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Grandes entrevistas

 

Márcio Souza

Entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 04/06/1990, sob  o comando de Rodolfo Konder, com participação de Felipe Lindoso, Jefferson Del Rios, Alexandre Machado, Djalma Limongi Batista, Júlio Carlos Duarte, Deonísio da Silva, Rinaldo Gama e Ricardo Amaral.

Rodolfo Konder: É do signo de peixes. Filho mais velho do operário gráfico e sindicalista Jamaci e de dona América, Márcio herdou do pai a paixão pela literatura. Essa paixão estendeu-se ao cinema e, aos 14 anos, já escrevia críticas nos jornais de Manaus. Aos 17 anos, deixa a casa do pai e se muda para São Paulo, vem estudar ciências sociais na USP, mas larga o curso em 1969. Nessa época é preso duas vezes por motivos políticos. Ao mesmo tempo em que faz a faculdade, escreve roteiros, faz assistência de produção e direção em curtas e médias para a Boca do Lixo. Ainda em 1967, publica seu primeiro livro, O mostrador de sombras, um volume de crítica que não faz sucesso nem entre os amigos. Depois das prisões, põe o pé no mundo, vai a Nova Iorque, Paris, Londres, Amsterdã, Bogotá e Lima. Volta a Manaus em 1973 e passa a dirigir o teatro experimental do Sesc. Faz também um filme, A selva, que causa um grande mal-estar, porque mostra uma Amazônia sem papagaios. Durante esse tempo já vinha gestando o que se torna o passaporte para o sucesso, ao ser lançado em 1976, o romance folhetim Galvez, o imperador do Acre. O livro virou peça de teatro e teve os direitos para o cinema comprados por Hector Babenco e ainda lhe rende muitos dólares pelas traduções em doze línguas. Na esteira de Galvez, vieram outros nove livros, entre eles Mad Maria, A ordem do dia e A condolência, além de dez peças de teatro. Esse trabalho lhe rende hoje a tranqüilidade de poder viver exclusivamente de direitos autorais. Felipe Lindoso, o sócio da editora Marco Zero, diz que Márcio é um convicto desde 1983, quando deixou Manaus. E mora hoje na praia do Leme, no Rio de Janeiro, de onde não se muda de jeito nenhum. É convicto também no casamento: vive há 18 anos com a jornalista gaúcha Ida Vicenzia. E também não abandonou a questão amazônica. Márcio está agora na praça com a história e ensaio O empate contra Chico Mendes. O livro lançado ao mesmo tempo no Brasil e em vários países da Europa fala da morte do seringalista Chico Mendes e denuncia quem o escritor considera os verdadeiros responsáveis pela destruição da Amazônia. Márcio, boa noite. 

Márcio Souza: Boa noite.

Rodolfo Konder: Você, com Galvez, o imperador do Acre, disse uma vez que queria mostrar como é cruel a história do colonialismo na Amazônia. Agora, com O empate contra Chico Mendes, você retoma um pouco esse tema, só que os inimigos da Amazônia... A Amazônia nesse momento está nesse centro de grandes discussões, inclusive internacionais. Os inimigos da Amazônia mudaram, são outros? Quem são os inimigos da Amazônia hoje? 

Márcio Souza: Olha, o interessante é que a história da minha região é uma história bastante constante. Na verdade, os inimigos continuam exatamente os mesmos. E a história parece que se repete sempre exatamente igual na região – e como farsa desde o início–. Hoje nós temos uma encenação que já aconteceu, por exemplo, no início do século, com as denúncias feitas por um missionário protestante, que denunciou a existência de índios escravizados nos seringais, de uma região não muito distante do Acre, que era o rio Putumayo, entre o Brasil e o Peru. Ele fez essa denúncia, foi um escândalo internacional, apareceram amigos da região, solidariedade em relação à região. E já tinham ocorrido também coisas semelhantes de viajantes no século 18, no século 19. Enfim, os amigos e inimigos são exatamente os mesmos.

Rodolfo Konder: E você pretende, nesse novo livro sobre Chico Mendes, retomar esse tema, fazer as denúncias e examinar em profundidade essa questão da Amazônia? 

Márcio Souza: Olha, eu não tinha, no início, nenhuma intenção de entrar na história do Chico Mendes, porque acompanhava o trabalho do Chico, tive alguns contatos com ele, que fazia seu trabalho lá no Acre. A Amazônia tem várias amazônias na verdade. Sou da Amazônia amazonense, que é uma outra luta, outra questão. E, quando ele foi assassinado, foi um choque para todo mundo, embora a percepção dessa morte e do trabalho do Chico fosse inteiramente diferente vista lá de dentro da região. Mas achei que ele já tinha muita gente lá, muitos defensores, então me mantive um pouco afastado; além do estado de choque um pouco em que eu me encontrava, porque nunca acreditei...

