Magnus Olsson
Entrevista publicada no site da ABL http://www.academia.org.br
Revista Brasileira – Você é um dos poetas mais reconhecidos atualmente na Suécia. Qual a relação de sua obra com a cultura de seu país?
Magnus Olsson – Não sei se referir-me-ia como um “poeta reconhecido” e o epíteto “sueco” me dá medo. Por quê? Imagino que seja pelo fato de identidades fixas tenderem a limitar a atenção, e atenção é a matéria de que a poesia é feita. As pessoas começam a procurar por identidade, “suecidade”, por exemplo, em vez de se abrirem para o que quer que possa aparecer. O poema depende totalmente da vontade dos leitores de atualizá-lo de forma aberta e atenta. Costumo citar Joseph Brodsky, que dizia que “a poesia é a linguagem em sua potência mais elevada”. Gosto muito dessa ideia; ela explica por que a poesia, em termos de epistemologia, por assim dizer, é o principal lugar onde deveríamos ter a expectativa de a verdade aparecer.–
RB - Mas sua poesia revela um traço cosmopolita bastante acentuado...
MO – Quando se escreve em uma língua limitada como o sueco – limitada, não no sentido linguístico, é claro, mas em termos de números de falantes – você simplesmente tem que se ligar com literaturas escritas em outras línguas. É uma forma de evitar a endogamia poética que ocorra nas literaturas menores. Sempre senti que deveria ir embora da Suécia, a fim de completar meu destino poético. E não apenas rumo a lugares e línguas estrangeiras, como também a outras épocas e tempos. Descobri a poesia por acidente, quando adolescente, pela obra de Safo. A poesia grega antiga tem sido, desde então, a cena primal para a qual retorno sempre, a fim de contatar as raízes férteis da poesia. Costumo referir-me a mim mesmo como um “poeta filológico”, querendo dizer com isso que minha poesia quase sempre é conceitualizada em alguma forma de diálogo com outros poemas, na maior parte das vezes poemas que traduzo ou interpreto de alguma outra forma. Essa atualização bastante concreta do “estrangeiro”, do “não-meu”, do “fora de alcance” é uma abertura para experimentar a imensidade da linguagem, esta vertigem poética que a poesia, e apenas a poesia, oferece. É como aproximar-se do Real: uma promessa de diversidade infindável que, de alguma forma, identifico com o próprio Mundo. Nesse sentido, creio que todos os poetas têm que ser cosmopolitas para serem poetas, por assim dizer.
RB – Qual a presença de Tranströmer em seu trabalho e até que ponto podemos considerar você como um poeta “estrangeiro” na Suécia?
MO – Prefiro identidades ambivalentes. Ou melhor: identifico-me como ambivalente, para não dizer multivalente. O ato poético mais íntimo consiste na crítica, no sentido etimológico da palavra: avaliar, selecionar e equilibrar, por meio de seu próprio ser. É um ato de ansiedade. Ser um poeta é, na minha experiência, cultivar essa ansiedade, afirmar a multivalência, a oscilação entre o sueco e o não-sueco, por exemplo, ou estrangeiro, mais estrangeiro e não- -estrangeiro. Amo a língua sueca; ela é a condição de onde o mundo é acessível para mim. Mas jamais pensaria nela como “minha língua”. Num sentido poético, o sueco, para mim, inclui outras línguas, as quais falo mais ou menos. A filosofia depende da poesia 11 O espanhol, por exemplo, ou o grego antigo são partes vitais e misturadas com o sueco em meu ponto de vista. E, a bem da verdade, creio que essa é uma atitude que se pode encontrar também na obra de Tomas Tranströmer. Com ele aprendi muito, e uma das coisas foi aquilo que por vezes chamo de “espaço alusivo”. Os poemas de Tomas Tranströmer formam um arco que vai dos tempos antigos a nossos tempos, de lugar muito distantes ao “aqui”. Eles desdobram um amplo firmamento com suas alusões a poemas antigos e tradições remotas.
