Joseph Conrad
Entrevista imaginária concedida pelo escritor britânico-polonês Josef Teodor Konrad Nalecz Korzeniowski, quando já laureado como romancista visitou os EUA. A entrevista realizou-se na residência de seu editor americano, F.C. Doubleday, do qual foi hóspede em Long Island, Oyster Bay, em Effendi Hill, em 3 de março de 1923. Elaborado por Rubens Teixeira Scavone e publicada n'O Estado de São Paulo, de 15/11/1981.
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- Antes de mais nada, certa observação pessoal, indispensável ante o que observei quando da sua chegada, por ocasião do desembarque em Nova Iorque. A pequena multidão, ávida em aproximar-se, mais de uma dezena de fotógrafos, repórteres. Eu mesmo teria tido dificuldades para acercar-me, não fosse Mr. Doubleday. Mas mesmo à distância consegui identificar em sua atitude algum constrangimento, sobretudo ante as câmaras. Desculpe-me, mas a indagação é uma preliminar necessária. O senhor é contrário à publicidade, não gosta de ser fotografado? Por quê?
(Joseph Conrad, que estava sentado numa confortável poltrona de junco, no amplo terraço que dominava a estreita baía, ensaiou um sorriso. Sua cerimônia exagerada, a polidez ostensiva, seus gestos largos e veementes, eram mais próprios de um latino. Ele se conteve, mediu a resposta. Elevou a mão direita como que acariciando o cavanhaque esbranquiçado, ao mesmo tempo em que seus pequenos olhos castanhos comprimiram-se, como que buscando proteção contra a reverberação intensa que se desprendia das águas do canal. Os olhos ligeiramente amendoados, curiosamente semelhantes aos de certas raças do Oriente, abrigados por enormes pálpebras, vincadas de pregas.)
O senhor acertou. Não me sinto à vontade sob as lentes, não gosto de ser fotografado. Mais de uma vez impedi que minha imagem figurasse em meus livros. Admito que sempre fui reservado, meu senso de privacidade talvez alcance os limites do patológico. Minha face nada tem a ver com meus escritos. Acho que os leitores têm que se interessar apenas pelo que escrevi, desligados do homem. Depois que a última página foi composta o escritor não mais conta. Talvez uma decorrência de meus hábitos marítimos. Quem sabe a persistência da solidão, do isolamento que envolve o ato de comandar, sobretudo o mar, o mar. Sou avesso à publicidade, a maior virtude do homem é a discrição.
- Aí está um bom começo para nossa conversa, não vamos nomeá-la de entrevista. O senhor se considera um romancista do mar?
A pergunta é vaga e ao mesmo tempo perturbadoramente ampla. Que é ser romancista do mar? Lembro-me que em certa época, quando dos meus primeiros trabalhos, uma senhora de projeção nos meios literários verberou minha literatura. Pretendeu que eu me inspirava em povos estranhos, em regiões remotas, nutrindo-me de personagens nem sempre civilizados. Chegou a chamar minhas estórias de "incultas", classificando-me como escritor "exótico". Penso que no meio disso ela incluía o mar. Mas que é ser um escritor do mar? Não sei. Não nego que meus trabalhos mais conhecidos relacionam-se com navios e viagens. O senhor deve saber: O Negro do Narciso, Tufão, Linha de Sombra, Juventude ... Meu livro mais conhecido, Lord Jim, relaciona-se intimamente com o mar. Mas, insisto, que é um romance do mar? Para mim o mar é cenário vazio, contudo palco adequado para o encontro crucial com o homem. As embarcações, meros pretextos, processo para possibilitar perquirições anímicas. A higidez líquida, condição primária para o jogo sutil da imaginação. O líquido como essência vital, a morte latente. A tensão que existe aderida à motivação de todos os marinheiros, o mal como reflexo de tudo que está sepultado no subjacente. O senhor deve conhecer: intitulei certa obra - O Espelho do Mar. Cristalino, perfeito, que nos devolve a imagem indeformada do íntimo das criaturas. O mar como símbolo da vastidão psíquica, da solitude, criador e destruidor de ilusões, veículo de desencanto e, sobretudo, filtro da realidade, a mais tenebrosa de todas, a engendrada pelo cérebro. Mas minhas estórias não são sobre o mar, e sim relatos básicos sobre a vida. Escritor exótico? Contento-me em acolher todos os mortais comuns, em qualquer parte do globo. Em mansões ou em tendas, nas ruas em meio ao nevoeiro ou em florestas, ocultos pela linha escura dos pântanos ou na vasta inquietude oceânica. Literatura inculta? Isso não existe, em absoluto. O homem é o mesmo em toda a terra, o que conta é seu conteúdo de humanidade, entende?