Rodolfo Konder [interrompendo]: Embora fosse uma crônica de uma morte anunciada... 

Márcio Souza: Exato, nunca acreditei, aliás, que ele.... porque não há uma tradição na história política da Amazônia – a não ser da ditadura militar para cá–... não há tradição desse tipo de violência, isso é mais típico do Nordeste. Então, é estranho para quem é de lá. Você via muitas brigas políticas lá na região e tal, mas nunca [se chegava às] vias de fato, nunca assassinatos realmente. São raríssimos os casos, até pelo menos os anos 40, 50... casos assim, de assassinatos políticos na região. É difícil para a psicologia da região a entrada de coisas como essa, do assassinato de Chico Mendes. Então eu não acreditava, fiquei estarrecido realmente com o senso da impunidade dos latifundiários, dos fazendeiros da UDR [União Democrática Ruralista] que promoveram esse massacre. Não só assassinando Chico, mas muitos outros líderes e militantes do movimento dos seringueiros lá do Acre e outras áreas da região, porque são várias as pessoas que estão sendo assassinadas quase que diariamente lá. Eu não queria me meter nessa história, mas aí, por outro lado, comecei a me irritar muito com as opiniões que estavam sendo dadas a respeito da minha região. Primeiro, porque ninguém foi perguntar nada às pessoas da região. E até para não me acusarem de xenófobo ou jacobino, não perguntaram para as pessoas que conhecem a região realmente. Por exemplo, eu nunca vi ninguém procurar o Paulo Vanzolini aqui em São Paulo, que é um cientista que tem um trato com a região amazônica de mais de quarenta anos, para perguntar o que ele achava do que estava ocorrendo na Amazônia, o que ele via de perspectiva nisso. Não, de repente você via um cantor de rock [o cantor britânico Sting, em campanha pela preservação da Amazônia e demarcação das terras indígenas,  percorreu o mundo com o cacique Raoni, índio caiapó, foi recebido por alguns dos mais poderosos políticos e conseguiu atenção e dinheiro para a causa indígena no Xingu e na Amazônia] que pegava um cidadão que usa um cd nos lábios, um disco laser, e faz campanha mundial com propostas estranhas e completamente absurdas, algumas delas encobrindo, mais uma vez, interesses para a região que não eram exatamente os interesses das pessoas da região, muito menos para uma proposta de Brasil. Então, por isso, decidi entrar na história, falar. Eu já tinha feito, porque me achei na obrigação de fazer o argumento do filme que vai ser feito sobre o Chico Mendes. E, a partir daí, com esse material vivo sobre a vida dele, da pessoa Chico, decidi então fazer esse livro, que pertence a uma estirpe quase em extinção neste país, que é o velho e bom panfleto político. Não pretendo que seja história ou ensaio sociológico e tal: é um panfleto político, um texto que vem propor uma discussão.

Rodolfo Konder: Márcio, nós vamos registrar para os telespectadores a presença do Alexandre Machado, que acaba de chegar, jornalista da editora Abril – até pouco tempo na TV Gazeta com o programa Vamos sair da crise–, e que nos honra muito com a sua presença aqui, como todos os outros convidados. Você está com um novo livro para ser lançado esse ano, O fim do terceiro mundo, não é isso? 

Márcio Souza: É. Esse livro...

Rodolfo Konder [interrompendo]: Esse livro tem alguma relação também com a Amazônia ou não mais? 

Márcio Souza: Tem, sim! Tem, é um livro inteiramente centrado na região Amazônica. É um livro sobre mundos perdidos, sobre mundos em extinção, sobre coisas que já estão ou totalmente extintas ou em processo de extinção. Inclusive o próprio romance – que dizem que é um pouco como os dinossauros, estão ou já extintos totalmente ou sobreviveram exemplares aqui e ali – é um dos temas do livro. Mas o grande tema é uma discussão sobre a Amazônia, é uma história que se passa lá e basicamente o ponto inicial do livro é uma referência a um livro clássico de aventura na Amazônia, do [Arthur] Conan Doyle, O mundo perdido, que ele publicou em 1912. Nesse livro tem um professor, um personagem, o professor Challenger. E esse professor vai fazer uma pesquisa na Amazônia e, entre parênteses aqui, a descrição que ele faz, a narração que faz da Amazônia, é exatíssima. Ele nunca esteve lá, o Conan Doyle, mas tinha conhecimento através de pesquisas no Museu Britânico, com seu amigo [Alfred Russell] Wallace, que esteve viajando nessa região. Mas o professor Challenger, esse personagem, descobre uma área que fica ao norte do Amazonas, hoje no território de Roraima, seria talvez o monte Roraima e ali, num platô completamente isolado do resto do continente, a evolução teria estacionado na pré-história. Ali existiriam dinossauros, Pterodactilus, animais pré-históricos em geral, inclusive uma tribo de homens das cavernas ainda em processo de evolução. Quando ele volta para a Inglaterra, faz uma reunião entre os cientistas ingleses da Academia Real de Ciências, em que relata a descoberta, mas ninguém acredita, especialmente porque ele sofreu um acidente na viagem de volta e não tem mais as provas. Ele é ridicularizado até que um outro cientista natural o desafia a mostrar essa região e, de fato, ele volta para a Amazônia com esse outro cientista e lá estão os dinossauros, os Pterodactylus e tal. No meu romance, que se passa atualmente, no final do século vinte, a neta desse cientista voltaria a Manaus, passaria um fim de semana no Hotel Tropical como turista. E, de regresso, ela é uma jornalista inglesa que trabalha numa revista de economia para a [...], uma dessas revistas que falam sobre os últimos investimentos de comida sushi. E ela é uma jornalista de uma revista desse tipo. E, voltando lá, ela reúne seus colegas e diz: “Olha, nós temos que fazer a matéria, porque existe na América do Sul um local chamado Brasil, onde, em uma cidade, encontrei espécimes vivos e com saúde de capitalistas que já estão extintos aqui na Inglaterra desde o século 18”. Então, mais ou menos essa é base da história do livro. É um livro sobre o atraso, sobre o que é moderno e o que é atrasado. Mas, ao mesmo tempo, é uma história que ficou muito engraçada no livro.