RB – Presente, aqui e agora, mas você atua nos limites da poesia extraocidental, ao mesmo tempo em que mergulha no mundo antigo e no Oriente. De que modo o pantempo de T. S. Eliot poderia abranger o seu processo criativo?
MO – Sim, é disso que estou a falar. E provavelmente Tomas Tranströmer aprendeu essa atitude com Eliot. Mas, da minha parte, acho o universalismo de Eliot problemático. Mais do que um “pantempo”, prefiro o termo “politempo”. Nossa época promove a ideia de que estamos todos vivendo no mesmo tempo e que o mundo é um só. É o principal conceito de igualdade no capitalismo global. Mas é uma mentira, pois o mundo e o tempo não são objetos, eles não estão presentes per se, mas apenas diante de alguém – para ficarmos com Husserl.
RB – E a literatura de língua espanhola ocupa uma boa região de seu percurso...
MO – Sim, a poesia em língua espanhola talvez seja um bom exemplo de polipresente. Há sempre coisas extraordinárias acontecendo em algum lugar dessa língua imensa. Pensando na América Latina como um todo (como se isso fosse possível!), em qualquer lugar que se vá há poetas, poetas de rua e poetas acadêmicos, intelectuais ou rappers que valem a pena ser ouvidos. É impressionante! E há, ainda, essa tradição extraordinária de diferentes culturas, índios, afro-americanos e euro-americanos. É essa multiplicidade de poesia diferente que me encanta. Para quem vem de uma cultura sueca relativamente Magnus Olsson 12 compreensível, a poesia em língua espanhola (e também em língua portuguesa, que estou a aprender lentamente) é, com certeza, irresistivelmente dominadora.
RB – Assim como o mundo árabe é um polo de atração em seu liber mundi, no seu livro do mundo...
MO – Visitei Beirute e Damasco no começo dos anos 90 e simplesmente me apaixonei por alguns poetas. Inicialmente, não entendia verdadeiramente por quê, mas depois entendi que essa parte do mundo reflete minha nativa periferia nórdica em alguns traços essenciais. Como a poesia nórdica, a poesia árabe tem esse passado glorioso e uma “autoconfiança” básica, por assim dizer. Nesse sentido, Al Mutanabbi não está tão longe de Snorre Sturlasson. E estamos a partilhar uma posição semelhante em relação à cena poética dominante do século XX: sempre 20 anos atrás das vanguardas em Berlim, Paris e Londres! Então iniciei uma oficina de tradução em Estocolmo e Beirute com jovens poetas suecos e árabes, como Samer Abu-Hawwash, Youmana Haddad e Yassin Adnan. Mas, quando publicamos as traduções em sueco, as pessoas se inclinavam a dizer: “Isso é poesia derivativa, é o que faziam há 40 anos em Paris!” O que os críticos e o leitor não entendiam nesse caso é que os poetas árabes, como os suecos, têm que ser lidos não como reflexo da vanguarda europeia, e sim à luz de sua própria tradição. E uma vez que todos nós, suponho, estejamos buscando uma poética de nosso tempo – uma poética pós-digital, uma poética pós-global –, parecem-me valiosos esses vislumbres de entendimento. É vital que exercitemos nossa capacidade de levar em conta diferentes tradições enquanto cultivamos nossa atenção poética. Não estou falando, aqui, de algum tipo de nomadismo barato, mas de uma poética prática afinada com nossa situação real, com o fato de que a poesia de todas as partes do mundo se encontra hoje acessível de uma forma que nunca ocorreu antes, pela internet, Skype e outros dispositivos. Em termos de tradição e intertextualidade, é uma situação inteiramente nova. A fim de defender a especificidade política e epistemológica a que a poesia – entendida como linguagem em sua potencialidade mais elevada – sempre, e por direito, A filosofia depende da poesia 13 tem reclamado, devemos desenvolver uma poética que tenha relevância para a economia da atenção das vidas cotidianas de nossos leitores. E a capacidade de se abrir para uma multiplicidade de diferentes pontos de vista, devidos a tradições, tempos e práticas, é, creio, essencial aqui. Devemos aprender a ler, avaliar e entender poesia nesse novo contexto.