- Gostaria de saber alguma coisa sobre suas origens familiares, sobre sua infância. Afinal não saber mos muito, apenas que foi marinheiro, capitão.
Nasci em 3 de dezembro de 1857, em Berdichev, antiga província ucraniana da Polônia. Meu pai tinha uma vasta propriedade rural e uma irresistível atração pela literatura. Foi por isso que, quando eu tinha três anos, nos mudamos para Varsóvia. Mas meu pai não se envolveu apenas com literatura. Ligou-se a um grupo radical de revolucionários na luta eterna contra a Rússia. Foi preso distribuindo manifestos subversivos, exilado com toda família em Vo logda. E nós, que sempre prezamos nossos longos e tradicionais apelidos, passamos então a ter apenas números na tundra gelada. Meu pai Apolo passou a ser o número vinte e um; minha mãe Evelina, o vinte e dois; e eu, filho único, o vinte e três. Meu pai teve assim mais tempo para realizar seus sonhos: traduzir Hugo, Vigny, sobretudo dissecar Shakespeare. Sabe, William Shakespeare foi meu primeiro e maior mestre, depois é que vieram os outros.
- E o mar, quando o viu pela primeira vez?
(Joseph Conrad agitou-se, buscou outra posição na poltrona. Seus olhos miúdos ganharam certo brilho. Livrou-se de sua contenção inata. Alijou-se da rígida etiqueta, predicada pela educação pátria. Os gestos, a tradição medieval ainda intacta, o gesticular, complemento indispensável à palavra. A comunicação emotiva e não apenas o informe, frio e impessoal. Agitou os braços longos, as mãos abriam-se e fechavam, como se manipulasse as palavras.)
Minha mãe morreu em 1865; deixaram então que fôssemos para o sul da Rússia. O mar Negro. Àguas pesadas, primitivas. Pela primeira vez contemplei a imensidão ilimitada...
- Mencionou Shakespeare, disse dos outros. Que influências recebeu?
Minha paixão inicial foi pela geografia, pelo conhecimento do mundo. As memórias dos grandes descobridores. O escocês Mungo Park e a exploração do Niger. As aventuras na fronteira do Saara, a luta com os tuaregues, a África Ocidental, a penetração até Bamako, o desaparecimento misterioso ao avançar para as origens da "grande água". James Cook na amurada do Resolution divisando os contornos imprecisos de ilhas não cartografadas: Owhyhee, Papeete, Matavai, Rarotonga. A atração dos nomes bárbaros; ilhas, estreitos, angras e canais, baías e promontórios, o suporte geográfico de meus devaneios. E como complemento, meus escritores queridos da juventude: Fenimore Cooper e Marryat, a aventura como justificativa perpétua para as ações. Mais tarde o aprendizado formal com os franceses. Flaubert e Maupassant, os labirintos da técnica.
- Fale-me de seu tio materno, Tadeusz Bobrowski. Até que ponto o orientou, depois da morte de seu pai?
