de infames mentiras e pilhérias de moleque, em que os caluniavam a bel-prazer. Ferveu-me o sangue de ler tanta miséria e tão pouca vergonha, mas consolava-me a esperança de que o nosso velho lançasse mão da clava de Hércules para derrubar de um golpe esses vis caluniadores, estendendo sobre a banca anatômica seus imundos escritos, para com o escalpelo da análise dissecá-los e esburgar-lhes os cariados ossos.
Continuou a minha doença e passou-se mais de mês sem eu poder sair de casa, e o velho calado sem responder. Enfim, pude enfiar o casacão e saí com a intenção danada de ir ralhar com ele e exprobar-lhe a sua falta de ânimo ou desleixo. Cheguei à porta, bati uma e mais vezes e ninguém aparecia. Afinal saiu um moleque que em língua preta (língua que fala também muita gente branca em tribunais) me disse que o senhor estava doente.
Não importa, vai dizer-lhe que aqui está F., e que deseja falar-lhe ainda que esteja a expirar.
Mandou-me logo entrar e o achei sentado numa cama de campanha com uma mesinha defronte, muitos papéis espalhados, e um livro grego aberto, que depois soube ser o Periplon de Hannon, que o senhor redator sabe muito bem ser o primeiro roteiro do descobrimento e navegação, mandado fazer pelo senado de Cartago ao longo das costas da África Ocidental. Recebeu-me mais esta vez com a mesma cordialidade antiga, e começando eu com muito fogo a dizer-lhe por que vinha vê-lo, deu uma risada e começou a sossegar-me com sua animada ironia socrática, que nunca abandona, senão quando se trata de honra e salvação de nossa cara Pátria. Vou referir-lhe em substância o que lhe ouvi em toda nossa conversação; porém devem me desculpar se não for exato na narração, porque nunca campei por ter boa memória.
Continuando a replicar-lhe, disse: "Pois então está resolvido a sofrer com pachorra estóica todos os impropérios e calúnias que esses miseráveis quiserem vomitar contra você?"
"Sim, senhor", respondeu-me, "porque eles mostram nisso o que são, e eu faço o que devo. Quer, senhor doutor esquentado, que a Lua se enfade contra todos os cães que lhe ladram? Não sabe que o telescópio do malvado faz-lhe ver manchas no Sol, onde não as há, e não as que lhe ficam pegadas no nariz? E então devo eu andar a quebrar óculos e ventas por todo esse mundo de Cristo? Decerto não nasci para isso: ora sossegue, meu amigo, sente-se e ouça-me a sangue frio. Eles não são os principais culpados, e vossa mercê saberá em pouco tempo quem é o autor de todo este ridículo espalhafato: Pater, dimitte ei, nescit enim quidfacit ...
"Meu bom amigo, sou já velho, tenho visto muito mundo dentro e fora da Pátria, e conheço os homens. Era impossível que não adquirisse no lugar que ocupei, e nas circunstâncias atuais, muitos inimigos. Basta refletir que, quem não quer, ou não pode, ser virtuoso e honrado, luta para que as grandes almas pareçam na mesma condição que eles. Os niveladores em política também o são em moral.
"Vossa mercê bem sabe que eu tive a desgraça de ser o primeiro brasileiro a ser ministro de Estado: isto não podia passar pela goela dos europeus, e o que é pior, nem pela de muitos brasileiros. Ajunte a isto que fui também o primeiro que trovejei nas alturas da Paulicéia contra a perfídia das cortes portuguesas; o primeiro que preguei a Independência e a liberdade do Brasil (mas uma liberdade justa e sensata debaixo das formas tutelares da Monarquia Constitucional); e nisto estou firme ainda agora, exceto se a salvação e Independência do Brasil exigir imperiosamente o contrário, o que Deus não permita.
