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Grandes entrevistas (fictícias)

Julien Gracq


Elaborada por Marcos Flaminio Peres e publicada na Folha de São Paulo, de 25/04/2004, de onde foi extraída

     Julien Gracq é um escritor sabidamente recluso. Do alto de seus 93 anos, "o último senhor das letras francesas" faz pouco, muito pouco, da borbulhante cena literária de seu país. Vivendo solitário em uma casa no vilarejo de Saint-Florent-le-Vieil, recebe apenas algumas pessoas, escolhidas a dedo - e em geral para conversas, quase nunca para entrevistas. No longínquo ano de 1951 Gracq já sacudira a intelligentsia ao recusar o prestigioso Prêmio Goncourt por O Litoral das Sirtes, romance que se tomaria central para a literatura francesa do século 20. Quase à mesma época, desancava o jogo de interesses de escritores, imprensa e críticos com o virulento libelo A literatura no estômago".

     Há pelo menos seis meses o Mais! Tentava estabelecer contato com esse ermitão das letras, usando como argumento a publicação da tradução brasileira de O litoral das sirtes, que sairá em agosto pela editora Girafa. Após algumas tentativas, mediadas pelo editor e amigo de décadas José Corti, acertou-se que Gracq responderia a oito perguntas enviadas via fax. Duas semanas atrás, cerca de um mês e meio após o envio das questões, as respostas chegaram à redação do Mais! Remetidas pelo correio - mas. postadas, curiosamente, não em seu vilarejo nem em Paris, onde mora seu agente e editor, mas em Nantes, cidade de dimensões quase míticas em sua obra. Aliás, é de Nantes talvez o mais imagiantivo dos narradores franceses, Julio Verne, influência declarada de Gracq.

     Um detalhe chamou a atenção nas respostas: comparando-as àquelas dadas pelo escritor nas raras entrevistas que concedeu ao longo de sua vida – parte dela recolhidas em livro -, nota-se uma semelhança surpreendente, devida em parte a uma mera coincidência. O mais provável, contudo, é que Gracq, esse surrealista incansável e admirador de André Breton, esteja ele próprio experimentando uma nova modalidade narrativa – pós moderna, diriam alguns -, baseada na colagem de citações de suas próprias declarações, como se estivesse levando ao limite a crise da representação que o surrealista René Magritte desbravou com sua pintura "Isto Não É um Cachimbo", de 1929. .

     Resta por fim a hipótese - descabida, sem dúvida, mas que é dever registrar - de que se trata simplesmente de uma farsa ou, no mínimo, de uma brincadeira bem pouco condizente com a dignidade de um dos pucos literatos a ter visto sua obra reunida na prestigiosa coleção “Pléiade".

     Feita a ressalva, segue a entrevista, em que Gracq comenta sua surpreendente relação com a literatura brasileira, ao afirmar que a leitura de Os sertões foi decisiva para a composição de O litoral das sirtes - obra na qual a espera angustiada pela guerra é narrada em um registro ao mesmo tempo onírico, inspirado nos românticos alemães, e hístórico. Curiosamente, Gracq parece ter compreendido a obra de Euclides como estritamente ficcional, desprovida de bases factuais. Talvez ele esteja apenas fazendo uma ironia aos estatutos da ficção e da história - tensão de fato latente em "O litoral das sirtes. Talvez se trate de algo mais: de um sarcasmo como o que há de imponderável e bárbaro nesse episódio centra1 da hístória do Brasil.

     Para dirimir essa e outras dúvidas, o Mais! enviou a Gracq, no mesmo número de fax, uma segunda série de perguntas. Ele não respondeu por enquanto.

- Um crítico o definiu como “um surrealista que escreve como um professor”. Como o sr. concilia, em sua escrita, essa tendência simultânea ao arrojo e à contenção?

Talvez ele tenha dito isso porque, para mim, a vontade de escrever decorre essencialmente de uma necessidade de tornar as coisas precisas, de acertar as contas com a expressão. Nossa cultura repousa sobre obras que se construíram preocupadas o tempo todo com a técnica, como uma obsessão A "escrita automática" é um exemplo disso, embora ela nunca tenha impedido os surrealistas de escreverem seguindo a própria inspiração. Já nos romances existencialistas ou no nouveau roman, tudo se passa como se a originalidade fosse buscada assim como o próprio cinema tentará fazê-lo um dia: suprimindo sucessivamente o relevo, a cor e o som, obtendo por um breve momento a sensação do nunca visto - como um homem normal que se torna bruscamente daltônico, hipermetrope ou cego de um olho.