José Carlos Duarte. É o seguinte: já dei uma folheada no livro e tem uma parte muito engraçada em que você faz uma sátira ao Santo Daime e à Lucélia Santos. Agora, por informações que tenho, parece que o Santo Daime é uma bebida que todo mundo utiliza, quer dizer, seringueiros, caboclos na Amazônia, não sei se isso é verdade. Queria saber se você já provou o Santo Daime.

Márcio Souza: Não, seleciono muito as minhas bebidas primeiro. [risos]

Em segundo lugar, não é verdade que todo mundo bebe. Bebem os iniciados que fazem parte dessa seita, que, aliás, cresceu bastante. Agora, do ponto de vista da cultura da região amazônica, a seita não tem nada a ver; tem tanto a ver com a Amazônia quanto a umbanda tem a ver com a religião afro...

Júlio Carlos Duarte [interrompendo]: Quer dizer, não a seita. Mas e a bebida, a ayahuasca?

Márcio Souza: Não, a ayahuasca, inclusive, originalmente era usada apenas pelos povos indígenas e pelas pessoas autorizadas dentro da tribo, [como] o pajé, que oficiava algum tipo de ritual lá dentro. É muito comum entre os povos indígenas – não só da Amazônia, mas em outras regiões onde existe sociedade tribal – a utilização de fumaça ou pó para aspirar pelo nariz. Os ianomâmi, por exemplo, não têm música por [meio de] instrumentos, mas têm a narrativa do mito contada, que é uma verdadeira ópera e monólogo. O oficiante da ópera é que vai contar a história... Primeiro a comunidade escolhe a história, então pintam o cenário no corpo dele. Antes de começar [a contar a história], ele inala um pó e esse pó provoca... Ele, primeiro, tem vários... Tem um período de adaptação em que ele rola no chão e depois volta e se sente gigantesco, é como se ele tivesse uns três ou quatro metros de altura. E isso dá uma força para ele representar, porque a duração às vezes de uma história dessas é de umas 12 horas. Existem cenas filmadas dessa narrativa. Então é usado muito como complementação cultural dos povos – em alguns povos, nem todos. Outros povos, como o parintintin, que já está extinto, utiliza muito esse tipo de química para a sua atividade sexual. Eles eram verdadeiros atletas sexuais; inclusive a extinção deles foi curiosíssima, porque o último cacique dos parintintin terminou como dono de um bordel famosíssimo no rio Madeira. [risos]

Alexandre Machado: [Em] Primeiro lugar, queria pedir desculpas por ter chegado um pouco atrasado. Queria fazer uma pergunta sobre essa sua afirmativa agora há pouco de que tem um cantor de rock que faz as coisas, depois tem um outro que tem um disco laser na boca. Eu já havia conversado uma vez com Ailton Krenak [líder indígena da etnia krenak que em 1987, no contexto das discussões da Assembléia Constituinte, foi autor de um gesto marcante que comoveu a opinião pública: pintou o rosto de preto com pasta de jenipapo enquanto discursava no plenário do Congresso Nacional, em sinal de luto pelo retrocesso na tramitação dos direitos indígenas], que me disse que esse negócio de bodoque [peça de madeira de forma cilíndrica e pontiaguda usada pelos homens de algumas tribos indígenas no lábio inferior, atravessando-o] é uma coisa que já não se está usando muito e tal. E é uma dificuldade, para quem está aqui no Sul, saber quem são as pessoas que realmente podem falar pela Amazônia. Geralmente, essas pessoas que vêm da Amazônia falam assim: “Bom, vocês não entendem nada da Amazônia, eu é que sei”. E isso serve tanto para o Gilberto Mestrinho como serve para você. Mas eu lhe pergunto: como é que a gente faz para saber, para diferenciar exatamente as pessoas que falam pela Amazônia ou não? E se você pudesse nos contar quem é o Raoni? Já que você citou claramente, você falou de um cantor de rock e de um outro, é quase uma dupla caipira, Sting e Raoni... [risos] 