"Acrescente vossa mercê que, quando cheguei em 17 de janeiro do ano passado a esta cidade, o príncipe, hoje imperador, havia recém-escapado de ir preso para Lisboa. Mas os Avilezes e Carretes, apoiados pelo Partido Lusitano do Rio de Janeiro, ainda ameaçavam furiosamente; e o pior é que os democratas assim o desejavam. Todavia, pelas medidas que se tomaram e em que tive muita parte, os janízaros fugiram das nossas costas, assim como a expedição que vinha reforçá-los.
"Quando o príncipe partiu para Minas a fim de pacificar e converter os facciosos, os chumbeiros* do Rio de Janeiro, junto com os anarquistas do Brasil, tentaram aproveimr-se desta circunstância para reduzir a mero presidente da Junta Provisional. Eu, que então estava à testa do Conselho dos Ministros, penetrei seus mistérios, desfiz seus projetos e concorri para salvar, mais esta vez, a cidade e o Brasil.
"Quando Sua Majestade foi a São Paulo ensinar e castigar brandamente alguns doidos alucinados pelos mesmos partidos desorganizadores, bramiram de novo contra mim os facciosos de toda a ralé e, na sua volta, porém, trabalharam tanto que conseguiram iludi-Io com palavras vãs. Então vi-me forçado a pedir minha demissão, porque não queria, nem devia, consentir que o reduzissem a mero imperador do Espírito Santo. Confesso que errei em ceder às vontades do povo e do monarca, pois devia antever que, quem fraqueja uma vez, pode também fraquejar uma segunda.
"Vossa mercê soube que perto de oito mil homens, com o Senado da Câmara e os procuradores gerais das províncias à frente, designaram a quatro ou cinco desgraçados (entre os quais alguns que em melhor siso e tempo tinham prestado seus serviços à causa do Brasil) como cabeças de desordem e anarquia, e pediram que se mandasse fazer uma devassa para se conheceram fundo seus cúmplices e projetos. A isto anuiu o imperador, e o governo se viu na obrigação de tornar medidas sérias e gerais contra uma conspiração que se dizia, e era de crer, estava já ramificada em muitas das províncias. Exigiu o sossego público, e até a necessidade de salvá-Ios do furor popular, que estes designados fossem interinamente mandados para fora do Império, conservando-lhes os seus soldos e ordenados.
"Se por efeito de devassa saíram pronunciados alguns outros, devíamos eu e o Ministério de Sua Majestade parar o curso da Justiça e usurpar o Poder Judiciário? De nenhum modo! Então o partido dos anarquistas encolheu-se com medo mas conservou in pectore a realização dos seus projetos para melhores tempos. Os chumbeiros, porém, exacerbados com os sucessos da Bahia e com a bravura dos bons brasileiros, continuaram em .seus planos infernais. Foi preciso então entregá-Ios a toda a vigilância da polícia e à vara rija da Justiça. O governo autorizado com o Senatusconsulto Romano - Providoant Consules, ne Respublica aliquid detrimenti patiatur - redobrou de energia e providências. Se praticasse o contrário seria traidor ao imperador e ao Império.
"Mas estas medidas de salvação pública, com que brandura não foram executadas? Eis aqui os meus crimes, e fui criminoso, confesso, não por ter aconselhado e mandado execumr, mas por ter sido brando e piedoso em demasia. Com efeito, nada disto bastou. Instala-se a Assembléia Geral Constituinte e os pés-de-chumbo, corcundas, áulicos e facciosos de todo o calibre, aproveitaram-se dos exagerados da Assembléia e da incauta ignorância política que nela havia (como sempre houve, e há de haver em todas as assembléias de qualquer nação que seja, presentes, passadas e futuras), formaram-se em falange cerrada e assestaram toda a sua infernal artilharia. E contra quem? Contra o Ministério que tudo sabia e aprovava? Não; contra mim somente, e contra meu irmão, a quem só temiam, e temiam com razão, porque nunca soubemos ser falsos ao nosso dever e ao bem da nossa Pátria.