Quando meu pai morreu, eu tinha onze anos. Fui então entregue à guarda de meu tio, do qual, mesmo distante, nunca me desliguei. Ele era um conformado. Sábio, discreto em seu nacionalismo, ciente de que nossa pátria cumpria um doloroso destino histórico - estar sempre subjugada. Seu comportamento era bem distante do inconformismo hostil de meu pai. Mantendo-se numa Polônia ocupada, Tadeusz conseguiu reprimir seu patriotismo num plano íntimo, conquanto angustiante, mas o suficiente para lhe resguardar a honra, estímulo ilusório para sobreviver moralmente. Quanto a mim, arraigado à luta paterna, nunca me esqueci do desterro de Vologda e das condições que motivaram a morte de minha mãe. Deixar a Polônia, abandonar a terra natal degradada, custasse o que custasse. Meu tio tentou dissuadir-me. Chegou a proporcionar-me uma viagem pela Suíça e pelo Norte da Itália. Deu-me um acompanhante, velho amigo incumbido de missão especial, dissuadir-me de meus intentos, demover minha intenção de me fazer ao mar. Foi no verão de 1873. Mas, quando me vi aos pés do Adriático, junto a Veneza, assumi o destino. Em outubro de 1874 ingressei no trem que me conduziu a Marselha, entrando no vagão como quem penetra num sonho. Afinal, levava uma carta de recomendacão assinada por meu tio e que me possibilitou a primeira viagem às Indias Ocidentais, aquele fascínio inaugural que desvendei em Lord Jim, em Juventude. Contemplava ao longe o esplendor brumoso do oceano com a esperança de uma vida excitante num mundo sem compromissos.
- Quando escreveu primeiro livro?
Não, não foi nessa época, foi bem depois. Como marinheiro, realizei inúmeras viagens. Cheguei até a possuir, como integrante de um sindicato, uma pequena embarcação, o Tremolino. O Mavis foi o primeiro navio inglês no qual me engajei. Conheci então a Inglaterra, em abril de 1878. Depois da primeira ida à Austrália, passei a servir como oficial, descobri assim o Indico, o arquipélago Malaio, o golfo do Sião.
(O entrevistador não se conteve, parou de anotar. Falou baixo, temeroso de interromper as revelações.)
- Sim, percebo. O período mais importante: Sumatra, Java, Bornéu, aqueles lugares, aqueles nomes: Samarang, Sourabaya, Macassar, Sambir, Patusan...
Meu primeiro escrito foi A Loucura de Almayer. Iniciei-o em 1889. Devo antes confessar que entre 1866 e a época na qual comecei essa estória as coisas foram difíceis, piores do que no tempo de Marselha. Digamos, eu estava imerso numa profunda e desesperançada crise. Desilusão? Fastio da vida marítima? Afinal eu era um exilado, renegara a luta de meu pai. Meu tio insistia em minha volta, mas não lhe dei ouvidos. Prefiro não aprofundar esse particular. O senhor mencionou lugares, situou meus personagens, concluo que conhece bem minha obra. Deve então saber que todos os meus heróis eram exilados, como eu. Lembra-se? Jim, Lingard, o narrador Marlow, no arquipélago malaio; Stein, Almayer, Willems, nas ilhas do extremo Oriente; Heyst, Lena, Schomberg, segregados em Samburam; Kurtz, na âmago da selva africana. E todos com o mesmo traço em comum, a impossibilidade do retorno. Como eu, Konrad Korzeniowski, desterrado voluntário de Cracóvia, cidadão britânico por opção.
(O escritor lançou-se a uma ligeira pausa. Quando recomeçou percebia-se melhor seu sotaque áspero de estrangeiro, única condição que o distinguia dos britânicos.)
Bem, isso não importa agora. Falei em anos de crise, da angústia insistente que me acometeu. Foi quando comecei a escrever a estória de Almayer. O mar fora em verdade transfigurado pela minha imaginação. Aquele conto, Juventude. Tudo foi bem real. Eu falava pela boca do narrador, Marlow. O navio arruinado era o Palestina, chamei-o de Judéía. Sim, a imaginação. Como anotei em Lord Jim, ela é inimiga do homem. Empalidece na anemia das emoções. Mas eu havia descoberto que não havia nada mais feiticeiro, mais desencantador, mais escravizante do que a vida no mar. A mágica monotonia da existência entre o céu e a água conduz a um desvalimento mortal, a um vácuo psíquico. E sabemos que a natureza detesta o vácuo. Recorda-se do Pária das ilhas? O mar por sua salinidade corrói, não só as obras vivas da embarcação mas também nosso corpo, por fora, conquanto acalente por vezes a nossa alma. Comigo aconteceu o contrário. O grande mistério que eu entrevia nas águas dissipou-se. Como todos os mistérios passou a viver somente no coração dos seus adoradores. Mas eu não mais pertencia a essa legião, a confraria oceânica.