Márcio Souza: É para lembrar aquele ensaio do Montaigne [(1533-1592), Dos canibais. [risos]

Alexandre Machado: Eu gostaria de que você nos falasse: como é que a gente faz para se informar melhor aqui no Sul? Há alguma forma que você poderia nos sugerir? E de outra parte, quem é o Raoni? 

Márcio Souza: Bom, começando pelo Raoni, ele não é da Amazônia, é do Brasil central. Inclusive, na cultura de que ele faz parte... existe representação na região amazônica do mundo tribal que ele faz parte. E, de fato, aí vai um erro de percepção do Sting, que – entende?,– como cantor, muito bem intencionado – não nego isso –  mas, como dizia o velho provérbio português, “de boas intenções o inferno está repleto”. Ele não faz uma diferença do que são as amazônias; tem histórias extraordinárias que já presenciei nesses desencontros. Em segundo lugar, sobre quem tem a voz da região e quem tem a verdade. Na verdade, acho que não tem pessoas autorizadas. É uma região muito complexa e que não está habituada a estabelecer um diálogo com o Brasil nem o Brasil está habituado a dialogar com a região. Isso é um problema grave, porque na verdade existem instâncias e entidades que poderiam falar alguma coisa sobre a região, porque já vêm realizando trabalhos lá. Por exemplo, o Naea, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade do Pará, é uma entidade que tem um conjunto, um plantel de cientistas que hoje está realizando extraordinários trabalhos na área de ciências humanas, na área de etnografia, na área da antropologia, na área dos impactos que os grandes projetos econômicos causaram no povo da região. Então ali você encontraria uma série de interlocutores que estranhamente nunca foram perguntados também. Em Manaus, por exemplo, tem o Inpa, que é o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, que vem realizando, desde os anos 50, um trabalho de levantamento especialmente na área de ciências naturais. E ali então, acredito, há alguns dos cientistas mais categorizados para falar até sobre a biota da região, sobre as relações dos projetos econômicos e sobre o meio em que foram instalados. E também nunca foram perguntados. Quando se fala de solidariedade na região, de levantamento de recursos, esses recursos não vão para ajudar o Inpa, especialmente porque esse instituto foi uma resposta do Brasil a uma tentativa anterior de internacionalização da região, quando foi proposta a criação do Centro de Pesquisas Woods e o Arthur Bernardes [presidente do Brasil de 1922 a 1926] revidou criando o Inpa e diversos órgãos de pesquisa na região. Aliás, é risível o fato de o Inpa ser a resposta brasileira a essa tentativa de ocupação política da região por forças e potências estrangeiras, porque a situação de penúria que vive o Inpa mostra muito bem a qualidade dos interesses que o Brasil mantém ali na região. E tem no estado do Amazonas, enfim, eu poderia citar vários núcleos importantes que não são nunca procurados inclusive.

Deonísio da Silva: Márcio, queria dizer que estou muito contente de estar aqui presente e também por ser seu contemporâneo. Você é um escritor que admiro muitíssimo. E pertenço à mesma faixa “otária” que a sua, porque nós não temos faixa etária. Fizemos a revolução sexual e nos deram a aids de presente. [risos] Fomos para as ruas no pós-68 e nos deram a ditadura militar, não é? Estou contente por isso e queria te perguntar uma coisa em uma outra direção. Queríamos levar o papo para o lado de como anda a literatura brasileira. Nós estamos aí no final de século, tempo de muitas liquidações e estou notando, assim, que o escritor brasileiro chegou num lugar de que dificilmente vão tirar, porque todo escritor brasileiro é imortal – ou porque ele está na Academia [Brasileira de Letras] ou por não ter onde cair morto [citação de frase jocosa atribuída ao poeta Olavo Bilac]. Mas você, que não está na academia, assim se livra daqueles escritores como Aurélio de Lira Tavares e está lançando um livro, aqui, sobre Chico Mendes, está saindo simultaneamente. É simultaneamente?  

Márcio Souza: Praticamente.

Deonísio da Silva: Na Suécia, Finlândia, Dinamarca, Holanda, Espanha, México, Itália, Alemanha, Japão e Portugal. Eu, como escritor brasileiro, como leitor brasileiro, como cidadão brasileiro, estou orgulhoso e contentíssimo de ver isso. De repente, não mais que Vinícius de Moraes, ver um escritor brasileiro dando seu recado em tantas línguas e em países que estão na galáxia de Gutenberg. Agora, queria lhe perguntar uma coisa bem específica: por que a imprensa brasileira, que é tão sagaz, demorou tanto? Na minha opinião, ela chegou ao Chico Mendes tardiamente. Por que ela demorou tanto, se é que ela demorou, para descobrir Chico Mendes? E esse empate aqui... se o empate é contra o Chico Mendes, então quem ganhou, hein? Porque o empate é contra; houve um empate, mas é contra ele... 

