Luiz Ruffato
Entrevista conduzida por Daniel Mandur Thomaz, em março de 2015
Foi numa tarde de quarta-feira, 18 de março, que o escritor brasileiro Luiz Ruffato entrou no auditório da Universidade de Leiden, a mais antiga e tradicional da Holanda, para falar aos alunos do curso de Estudos Latino-Americanos. Quando saiu, deixou atrás de si uma plateia boquiaberta pela força de sua simplicidade. Escritor premiado e aclamado pela crítica, Luiz Ruffato é uma espécie em extinção na fauna literária brasileira: um autor que se posiciona como intelectual público, que não se esconde por detrás de preciosismos estéticos e fala sobre o Brasil, e seus complexos problemas, sem medo de se comprometer, sem beija-mãos ou rapapés. Crítico contundente da realidade brasileira, Ruffato causou furor na feira do livro de Frankfurt, em 2013, quando o Brasil foi homenageado. Em seu discurso em Frankfurt, frente a editores, público e representantes políticos de diversos países – inclusive do Brasil – teceu uma série de considerações sobre o drama social brasileiro, o que causou constrangimento àqueles que esperavam do autor um discurso enaltecedor ou escapista. Ruffato tem uma bela capacidade de sintetizar, nas entrelinhas de sua fala mineira, uma visão aguda sobre o Brasil. “Literatura é compromisso”, a frase que abriu seu discurso em Frankfurt é uma espécie de “refrão” que continua definindo sua posição intelectual. Sua fala na Holanda, em março de 2015, comprova isso. Com uma trajetória impressionante, Luiz Ruffato, filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira semianalfabeta, trabalhou ele mesmo como pipoqueiro e torneiro mecânico em Cataguases – MG, até formar-se em jornalismo e pavimentar com as próprias mãos seu caminho literário de escritor premiado. Seus personagens refletem justamente essa trajetória. Dedicou-se sistematicamente a escrever sobre o universo das pessoas pobres e de classe-média baixa, esforço que se materializou na série Inferno Provisório, composta por cinco romances que traçam uma espécie de saga dos trabalhadores brasileiros ao longo do século XX. Seu livro mais conhecido, Eram eles muitos cavalos (prêmio APCA de melhor romance em 2001), é construído como uma colcha de retalhos, mostrando uma São Paulo habitada por homens e mulheres simples, prosaicos, “desimportantes”, silenciados pelas narrativas tradicionais. Essa perspectiva de “baixo para cima” dá ao trabalho de Ruffato uma dimensão política importante, porque representa literariamente os que estiveram historicamente à sombra, num país ainda marcado por desigualdades profundas.
Ruffato, como política e estética dialogam no seu trabalho?
Toda a minha escrita se constituiu como parte de uma decisão política. Na literatura de ambientação urbana no Brasil, não há representações da classe-media baixa, do trabalhador. E isso não é só na literatura não. Veja bem, no Brasil há inúmeras ruas com nomes de corruptos notórios, nunca vi uma rua chamada operário fulano de tal. Fui operário e fruto de uma família operária. Decidi escrever sobre isso. Representar esse universo na literatura é uma decisão política. Claro, essa foi uma decisão estética também... Eu não acredito que estética e politica sejam coisas que estejam separadas. Então, quando tomei essa decisão, de escrever sobre o universo do trabalhador, queria desarmar a imagem profundamente caricata que o trabalhador pobre e de classe-média baixa tem na literatura brasileira. Além disso, tinha um problema também de linguagem. Veja bem, não é porque você vai descrever pessoas pobres que a linguagem e a psicologia têm que ser pobre. Eu me voltei muito contra esse preconceito.
Como você lidou com a repercussão de seu discurso na feira de Frankfurt, em 2013?
Engraçado. Até hoje não entendi porque minha fala foi considerada polêmica. O que falei lá é notório. Qualquer um que fizer uma busca básica na internet vai ver o que estou dizendo. Falei que nós matamos sistematicamente nossos índios. Que a desigualdade social é brutal. Que a violência contra o negro e a mulher é diária e profunda (o Brasil é um dos países que mais mata mulheres no mundo). Que a educação e a leitura no Brasil são artigos de luxo. Que somos machistas, racistas e violentos. Onde está a novidade nisso? Aí me disseram que ali não era o lugar adequado pra eu dizer isso. Então me pergunto, se uma feira de literatura não é o lugar adequado pra se discutir ideias, onde é? Numa feira agropecuária? (risos) E eu que imaginava que o papel dos intelectuais era pensar o mundo...