(Nova pausa. As mãos do escritor subiram em paralelo e se mantiveram frente a frente ligeiramente curvadas. Como se amparassem algum objeto frágil: um pássaro ferido, uma flor desabrochada, uma esfera de cristal. Recomeçou então em surdina, como que ignorando a presença do entrevistador.)
Violei muito de minha intimidade quando escrevi A linha de sombra. Antes eu exultava em pleno sol dos trópicos, deslumbrado ante as plagas do Oriente. Mas existe certa maldição sob o círculo equatorial. A escuridão latente, o anticlímax. Quando da crise eu penetrara no limite umbroso. O eclipse, o disco solar já se afogara sob o negror das águas. Eu sufocava nas trevas, aviltado e sem rumo, à deriva em meu destino. Quando comecei a escrever o relato de Almayer não tinha propósito definido. Escrevia para me entreter, como lenitivo para minha angústia. Tanto assim que o manuscrito ficou esquecido por muito tempo. Em fins de 1891, quando eu era o primeiro-oficial do Torrens, no curso da Austrália, mostrei alguns capítulos a um ex-estudante de Cambridge. Espantei-me: ele foi lacônico em suas observações, mas classificou o trabalho de "distinto", "perteito", "realizado". Só em 1895; porém, instado por meu amigo Edward Garnett é que o publiquei, no mesmo ano em que Tomaz Hardy editava Judas, o Obscuro.
- O Pária das ilhas foi sua segunda obra? Demorou também muito tempo para ser escrito?
Ao contrário. Sob o estímulo crescente de Garnett, terminei-o mais ou menos em um ano. Foi a obra que logo me valeu aquela qualificação de "escritor exótico": Willems, o renegado pelos brancos, o processo degenerativo que o transformou num pária. A narrativa do menino foragido do lar, desertor do navio holandês e que foi acolhido, descalço e faminto; por Tom Lingard. Mas que num certo estágio da vida foi aos poucos se atolando, no opróbrio. Inspirei-me num modelo vivo, uma criatura misteriosa, nômade nas ilhas malaias. Esse foi um texto no qual empenhei muito de minha imaginação.
- Mencionou Tom Lingard. Esse personagem não aparece em mais de um livro?
Sim, foi o núcleo de mais de uma obra. Nasceu com a Loucura de Almayer, reapareceu na estória de Wilems-• Jim? Lá está a resposta. Não aceito nenhum favoritismo, na vida pública ou particular, muito menos nas sutis relações de um artista e sua criação. Digamos que tenha algumas preferências, mas elas não são imutáveis. Não se pode julgar um escritor por uma só obra, apenas pelo conjunto.
(O entrevistado deteve-se numa curta pausa, cerrou os olhos por al~s instantes, as pregas. mais se destacaram sobre as pálpebras. O sol começava a precipitar-se sobre as águas do canal de Long Island e a luz oblíqua contribuiu para ressaltar naquele rosto a marca veemente dos anos.)
Digamos, sem ordem de preferência: Lord Jim, O Negro do Narciso, O Coração das Trevas, trabalhos longos. E, sem dúvida, aquela confissão que foi Juventude. Uma frase dessa narrativa contém tudo, o discurso de um jovem ante as promessas da ilusão que se abria. Lembra-se, as palavras do meu narrador Marlow? A perspectiva da visão inaugural do Oriente. Perfumado como uma flor, silente como a morte, como uma tumba, penumbroso. Lord Jim é o drama da perda e da tentativa de reaquisição da honra. O jovem imediato num momento de perigo deserta da embarcação, do Patna, que considerava perdido. Salva-se num bote e deixa os passageiros, árabes miseráveis em peregrinação a Meca, entregues à sorte. Mas o navio, magro como um lebréu, corroído de ferrugem como um velho. caldeirão, sobrevive ao naufrágio. E pelo resto da vida o covarde Jim tenta a expiação, carregando por toda a Malásia o peso de sua culpa, o fardo do homem. branco, numa demanda impiedosa de redenção. Foi das minhas obras a que mais sucesso encontrou, não raro sendo nomeada como "mórbida". Mas pode haver morbidez maior do que a perda da dignidade?