Márcio Souza [interrompendo]: É, tem aparentemente um... Mais um absurdo amazônico desse título.

Deonísio da Silva: Mais um absurdo amazônico. Então, queria saber sua opinião sobre essas duas coisinhas.  

Márcio Souza: Primeiro, um comentário sobre a palavra empate, que tem uma conotação, não exatamente amazônica, porque eu diria até que o Gil Vicente já usava um pouco essa conotação da palavra empate, que é de empatar realmente, de impedir, e não "zero a zero", não duas forças com a mesma possibilidade. A conotação é de impedir, de evitar, então era isso. Eles dizem: “Vamos empatar o desmatamento”, quer dizer, vão lá e impedem que o seringal seja destruído. Então é nesse sentido que essa palavra é usada lá e virou o nome de uma ação dos seringueiros. “Vamos fazer um empate!” Já se subentende o que significa tudo isso dentro daquele contexto do Acre. Agora, um reparo que eu gostaria de fazer nessa lista que você citou de países – é culpa minha: o livro não está saindo na Alemanha por enquanto. Errei na hora de listar, me confundi. Na verdade, no lugar de Alemanha, leia-se Noruega, que... De fato são dez países em que estão saindo [os livros] nesses 15 dias, agora, que terminaram no mês de maio e, nesta quinzena em que nós estamos entrando, começa a sair esse livro. Claro, pela repercussão toda, uma parte de editoras já publica normalmente meus livros e outras [vão publicar] pela primeira vez. Por exemplo, na Finlândia, eu só tinha um conto publicado, agora saiu esse livro e eles já estão interessados em outros livros meus. Mas falando sobre a percepção da imprensa que você comenta, de fato acho que a imprensa brasileira estava pondo Chico no devido lugar, digamos assim. Estava tratando-o como um líder chato, um líder sindical chato, até um pouco mais chato que os outros, porque ele saía lá do Acre para vir encher o saco aqui no Sul. Não é como o pessoal aqui, que já está no ABC mesmo, só faz atravessar uma pista e vem... Mas o que saía sobre o Chico na imprensa, o mínimo e tal, era condizente com o espaço que o movimento sindical, especialmente o movimento do negócio da luta no campo para reforma agrária, já tinha. E não foi a imprensa brasileira que chegou tarde, porque a imprensa internacional também chegou muito tarde em relação ao Chico Mendes. E ela chegou indicada por sinalizações e um pouco distorceram a figura dele.

[...]: Por exemplo?

Márcio Souza: Porque ele foi iluminado, não exatamente como aparecia anteriormente na imprensa, daí que recebeu um espaço maior. Porque o Chico morto ressuscitou não como um sindicalista, mas como um ecologista, um defensor do verde, não muito diferente também dos cantores de rock; um Chico despolitizado, um Chico Mendes dessangrado, liofilizado,  foi esse Chico Mendes que recebeu todo esse espaço. Depois que se começou a repor toda a substância do Chico Mendes novamente, ele começou a irritar. E hoje, por exemplo, a imprensa volta a dar um pouco o espaço que ele merece. Então, na verdade, a imprensa não descobriu tardiamente, a imprensa já sabia o lugar dele. Não a imprensa, mas a grande imprensa, quem manda na imprensa. Acho que até houve muito esforço da parte de muitos jornalistas, muito do que sobrou do Chico, por exemplo, o seu último depoimento foi dado ao Jornal do Brasil, que publicou depois que ele morreu...

Djalma Limongi Batista: Márcio, queria perguntar ainda sobre a Amazônia, mas em relação aos seus livros. Conheço sua obra, a gente se conhece desde adolescente, sou amazonense. E eu, inclusive, quero dizer que dentre os seus amigos, alguém gostou do [O] Mostrador de sombras, gosto muito do livro. [risos] Vejo o livro de vez em quando, acho um barato, inclusive ia perguntar mesmo sobre... Não li ainda inteiro O empate do Chico Mendes, mas alguma coisa lá me saltou quando eu li. Eu me lembrei do Mostrador de sombras e achei o discurso muito parecido, feroz, radical. Masno Mostrador você apresentava a Amazônia como uma região do silêncio, que era acostumada ao silêncio, em que a gente vivia sob esse terror do silêncio. E, através da sua obra, principalmente quando você analisava a cultura da Amazônia, você tocava neste ponto de um enigma, de um silêncio, de um desespero asfixiante, de uma coisa assombrada, assim, que sempre me passou muito forte. E, de repente, aí no Chico Mendes tem uma hora em que você fala que a Amazônia é uma terra privilegiada e que, apesar dessas rachaduras, disso tudo, ela já encontra um caminho de esperança e tem umas vitórias. Eu gostaria de que você falasse sobre essas esperanças, essas vitórias. O que levou a esse pensamento seu, essa trajetória de uma coisa totalmente pessimista, terrível,  que, inclusive, o colocou até em conflito lá na região politicamente? Você foi mais ou menos até diria perseguido, em algum momento, lá em Manaus, embora adorado por uma parte também, principalmente pelos intelectuais. E aí a gente viu que você teve que se afastar até de lá. Então o que o levou à distância? Tem alguma coisa pessoal nisso? Porque ao mesmo tempo também me traz uma reflexão engraçada: quando você era mais cáustico, mais violentamente irreverente, como no Galvez, você não perdoava nem as pessoas da região... 