"Eu não sei, meu amigo, o que será para o futuro; mas sei decerto que os facciosos e almas vis desta imunda cloaca, máxima dos romanos, conseguirão uma segunda vez enganar, deslumbrar e assustar o jovem imperador, que o céu não há de permitir venha a ser somente o do Espírito Santo de Mataporcos.Ah!, não consinta o céu que o chefe do Império e sua augusta família sejam obrigados (não sei por culpa de quem) a fugir um dia do Rio de Janeiro, a ir mendigar apoio pelas províncias agitadas e desconfiadas. Que negra fatalidade parece perseguir há tempos os Braganças! Eu tremo que os facciosos não aproveitem habilmente esta ocasião para realizar seus antigos projetos de desmembração. Os clubs agitam-se em suas cavernas tenebrosas: uns proclamam já declaradamente o chumbismo e a destruição da nossa Independência; e outros querem o absolutismo antigo, e as cebolas do Egito.
"Todos os partidos forcejam por corromper e fascinar a opinião do povo ignorante e ainda verde para uma santa e justa liberdade.A gente boa da capital vacila e anda temerosa, mormerite depois que uma nova proclamação sub-reptícia, contrária à verdade sabida, aos sentimentos das anteriores, e até à fala solene do Trono na abertura da Assembléia, tem espalhado desconfianças. Disto sabem aproveitar-se os inimigos ocultos do Império, que agora só fazem vociferar contra os Andradas. Pela minha parte, desprezo tão vis caluniadores e apelo para os documentos irrefragáveis que se acham impressos na Gazeta, no Diário do Governo, e em outras folhas do tempo, assim como nas secretarias de Estado. Estou certo que virá o dia em que os brasileiros honrados hão de fazer-nos justiça e estigmatizar com o ferrete da infâmia todos esses traidores, que pretendem iludir de novo a mocidade fogosa ...
"Descanse a chusma, porque, logo que me permitir a Assembléia, deixarei para sempre esta malfadada Corte, irei cuidar da minha saúde arruinada no torrão pátrio, irei gozar de ares mais livres e puros, de estios mais macios e curtos, onde me parece que o sol rutila claro, mas não queima. Ali no repouso do campo, que sempre amei, e que apenas encetei nos meus oiteirinhos de Santos em 1820, gozarei talvez de melhor saúde, e pelo menos de mais paz interna."
Aqui fez uma pausa o meu amigo, mas eu, que o queria incitar a continuar a conversação, lhe repliquei: "Então está você decidido a sofrer calado o que um bando vil de abutres intrigantes e velhacos continue a se precipitar sobre você como se fosse um cadáver de esterqueira?"
"Sim", me respondeu ele, "porque não quero alterar o meu sossego, que é a coisa mais substancial que há neste mundo: rem prorus substantialem, já dizia Newton de si e no seu tempo. Enganam-se estas gralhas grasnadoras se pretendem fazer-me sair ao terreiro dos gladiadores. Não quero dar nem receber novas cutiladas para divertimento da gentalha. Minha alma tem ainda elasticidade bastante para não se amoldar às calúnias, nem acanhar-se à má fortuna dos tempos".
"A voz da minha consciência brada-me a todo o instante que no desempenho de minhas obrigações públicas, se não fiz tudo o que queria, fiz tudo o que podia. Se os zoilos me caluniam, e se for julgado à revelia, tenho sangue frio bastante para desprezar injustiças e vilezas. Meu amigo, ainda há um Juiz Supremo que conhece os corações e que há de julgar com justiça imparcial. E quais são os fatos que contra mim alegam e provam? Ignoro-os: são meras calúnias e ridicularias de que me rio. Sonno picole coglionerie, que apenas me arranham a pele. Fiquem certos e consolados que, cansado de sofrer tanta intriga e cabala vil, já deixei para sempre um lugar que há muito deveria ter largado, se por desgraça minha não tivesse tanta bondade. Não levo saudades dele porque nunca dei peso ao fumo das grandezas humanas. É unombra, anzi aúna ombra un sogno un sogno, dizia o Tasso.
"Todavia sou sincero e devo confessar-lhe senhor filósofo da roça, que me arrependo sinceramente de ter sido tão fraco, de não saber dar ao povo e ao monarca um redondo não em 30 de outubro de 1822. Iludi-me, pois cri que os homens nascidos em certas classes eram capazes de amizade e singeleza.