- O senhor falou em Juventude, o narrador Marlow surgiu nesse conto?
Sim, em junho de 1898. Marlow foi essencial em Lord Jim e Coração das Trevas.
- Fale-me sobre ele, Marlow existiu?
Marlow foi certo expediente, recurso, talvez uma defesa que criei contra mim mesmo. Um espírito familiar, demônio murmurante, desdobramento do meu eu, para assombrar meus momentos de opressão. Alter ego, e posso assim elogiá-lo. Marlow, o mais discreto e compreensivo dos mortais, digamos um assistente, auxiliar para que eu pudesse desenvolver minha arte. Ele sempre me fez sentir à vontade, maneira estranha e conspícua de fazer com que meu espírito se desdobrasse.
- Alguns críticos pretendem que Marlow representou a parte britânica de sua personalidade. Manifestação bretã autêntica, impossível de fundir-se com o polonês emigrado.
O polonês emigrado. Posso ir mais longe ainda. O senhor deve saber que alguns críticos viram nos remorsos de Tim as minhas próprias angústias. Tuan Jim abandonou o navio ante a iminência do desatre: eu teria feito o mesmo em relação à minha pátria. Chegaram a ver no nome da embarcação, Patna, pela letra inicial o símbolo de minha Polônia.
- Permita que lhe dê a minha interpretação. O senhor mencionou o estado opressivo que o possuiu depois que se enfartou dos mares. Digamos que com A Loucura de Almayer morreu o marinheiro e nasceu o escritor. Marlow não surgiu com a primeira estória marítima, a mais pungente, Juventude? Não teria Marlow sido assim a imanência do marinheiro que passou a coexistir com o romancista, espécie de simbiose que possibilitou a sobrevivência do escritor?
Jovem, o senhor conhece bem a minha obra, estou surpreso. Não sabia que aqui na América tinha enredado tão bem alguém. Admito sua proposta. Talvez, quem sabe.
- Marlow no Coração das Trevas tem um papel relevante, foi quem encontrou Kurtz. O senhor se valeu de alguma experiência pessoal africana?
Na primavera de 1890 embarquei para o Congo, procurava realizar um velho sonho. Posso dizer-lhe que antes dessa viagem eu era apenas um simples animal, depois tornei-me um iniciado na escala nos sentimentos humanos. Senti o primitivo, o significado da palavra África. Essa estória conta a decomposição de um homem. Do civilizado que retoma às origens, que reverte ao mais arcaico estágio de selvageria. O belga Kurtz, mercador de marfim, desaparece na imensidão ignota. Marlow lhe vai ao encalço. Kurtz é encontrado ,mas o civilizado já havia expirado há muito. Marlow encontrou apenas certa criatura brutalizada pelo meio, debatendo-se na mais inexprimível degradação. O senhor se lembra? Kurtz adorado pelos nativos como um deus encarnado, responsável pelas cabeças empaladas ao redor da aldeia, criador de ritos inominados. O coração das trevas, o butim que me coube dessa aventura africana, a novela na qual mais me acerquei da verdade. Digamos, uma incursão ao Hades, Orfeu descendo ao inferno, os subterrâneos que jazem em todos nós, a estagnação morna da selva tropical apodrecendo o espírito. O horror, o horror!
- Recordo-me da insinuação inicial contida no Negro do Narciso, que cuida também de uma viagem. O imediato da embarcação, em passos largos, deixou a luz da cabina para as trevas do “quarter deck”. É evidente o intuito simbólico.
Sim, a intenção simbólica. Acho que raramente uma obra de arte se concentra num único significado ou numa só conclusão. O caráter simbólico é o mais adequado à realização artística. A viagem do Narciso não esconde certa preocupação metafísica. Poderia falar numa necromaquia, pois o negro James Wait afinal já estava morto quando se engajou no Narciso.
- Referiu-se ao sentido da obra de arte, qual então a missão do artista?