[...]: Coisa da mocidade dele.

Djalma Limongi Batista: Não sei. E agora você coloca muito, apesar da tragédia... Você chega na tragédia – a tragédia da Amazônia, a tragédia do Chico Mendes, não dá para passar por cima –, mas você torna tudo muito vítima de um contexto. Então gostaria de que você falasse um pouco dessa... 

Márcio Souza: Claro, acho que é importante o que você coloca aí. Primeiro, há um hiato, um espaço de experiência vivida entre O mostrador de sombra, especialmente naquele capítulo sobre o cinema da Amazônia e esse livro que estou publicando, é óbvio...

[...]: Um é de 1967, não é? 

Márcio Souza: Um é de 1967. Eu estava completando vinte anos nessa história. Tem texto que publiquei com 14 anos no jornal e que pus nesse livro.

[...]: É um autor precoce. [risos] 

Márcio Souza: E um autor de Manaus, como você sabe, que não conhecia a Amazônia, porque até aquela época você podia nascer em Manaus, crescer, pegar um avião no aeroporto e ir embora para Miami, para a Havana, porque tinha aquele vôo, Miami-Havana-Manaus, em que vinham todos os grandes astros de Hollywood para o carnaval do Rio de Janeiro, passavam por Manaus, pernoitavam no Hotel Amazonas. Viagens direto para Europa ou para o Rio de Janeiro sem o menor contato com a região amazônica...

Djalma Limongi Batista [interrompendo]: Nós íamos receber todos esses astros – não era Márcio? –, inclusive até o Jean-Paul Sartre.

Márcio Souza: Exatamente, o Sartre... Então, nós não tínhamos de fato contato, nós tínhamos contato com o Sartre e a Simone de Beauvoir   e não com o que seria o Chico Mendes naquela época. Depois que passei pela USP, depois que voltei para fazer um filme, percebi que o filme era feito, independentemente da qualidade, era um filme todo estrangeiro, tinha até receio da própria região. E depois voltei e me empenhei em buscar essa região. Então, pela primeira vez, mantive contato, não só com a história da região, mas com o povo da região, fora de Manaus. Talvez as pessoas que não são de Manaus, nem conhecem Manaus ou não conheceram. Não há favela maior que a "Rocinha" que Manaus é hoje, mas a Manaus de mais de vinte anos atrás, que era uma cidade razoavelmente civilizada, para usar o termo que os paraenses diziam de Belém: “Belém é o último bastião da civilização da Amazônia”... Era para nos irritar. Na verdade, Manaus também era um bastião, era um pouco o forte português que se dissolveu não apenas em ruínas, mas também na nossa alma; tinha entrado um pouco e cercava nosso coração, nos protegia da Amazônia. Então procurei romper isso e fiz todo o trabalho durante dez anos lá, de 1972 a 1982, até eu ter que sair de Manaus. Em 1982, fiz esse trabalho e, claro, entrei em contato e descobri realmente coisas extraordinárias que desconhecia, coisas que estão no mesmo nível da luta do Chico Mendes no Acre. O trabalho, por exemplo, para desmontar praticamente trinta anos de sindicalismo a favor dos patrões feito pelos trabalhadores da Zona Franca de Manaus. E a vitória extraordinária do Ricardo Moraes quando ganhou o sindicato dos metalúrgicos na Zona Franca de Manaus e mudou inteiramente a relação entre os trabalhadores do distrito. E aquelas indústrias extraordinárias que foram montadas lá, todas moderníssimas, finalmente trazendo um contato moderno com aquelas indústrias. São coisas que a gente não pode ignorar que estão ocorrendo, então isso gera naturalmente... E eu teria que reconhecer isso e procurei um pouco reconhecer que, na verdade, embora o contexto seja muito difícil, a própria história da região sempre foi muito adversa. Existe um esforço de superação, muitas vezes vitorioso, da parte do povo de lá, inclusive a região está lá porque esse povo a está defendendo – e sem qualquer sofisticação. Ele defende porque reconhece que, sem a região, eles não vão estar mais lá. O próprio Chico Mendes tinha essa percepção de que sem seringal não tem seringueiro e, sem seringueiro, ele não ia mais existir, ia ser um migrante miserável em uma grande cidade. E sem seringueiro, acabava a cultura dele, ele não podia mais discutir o seu futuro, embora ele soubesse que o futuro do extrativismo não era futuro, não tinha futuro. Então um pouco foi essa percepção que encontrei, aí ilumina muito a transformação que atravessei nesse contato. 