- O momento da partida é uma imagem recorrente em sua obra, de que é exemplo O Litoral das sirtes. Por quê?

Porque ela traduz, à sua maneira, uma imagem do desdobramento: a necessidade de ser ao mesmo tempo ator e espectador, de se distanciar constantemente daquilo que se faz, não deixando de fazê-lo. Pois o homem que vai partir lança um olhar novo sobre aquilo que o cerca. Ele ainda está lá e não está mais: já envolvido em uma perspectiva de fuga, ele usufrui ao mesmo tempo de uma percepção quase mágica dessa estabilidade condenada.

- O duro ataque ao meio literário francês, em A literatura no estômago, parece mais atual do que nunca. Como o sr. vê a situação hoje?

Acompanho de longe, mas o suficiente para atestar sua terrível atualidade. Na França a literatura se realiza tendo ao fundo um murmúrio contínuo e febril de uma perpétua Bolsa de Valores. Aqui só se permite ler (mas ler verdadeiramente) um autor uma única vez: a primeira; na segunda, ele já está consagrado, embalsamado nesses manuais de literatura contemporânea que a crítica se desdobra para manter atualizados, como as galerias Lafayette de nossa literatura. A literatura é vítima de uma formidável manobra de intimidação por parte do não-literário - e do mais agressivo não-literário. Michel Houellebecq é um caso paradigmático pelo que representa de desperdício de talento. O terço inicial de seu Plataforma [ed. Record] traça um instigante painel da França de fins do século 20, inteiramente desnorteada. Porém mais da metade do livro é de uma redundância notável Tem-se a impressão de que o editor recebeu a versão inicial do livro e lhe sugeriu: "Acrescente mais umas 200, 300 páginas que ele se torna um romance, e assim você poderá concorrer com mais chance às dezenas de prêmios literário oferecidos". E o autor o fez, e a crítica ainda aplaudiu. Aliás, resolvi conceder essa entrevista a um jornal brasileiro como uma espécie de alerta, na esperança de que em seu país essas relações não estejam ainda tão promíscuas como o estão na França.

- Assim como Baudelaire, o sr. também foi influenciado por Edgar Allan Poe. A que o sr. atribui essa influência tão marcante na literatura francesa?

Poe, do outro lado do oceano, soube apreender o odor íntimo da Europa - seu aroma perturbador de refinada podridão-, vergada sob o peso de suas recordações e de seus sonhos.

- O que restou do surrealismo?

Hoje ninguém - ou quase ninguém - reconhece mais sua filiação ao surrealismo, mas cada um o trai em algum canto de sua obra; assim como nos EUA um negro de ascendência branca trai sua raça por meio de suas unhas. Mas a literatura... essa está acabando.

- E quais escritores americanos recentes o sr. aprecia?

Nenhum, embora tenha lido e gostado de "Ravelstein" [ed. Rocco], de Saul Bellow.

O que o sr. conhece da literatura brasileira?

Li apenas um livro, "Os sertões", de Euclides [da] Cunha, no final dos anos 1940, em uma tradução francesa que por acaso havia caído em minhas mãos através de Breton [1896-1966]. Confesso que a inspiração para o reino do Farguestão e, sobretudo, o clima de inefabilidadade que percorre O litoral das sirtes deve muito a "Os sertões" - um livro que, para mim, é uma aplicação, avant la lettre, das potencialidades do surrealismo. É uma obra magistral, que parte de uma frágil base histórica para descrever uma situação, sem dúvida, inteiramente ficcional (ainda bem, de resto).

- Por toda a vida o sr. foi professor de história e geografia em "lycées" (equivalentes, no Brasil, aos três últimos anos do ensino fundamental). Como o sr. avalia o 11 de Setembro e seus desdobramentos?

Essa pergunta caberia melhor a autores do naipe de um [JeanPaul] Sartre, [Albert] Camus ou [André] Malraux, não a mim. Meu assunto é a literatura.
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