Ainda sobre isso, como você vê o papel político do artista e do intelectual no Brasil hoje? Quero dizer, existe isso no Brasil, o intelectual público, alguém engajado em discutir de forma ampla os problemas do país?
Esse é um ponto bastante problemático. Primeiro porque, por força da tradição autoritária – somos uma população que foi sempre tratada no chicote, oprimida – o Brasil tem uma história marcada por ditaduras. Além disso, grande parte da chamada intelectualidade brasileira é produto das classes altas e têm compromissos com essas classes. E também, por conta de outros fatores, nós acabamos abrindo mão desse papel, de intervenção no debate sobre a coisa pública. Então, não é muito comum esse tipo de exposição. As pessoas pensam ah, escritor tem que escrever, esse negócio de escritor falando de política é um desastre. Não dá! (risos). Mas numa sociedade como a nossa, se você tem um espaço pra falar, se você tem voz e se omite, sei lá, acho no mínimo uma covardia. Claro, não exijo nem espero isso dos meus colegas, não acho que eles sejam todos obrigados. Mas é uma pena. Olha só, a grande maioria dos escritores brasileiros usa redes sociais pra se promover, pra promover seus livros, ou pior, pra fazer fofoca e espalhar maledicências. Dificilmente vêm a publico pra se posicionar criticamente em relação a qualquer coisa que seja. E por quê? Fica todo mundo preservando seu pequeno quintal. Inclusive, se posicionar não é bem visto, quer ver? Depois do meu discurso em Frankfurt, teve escritor brasileiro dizendo em rede social: É isso que dá deixar o filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira falar em nome do Brasil.
Você é muito traduzido hoje, e também estudado em universidades. Existe, inclusive, um bocado de teses de doutorado sobre você. Como você lida com esse processo de “canonização” do seu trabalho?
Bom, eu tenho uma ótima relação com a universidade. Na verdade, hoje, praticamente só há critica literária dentro da universidade. Fora da universidade não há crítica séria. Nos jornais, faz muito tempo que não tem. E eu gosto de ler o que se escreve. Enfim, minha única ressalva à universidade é que eles citam demais. As pessoas se defendem demais por detrás de outros autores. Por exemplo, o camarada precisa usar o Walter Benjamin (um teórico alemão) pra dizer aquilo que ele [o crítico] quer falar. Bom, eu já sei o que o Benjamin acha, quero saber agora o que ele [o crítico] acha (risos). Eu tenho o maior apreço pela crítica universitária. De verdade. Mas isso não influencia em nada o meu trabalho.
Você se considera um “homem de imprensa”? Sua formação e seu trabalho como jornalista influenciaram a sua escrita?
Eu sempre fui um péssimo jornalista. Não é modéstia, eu realmente era muito ruim. Sou muito tímido. Eu praticamente dediquei todo o meu trabalho jornalístico para dentro da redação. Trabalhei 13 anos no Estadão [o Estado de São Paulo] e você não vai achar uma matéria minha assinada. Ficava como redator, como editor, eu gostava era disso, de editar o material bruto. Não acho que o jornalismo tenha influenciado tanto. Bom, talvez tenha influenciado um pouco o meu olhar...
Como você avalia a cobertura política da grande imprensa brasileira?
A mídia brasileira é ruim em qualquer cobertura. Os jornais representam a defesa de interesses muito específicos... é muito ruim, muito ruim mesmo. E talvez o mais grave, nós não temos uma democracia na mídia...
Você publicou recentemente uma crônica onde fala de música, sobre a primeira vez que ouviu Pink Floyd. A música está presente na sua escrita? Você escreve ouvindo música? O que toca na sua vitrola?
A única coisa que me tira do foco é música. Não ouço nada escrevendo. Mas tenho um gosto musical eclético. Ouço de Racionais Mcs a musica erudita contemporânea. Gosto muito do Arvo Part [compositor estoniano de música sacra contemporânea]. Tenho curiosidade. Só não gosto de música ruim... (risos)
Você também escreve poemas (tem três livros de poesia publicados). Qual é o papel da poesia na sua obra?
Meus colegas poetas não me consideram poeta e sim prosador... (risos). Mas eu sou muito mais leitor de poesia do que de prosa. A poesia é fundamental pra mim. Escrever o que escrevo sem a intermediação da poesia seria impossível. Mesmo minha prosa é encharcada de poesia.
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