"Continuei a amar, e folgo ainda de o dizer porque esta meiguice e condescendência não avilta, mas enobrece o coração. Cuidei que aqueles por quem me desvelava eram capazes de me reamarem, e paguei-lhes em retorno desta sonhada amizade e gratidão com uma [ma moeda de fé pura, de estima verdadeira e de limpeza de alma. Quantas vezes dizia-Ihes eu em meu peito o mesmo que o bom e honrado Sá de Miranda dizia, e esperava, dos amigos de seu tempo:
A vontade de vós seja estimada,
Porque em tão baixo tempo, em que pureza,
E em que obras não há, deve ter preço.
"Mas enganei-me, torno a dizer, assim como creio também que se enganou o poeta naquele tempo. Querem pois meus bons amigos verem-se livres do medo da ressurreição da carne? Obtenham da Assembléia a minha carta de aIforria, então só não sofrerei seus embustes e desaforos com paciência cristã, mas até lhes ficarei muito agradecido e os olharei como meus benfeitores. Senhor doutor da roça, vossa mercê me conhece há muito tempo, e sabe que uma amável e virtuosa companheira que tenho, um verdadeiro amigo (animal bem raro em nossos dias) e alguns bons livros são as únicas necessidades da vida que não posso ainda escusar.Acolher-me ao retiro dos campos e serras que me viram nascer e folhear ali algumas páginas do grande livro da natureza, que aprendi a decifrar com aturado e longo estudo, sempre foi uma das minhas mais doces e suspiradas esperanças, que praza ao céu possa eu ver de qualquer modo, contanto que seja bem cedo realizada.
"Fiquem sossegados esses senhores que deixei para sempre o Ministério e nunca mais serei juiz com tais alcaides, ainda que baixem novos cataclismos políticos. Lá se fiquem com seus botões. Cada vez mais me persuado que não nasci senão para homem de letras e roceiro como vossa mercê. No retiro do campo, meu bom amigo, terei tempo (que até agora sempre me tem fugido) de dar a última mão à redação das minhas longas viagens pela Europa, aos meus compêndios de metalurgia e de mineralogia e a vários opúsculos e memórias de filosofia e literatura, frutos de larga e aturada aplicação, os quais se não acudo já, e~tão em perigo de ser pasto de baratas e cupins. Se não servirem para o Brasil, como creio, servirão talvez para os doutos da Europa, que conheço e me conhecem. E que maior consolação pode ter um amante das ciências e boas artes que comunicar suas idéias e pensamentos a quem pode entendê-Ios e aproveitá-l os? É um prazer puro da alma espalhar pelo mundo o fruto de seus estudos e meditações, ainda sem outra remuneração que a consciência de fazer bem.
"O sábio despreza as sátiras e ingratidões de ânimos vis que não podem deixar de reputar-se, queifam ou não queiram, muito inferiores aos homens de virtude e de saber. Mas basta, senhor roceiro, estou cansado de falar e a erisipela não deixa de incomodar-me."
Calou-se então e maquinalmente abriu o livro de que falei e pôs-se a ler, mas logo o fechou. Eu não ousei interromper o seu silêncio porque o vi sério e reflexivO.Talvez alguma vista de olhos retrógrada sobre a paga de seus longos serviços, feitos a Portugal e ao Brasil durante a sua trabalhosa e afadigada vida, ocupava então a sua imaginação. Passados porém alguns momentos, abrindo um sorriso que me pareceu sardônico, disse-me:
"Amigo, então, que pensa? Ainda ousará acusar-me de falta de ânimo e de desleixo? Quererá ainda que compareça como réu, para defender-me perante o tribunal revolucionário dessa vil chusma de patifes e celerados, que tem o luciferino gostinho de morder e atassalhar com raiva hidrofóbica a reputação de qualquer homem sábio ou virtuoso; e que sem ter adquirido por merecimentos e serviços pessoais, por feitos extremados e insignes, o direito de julgar, ousam todavia chamar ao seu ridículo juízo toda a gente boa, que não pode deixar de desprezá-Ios e de mofar de seu pueril atrevimento? Os gregos, meu bom amigo, pais de todo o heroísmo, ciência e civilização, levantaram altares aos cidadãos beneméritos, e os romanos, seus discípulos, estátuas e troféus; mas a plebe da nossa terra só deseja levantar-Ihes patíbulos e forcas.