Rodolfo Konder: Nós vamos dar uma pergunta ao Jefferson Del Rios, mas antes nós vamos fazer um pequeno intervalo para dar espaço aos telespectadores, porque temos recebido muitos telefonemas. Vamos fazer um ping-pong com os telespectadores. Vou lhe pedir respostas bem sucintas. Tem aqui as três primeiras perguntas que dizem respeito ao Chico Mendes. José Santos, de Santana, pergunta o que inspirou você a fazer o livro O empate contra o Chico Mendes. Foi apenas o Chico Mendes?

Márcio Souza: Não, também a tragédia toda da região, justamente o livro procura mostrar o Chico dentro do processo da região.

Rodolfo Konder: Ricardo Dantas, de Perdizes: “Quais os resultados das últimas investigações sobre a morte de Chico Mendes?" Ele pergunta se você está sabendo.

Márcio Souza: Nada de novo. O processo está estacionado, este mês o acusado do crime vai a julgamento e espera-se que realmente o processo se resolva, como aconteceu agora com o sequestro do Abílio Diniz, que foi de uma presteza [fala com ironia]. 

Rodolfo Konder: Pedro Aci, de Jacareí: “O que poderia ter sido feito para se evitar a morte de Chico Mendes”?

Márcio Souza: Um governo popular, que é um sonho, não deu certo, mas a reforma agrária resolveria ou um decreto extinguindo os incentivos fiscais na Amazônia, a colocação na ilegalidade de uma entidade como a UDR. Acho que várias medidas que poderiam ter sido tomadas como a prisão dos que estavam ameaçando Chico de morte, quando ele denunciou nominalmente um por um. Se vivêssemos em uma democracia, em um país civilizado, ele estaria vivo ainda. 

Rodolfo Konder: Marcelo Lins, da Aclimação, pergunta de onde vem sua paixão pela Amazônia e pelos povos indígenas.

Márcio Souza: Acho que do certificado de nascimento, da certidão de nascimento. [risos] 

Rodolfo Konder: Silas Rosenveldi, do Jardim Paulistano, pergunta se você aconselharia, nos dias de hoje, alguém a abrir uma editora.

Márcio Souza: Depende do capital e também da vontade de arriscar. Aconselho, sim. 

Rodolfo Konder: José Alvarez, de Taubaté, diz que durante a Constituinte, um deputado propôs uma emenda concedendo independência ao Acre. Ele pergunta se você é a favor da independência do Acre.

Marcio Souza: Os amazonenses financiaram a independência do Acre, a conquista do Acre e, às vezes, nos reunimos lá para brincar com os acreanos e propomos a devolução, simplesmente, aos bolivianos. O medo que nós temos é de que a Bolívia não aceite nessas alturas. [risos] 

Rodolfo Konder: Marcelo Bonfá, do Alto de Pinheiros, pergunta se você acha que é bom, é positivo o futuro da literatura brasileira.

Márcio Souza: Acho que sim, é ótimo. Acho que o futuro é brilhante para a literatura brasileira. 

Rodolfo Konder: Margarida Pereira, da Lapa. "Como você vê um líder indígena premiado no exterior com 100  mil dólares pela defesa da Amazônia?"

Márcio Souza: Não tenho conhecimento dessa premiação, mas espero que esses 100 mil dólares tenham sido aplicados na defesa da causa indígena. Vai dar um grande impulso. 

Rodolfo Konder: André Luiz Pereira, de Pindamonhangaba, pergunta como você, um escritor que vive de direitos autorais, vê a atual conjuntura econômica do país.

Márcio Souza: Preocupadíssimo, porque parte desses direitos tinham virado, para a ministra, especulação, objeto de especulação e estão presos até hoje. Provavelmente, não verei mais a cara deles.  [risos]

Jefferson Del Rios: Um ecologista tido como radical e mal-humorado, como [José Antônio] Lutzenberger [(1926-2002) foi secretário nacional do Meio Ambiente do governo Collor], qual é a chance dele, no governo show do Collor, de realizar um trabalho efetivo pela Amazônia?

