Volta para a capa
Grandes entrevistas

Juan Rulfo

Entrevista conduzida por Bella Josef em data não divulgada e publicada no livro da autora Diálogos oblíquos. Rio de Janeiro, 1999.

Apresentação:

O escritor mexicano Juan Rulfo veio pela quarta vez ao Brasil - considerao por ele como um "país mágico, o mais interessante da América Latina, com sua gente de temperamento amável e hospitaleiro". Para recebê-lo, o Rio se engalanou com um céu muito azul, e o sol estava muito quente quando, às 10 hs., Rulfo chegou sao hotel. De terno cinza de lã, dava sinais de cansaço, mas um sorriso quase infantil iluminava seu rosto. Uma vez rompida a couraça com que costuma se defender do assédio de críticos e jornalistas, se mostra afável, irônico, brincalhão. Dissemos: "Você parece mais moço". Ele respondeu: "Que nada, ya me llegó la antiguedad". Considerada de grande importância, a obra de Rulfo é, no entanto, pequena. Em 1953, publica El llano en llamas (O planalto em chamas)

E, em 1955, Pedro Páramo, ambos traduzidos para o português. Depois disso, lançou apenas, em 1980, El gallo de oro y otros textos para cine, coletânea de roteiros verdadeiros poemas em prosa. Juan Rulfo nasceu a 16 de maio de 1918, em Acapulco, município de Sayula, estado de Jalisco, México. Em 1925, seu pai foi assassinado por um peão (entre seus personagens, destacam-se os órfãos, em busca de sua identidade, em busca de si mesmos). A família se muda para Guadalajara e, com a morte de sua mãe, a avó se encarrega da educação de Rulfo. A obra de Juan Rulfo é ao mesmo tempo moderna, renovadora e tradicional. Os grandes mitos universais estão aí representados, o que lhe permite ampliar o horizonte de seus seres, pela incorporação da temática rural mexicana a um contexto universal. Quando Juan Rulfo diz que pretendeu dar vida a um povoado morto, acreditamos que ele foi mais além: deu vida a todo um continente.

 

- O que está fazendo atualmente? Tem outros livros prontos ou em preparo?

 

Estou editando livros de antropologia social (há 22 anos dirige o Departamento Editorial do Instituto Nacional Indigenista), arrumando tradutores, revendo, escrevendo prólogos e notas. Meu problema é que estou completamente ocupado com essas edições, e é difícil trocar a mentalidade de uma ciência técnica para a literatura, que é outro mundo.

 

- Mas, com isso, seus leitores sofrem muito. Há anos estamos esperando pelo menos os dois livros da publicação já anunciada, La cordillera e Dias sin floresta.

 

Vou aposentar-me do cargo este ano e me libertar para poder escrever. La cordillera, um romance, joguei no lixo, não existe mais.

 

- Corria o boato de que você o havia entregue a um editor e o pediu de volta.

 

Não cheguei a entregar. Quanto a Dias sin floresta, é uma coleção do contos. Breve sairá.

 

- Por que demora tanto?

 

Sou muoito exigente comigo mesmo, tenho uma autocrítica muito forte. Quando estava no curso preparatório, escrevia com estilo retórico. Não era assim que eu queria dizer as coisas. Meus contos de O planalto em chamas não são os primeiros que escrevi. Os que você conhece são o resultado de um grande esforço para dominar a técnica, o resultado de minha vontade de superar um estilo artificial.

 

- Sabemos que leu muito, principalmente obras de ficção. O que destacaria nestas leituras?

 

Ouvi muitas vozes e continuo ouvindo-as: Virgínia Woolf, Marcel Proust, Knut Hamsun, o que você quiser... A Bíblia e os hinos de Prudêncio. Minha primeira grande leitura, a que me abriu os olhos, foi O retrato do artista quando jovem, de James Joyce. Mas, entre o coro de todas essas vozes universais, voltei a ouvir uma voz profunda e obscura. Talvez a de um homem velho, que está junto ao fogo... E, acredite ou não, essa voz predomina no coro e é a do verdadeiro, a do único solista em que acredito, porque me fala do mais profundo do meu ser e de minha memória.

 

- Costuma se falar da influência de William Faulkner em sua obra.

 

Isso foi atribuído a mim e a Revueltas. Eu li Faulkner a posteriori, para saber onde estava a semelhança. A influência que mais reconheço é a dos escritores nórdicos e da África negra.