"Julguem-me como quiserem; brada-me a consciência dia e noite que fiz à minha Pátria e ao povo desta cidade todo o bem que pude e estava ao meu alcance. Se não me foi possível dar a última mão de estuque ao magnífico Salão Nacional, ao menos esbocei a parede. Se não achei fulcro sólido para apoiar a alavanca deArquimedes (Des ubi consistam, coelum, terramque movebo), paciência!!! Peço a Deus que faça aparecer homens mais ricos e mais bem herdados em largueza de virtudes, energia e talentos, os quais talvez sejam mais bem fadados do que eu fui. Mas temam-se e vigiem-se dos leõezinhos,lobos e raposas que andam às soltas e sem medo de montaria."
Fez aqui outra pausa, e o celeste lume do patriotismo que dentro o animava transluzia em seus olhos e semblante. Admirando sua mansidão e illosofia, não podia porém tolerar que tais patifes ficassem impunes e sem resposta alguma. "Não, meu Andrada", continuei eu ainda aceso em justa sanha. "É obra de misericórdia castigar os que erram (Oderunt peccare maU formidine poenae) e, no silêncio das leis, na presente desaforada anarquia, creio que d. Camarão furibundo devia exercitar o seu oficio. Pelo menos desejo que o porrete de ]uvenal lhes dê quatro latagadas na nuca para começo de ensino."
A isto me atalhou o nosso velho e me disse:"Não meu bom amigo, seja mais humano e pachorrento. Desconhece-se de homem que não sabe perdoar. Se o imperador Tito, bom pagão, não fazia caso, diz Xefelino, de injúrias e menoscabos, porque nada obrava que merecesse repreensão; por que não deverá cumprir tão generoso exemplo um caipira de São Paulo, homem de bem e bom cristão, que não é nem deseja ser imperador?"
Aqui lhe fui à mão, e lhe disse:"Meu bom amigo, é debalde questionarmos mais, pois não convence a um bom pecador velho, como eu, acostumado a surrar negros maus, quanto merecem."
"Pois bem, senhor doutor da roça", me respondeu, "também eu homo sum, e não anjo, e ainda conservo uma esperança de vingança digna de mim e útil aos outros. Quando eu, no meu retiro dos oiteirinhos de Santos, ou em Monteserrate, na Pama1ba, entre os meus livros, pedras e reagentes químicos, repassar pela memória os honrados amigos que aqui deixo: corcundas, pés-de-chumbo, anarquistas, ladrões, alcoviteiros e outras lesmas utriusques sexus, que se crêem gente de polpa, então me consolarei ao menos com a vingativa esperança de que seus poucos miolos, metamorfoseados no túmulo em matéria sebácea, segundo as observações do meu defunto mestre Fourcroix, poderão ser ao menos, depois de mortos, úteis para darem luz afogueada em alguma estrebaria de bestas de alquilé. E será justo que em vez de epígrafe infernal que se lhes deveria pôr na campa: Hic sempiternus borros inhabitat, se ponha logo Fiat lux."
A isto dei uma grande gargalhada e abracei ao meu amigo cordialmente; despedi-me e vim logo escrever o que lhe tinha ouvido. Mas não afianço, senhor redator, que as frases e pensamentos sejam em tudo, e por tudo os mesmos que lhe ouvi; e pode ser que me sucedesse o mesmo que, para bem de uns e mal de outros, sucede com as falas dos senhores deputados no Diário da Assembléia.
Seu venerador,
Tapuia
_______
* Pés de chumbo: forma como os brasileiros eram chamados pelos portugueses
(1) autor faz referência a Martim Francisco, irmão de José Bonifácio e ministro da Fazenda.
|