RB – Nesse novo contexto, percebo a leitura da grande poesia e filosofia árabe, a falsafah...
MO – Eu não falo árabe. Meu acesso à poesia árabe depende de traduções. Mas gosto muito de ouvir os poetas árabes a falar da beleza, da crueza, do tom direto da poesia pré-islâmica, por exemplo, ou quando poetas persas falam dos poetas sufis clássicos, como Mansur al Halladj ou Rumi. Adoro esse culto de segunda mão que vem a ser a poesia em línguas estrangeiras. Isso está relacionado com o papel da poesia, ou, para ser filosófico, o ser da poesia. Creio que a poesia se torna poesia de duas formas diferentes. Uma delas é no ato solitário de leitura: apenas você e o poema em um encontro estritamente privado. A segunda ocorre quando as pessoas começam a falar a respeito do poema, quando elas o trazem para a agora, para o público. É uma forma igualmente importante de como um poema se torna um poema. Se o primeiro modo se apoia no absoluto e no insubstituível, o segundo, pelo contrário, é pragmático e negociável. Os dois modos de vir a ser de um poema, ou antes, os dois modos de ser um poema são essenciais. É por isso que a poesia é, ao mesmo tempo, absoluta e relativa, traduzível e intraduzível, ao mesmo tempo um segredo lacrado e um rumor revelado. Para mim, a poesia árabe clássica é nada menos que um tesouro que acabo de vislumbrar, o sussurro sobre algo dotado de uma beleza incomparável, que, como tal, tem sido de grande impacto sobre minha própria escrita.
RB – Existe na sua oficina algum abismo entre a poesia e a filosofia?
MO – Uau! Esse é um assunto colossal, sobre o qual, na verdade, escrevi um livro a respeito. Mas para ser breve: o que chamamos filosofia é algo que muito tempo atrás nasceu por meio de um diálogo hostil com a poesia a respeito Magnus Olsson 14 de diversas coisas, mas, acima de tudo, a respeito do privilégio de representar a verdade. Nesse sentido, a filosofia depende da poesia e sempre se volta para ela quando, por alguma razão, se torna incerta a respeito de suas raízes ou de seu destino. Mas a poesia nunca dependeu da filosofia. Ela chegou a perder um bocado em suas batalhas passadas com a filosofia e tem muito a ganhar, com certeza, aprendendo com a filosofia; a poesia, entretanto, não depende de ninguém ou de nada. Da minha parte, sempre li bastante filosofia e considero minha poesia uma forma de “sentir-pensar” que, por vezes, se alinha mais justamente com certas tentativas filosóficas do que com outros poemas. Mas minha lealdade e minha tradição são inteiramente poéticas. Sinto-me totalmente fiel à poesia nessa luta com a filosofia. É uma questão de sensibilidade linguística. A luta original tem sido frequentemente relatada como sendo a luta entre mythos e logos. Mas isso é uma simplificação, feita por filósofos, é claro. Se eu tivesse que escolher uma linha divisória principal nessa luta, seria aquela entre ato e representação. O ato – ou, mais precisamente, o ato da atenção – é o âmago da poesia e oferece uma tal riqueza como modo de viver, pensar e gozar a vida que eu jamais trocaria por nada enquanto estrela-guia.
RB – Quais os seus projetos mais ou menos desenhados?
MO – Acabei de publicar um livro de poesia, intitulado Homullus Absconditus. Tenho algumas traduções a fazer. Estou editando uma série de poesia internacional para uma das principais editoras na Suécia. No momento, dirijo um seminário aberto sobre poesia, arte e conhecimento em Estocolmo. Mas, no momento em que escrevo, estou por começar um livro que, a partir da perspectiva da poesia como forma de atenção, levantará a seguinte questão: O que é uma obra poética? Focalizarei em três poetas: Alejandra Pizarnik, o poeta sueco Karl Vennberg (1910-1995) e algum outro poeta contemporâneo ainda não escolhido. Vamos ver; são apenas planos até agora.