 

- Você diria que Guimarães Rosa é o “Ulisses americano”?

 

Ele é o melhor romancista da América Latina deste século.

 

- E os outros brasileiros?

 

Os outros vem depois dele.

 

- E o Nobel? Qual o brasileiro que o merece?

 

Guimarães Rosa o teria merecido. Agora, poderia ser Carlos Drummond de Andrade.

 

- E Garcia Márquez ?

 

Está bem dado, ele merece.

 

- Como vê o relacionamento entre os países da América e o Brasil?

 

Continua o mesmo problema de isolamento, a mesma situação de há muitos anos. O Brasil é outro mundo, os demais têm uma história político-social comum, quase todos se tornaram independentes ao mesmo tempo... O que isola o Brasil é o idioma.

 

- E a dificuldades econômicas que atravessam?

 

É um problema mundial, geral. Como países subdesenvolvidos, sentimos mais.

 

- O que desejou expressar, quando escreveu Pedro Páramo?

 

Pedro Páramo expressa o desejo de fazer viver de novo um povoado morto – que volta a viver na imaginação de meus personagens. Quando eu era criança vivia num pequeno povoado que me parecia, como é natural nas crianças, o melhor do mundo. Quando voltei já adulto, descobri que não era tão grande nem tão importante como eu o havia imaginado; além disso, estava quase abandonado, as casas caindo. Outra experiência que tive: também vivi no povoado de San Gabriel, pequeno, mas próspera. Quando voltei, nos depois, o povoado estava dizimado. Descobri que o causador da decadência fora o cacique local.

 

- Em que medida Sayula, onde nasceu, apareceria em suas narrativas?

 

Não conheço Sayula. Sei que foi um centro comercial muito grande, há uns anos, antes e até depois da Revolução.  (Refere-se a Revolução de 1910, no México.) Mas nunca vivi em Sayula. Minha família foi morar em San Gabriel. Ali passei minha infância e me considero de lá. Vivi sempre com os homens do campo; quando o sol se põe, pegam um cigarro (o que faz também Rulfo, no momento) e dizem que está com eles: “Você se lembra?” E embora o outro não responda, eles começam a recordar.

 

- Será por isso que seus personagens são tão taciturnos?

 

As pessoas ali são herméticas. Talvez por serem desconfiadas. Não querem falar de suas coisas, do que fazem. Não se sabe a que se dedicam. Há povoados que se dedicam exclusivamente ao ágio. As pessoas ali não falam de nada. Arrumam suas coisas de forma muito pessoal, quase secreta.

 

- Pedro Páramo, o cacique, tem dimensão trágica. Como o concebeu?

 

Imaginei o personagem. Eu o vi. Depois, pensei num povoado morto. E, claro, os mortos não vivem nem no espaço nem no tempo. Isso me deu liberdade para manejar os personagens indistintamente. Isto é, deixa-los entrar e, depois, permitir que se esfumacem, desaparecessem.

 

- Qual o segredo de maestria no uso da linguagem coloquial?

 

Eu não queria que meus personagens falassem como num livro escrito. Não queria falar como se escreve, mas escrever como se fala.

 

- Em suas recordações de infância, não crê que está profundamente enraizado o mito do paraíso perdido?

 

Havia um rio em que nos banhávamos. Atualmente, não traz água. Os bosques nas montanhas que rodeiam o povoado, foram cortados. Todos emigraram. Os que na o fizeram, foi para ficar com seus mortos. Os antepassados são alguma coisa que os ligam ao lugar. Eles não querem abandonar seus mortos. Quando se vão, carregam-nos com eles. Levam seus mortos nas costas. E até quando os abandonam, de certo modo continuam a carregá-los.

 

- A presença de um morto, em sua literatura, é como uma espécie de obsessão.

 

Os vivos estão rodeados pelos mortos. Nos povoados  do México, existe a idéia de que as almas em pena visitam os vivos. Nos caminhos até hoje, onde há um morto, as pessoas lançam uma pedra sobre sua sepultura. Essa pedra equivale a um Padre Nosso para a alma do defunto. No romance todos estão mortos. A história é contada pelos habitantes mortos. Assim, o povoado torna a viver uma vez mais. Esse foi o meu propósito, dar vida a um povoado morto.

________________    

- Link1
- Link2
- Link3