O artista como, como o pensador ou o cientista, deve fazer da verdade seu único propósito. Marcado pelas aparências do mundo, o pensador especula pelas idéias, o cientista pelos fatos. O criador fala com autoridade ao senso comum. Proclama intuitos de paz ou os desejos gerados da inquietude, algumas vezes resvala ante preconceitos, não raro tangencia temores e com freqüência se curva aos egoísmos. Mas sempre demanda nossa vontade de acreditar. Em outras palavras, o artista penetra naquela província secreta de tensões e embates. Perquire sobretudo a aptidão de aceitar o maravilhoso, a fábula, o insondável que envolve a vida. Vulnera nosso conceito de piedade, tenta conceituar a beleza. Busca formalizar o sentimento latente de solidariedade que ocorre em toda a criação. P\ra mim esse é o apelo fundamental. A sutil mas invencível convicção de solidariedade, indisponível na solidão dos humanos. Solidariedade nos sonhos, na alegria e nas aspirações, no medo e na ilusão, na esperança. A arte como um liame amparando as criaturas. Os mortos aos vivos, os vivos que virão depois.
- O senhor acha que atingiu seu objetivo, que foi compreendido?
É certo que sempre desejei um grande público, meu trabalho resistindo ao tempo. Qual o artista que assim não pretende? A literatura é obviamente apelo aos sentidos, se busca atingir o mecanismo secreto às respostas emotivas. Tomei pois determinadas providências em meus escritos. O imperioso da palavra exata, segura, precisa. Escrever com arte nada mais é senão transformar a energia nervosa em frases. A mesma injunção da cor da forma ou dos sons quando atingem a condição de arte. Pois literatura nada mais é senão o ajuste perfeito entre a forma e a idéia ou substância. A forma, pela conjura da palavra, a captação de certo instante evanescente na vulgaridade do cotidiano. As palavras, as palavras antigas. Tão deformadas, gastas pelo uso, corroídas de limo pela inadequação, deformadas em seus significados pelo descuido dos homens. Quando eu as conclamo nada mais realizo senão valer-me do poder oculto que elas encerram. Devo fazer O leitor sentir, compreender, se possível ver. Quanto à substância, sempre procurei recordar que a humanidade integra uma cadeia. Não sei de exemplo melhor do que o encontrado numa embarcação. Num oceano de calmaria ou num estreito tempestuoso, como procurei realizar em Tufão. Esse vínculo que se origina da faina, em qualquer ato insignificante do existir, mas que conserva os homens irmanados à espécie, ligando por sua vez a humanidade ao mundo visível. E é por essa raiz comum que todos os meus personagens, com maiores ou menores variações, nas margens do Pantai ou numa palhoça em Madura; num hotel em Samburam ou numa viela no Soho; num armazém em Patusan ou no passadiço do Judéia, se debatem contra os mesmos verdugos: lealdade, disciplina, responsabilidade. Sentimentos coletivos, expressos na entidade maior que atormentava Jim em seu nomadismo mercantil pelos cais do Oriente: a consciência.
- E a verdade?
Meu pai tinha um amor imenso por Shakespeare. A verdade, ouça lá. A vida é realmente um sonho esquivo, fugidio e que deve ser reformulado pela imaginação. Pois é confortante suprir a vacuidade existencial. Consolo e alento num universo onde o mistério talvez exista apenas na alma do perquiridor. A única verdade é aquela que podemos encontrar em nós mesmos. Afinal, somos todos espelhos. Fui sempre um exilado. Todos os meus heróis padecem desse mesmo malefício, até a mais pura e inocente de todas as criaturas, Lena. Lembra-se, em Vitória? Toda a humanidade está exilada no cerne de um vasto enigma. Quem somos? Recorda-se, em Lord Jim, da derradeira visão de Marlow, quando Jim foi desaparecendo a distância, diluindo-se na luz crepuscular? Pois bem, meu jovem, somos assim, com todo o nosso írrito orgulho. Como a última imagem de Jim; minúscula mancha branca que apenas reflete a luz fugaz do mundo, no qual o negrume é a única e contingente verdade.
(O escritor silenciou, o entrevistador viu que o diálogo terminara. Joseph Conrad passou a ignorar a presença do estranho. Levantou-se, acercou-se do gradil do _ terraço, fixou-se na paisagem. A luz fugira, mas o escritor conseguiu distinguir um ponto bruxuleante, pelos lados de Lloyd Neck, talvez uma escuna que avançava em sua rota.)
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