Márcio Souza: A minha esperança é que ele consiga levar à frente as suas propostas; inclusive para nós, da Amazônia, as propostas radicais de Lutzenberger são extraordinárias. E uma das propostas que nós gostaríamos de ver realizada é justamente uma espécie de moratória, dar uma parada para ver o que se pode fazer. Um outro aspecto – e o Lutzenberger também comunga dessa visão – seria a ocupação da região amazônica efetivamente, mas uma ocupação pacífica pela ciência, sob o controle do povo brasileiro. Agora, no contexto deste governo, realmente estão cada vez mais utópicas as posições de Lutzenberger. E acredito que o programa real do governo para a Amazônia e para a questão do meio ambiente nesse país é o programa da Escola Superior de Guerra, que foi exposto. Este acho que é o programa real; choca-se inteiramente com a filosofia e a perspectiva de luta do Lutzenberger. Como nativo da região, inclusive, estou envolvido até – todo amazonense está – naquela listinha de extinção, como o lobo-guará... Aquele negócio tonto, "estamos em extinção", então espero que ele consiga levar à frente esse plano, embora não acredite.

Ricardo Amaral: Professor, você aqui já demoliu a Lucélia Santos, triturou Raoni, arrasou com Sting. Acho que você está fazendo essa crítica de uma perspectiva de esquerda. Agora eu gostaria que você aprofundasse um pouco isso, para não ficar muito parecido também com o general Leônidas [Pires Gonçalves, foi ministro do Exército de 1985 a 1990, durante o governo Sarney] – que Deus o tenha em bom pijama! –, que dizia: “Olha, quem defende a Amazônia são esses botocudos ignorantes e alguns estrangeiros que querem internacionalizar a região”. Qual é o seu programa realmente para a Amazônia? 

Márcio Souza: Olha, acho que...

Rodolfo Konder [interrompendo]: Se me permite, Márcio, vou até pegar uma caroninha na pergunta do Ricardo. Hoje não se fala em internacionalizar a Amazônia, fala-se na natureza internacional da questão amazônica e da questão ecológica, que me parece uma questão claramente supranacional, não é verdade? Então, por favor. 

Márcio Souza: Bom, primeiro acho que não fiz nenhuma demolição dessas de que você está falando aí, especialmente porque não sou professor. [risos] Fiz umas ironias, é verdade. Primeiro, porque você talvez não se sinta na minha pele, porque você é de um estado que não precisa de solidariedade e realmente estou em uma lógica, hoje, numa posição que... Chega certo momento em que é melhor a exploração do que certas solidariedades, porque contra a exploração há o que fazer, mas contra as pessoas que vêm prestar solidariedade, não, porque elas se julgam justas e são, você entende? E aí a discussão é completamente esvaziada. Então, você me pergunta se eu teria uma proposta pessoal diferente. É obvio que minha resposta e a minha posição são completamente diferentes da do general Leônidas. [risos] Embora a tradição política não seja nenhum lastro para ninguém... Não é porque você tem um passado de meia dúzia de cadeias e etc,. que isso vai lhe dar lastro para ter uma posição melhor que a do general Leônidas, não é exatamente isso. Mas a perspectiva que tenho, primeiro, é nunca deixar de politizar a Amazônia, a questão da Amazônia e a questão da destruição da região. Não concordo que a questão da região seja discutida com a questão regional, por exemplo, nunca concordei com isso. Faço parte de uma corrente muito importante de opinião nesse sentido dentro da região. Mas também não concordo que ela seja uma questão internacional.

Rodolfo Konder [interrompendo]: A questão ecológica, você não acha que seja hoje uma questão... 

Márcio Souza [interrompendo]: Talvez a questão ecológica, mas não a questão da região. Acho que tem duas discussões aí. Uma da questão da Amazônia, que é uma questão brasileira. Como não tem um projeto do Brasil, não pode ter um projeto para região amazônica. Você vê um momento em que a região teve uma exploração com objetivo realmente claro, foi no século, 18 com o Marquês de Pombal. Antes disso, ele mandou investigar, mandou o que tinha de melhor do ponto de vista científico da época dele e foi um projeto excelente para os portugueses, é claro, para o governo que Marquês de Pombal representava.

[...]: Você está diante de um fã convicto do Marquês de Pombal... 

Márcio Souza [interrompendo]: Do Marquês de Pombal, que teve essa visão. Depois desse levantamento, ele aplicou na Amazônia, por exemplo, a industrialização, toda a estrutura de produção naval ainda restou. Inclusive, hoje, pelo interior do Pará, a construção de barcos tradicionais é memória da entrada de especialistas da área naval e também da manufatura de borracha. Até meados do século 19, a Amazônia exportava produtos manufaturados, não a borracha in natura. Outra coisa foi a introdução do pequeno proprietário agrícola e de uma agricultura mais avançada, tanto que foi pela Amazônia que entrou o café, que depois migrou para o Sul do Brasil. E havia outros tipos, o algodão, a plantação do cacau, que era nativo do baixo Amazonas, foi para Nordeste já domesticado dessa experiência. Como depois se perdeu ou nunca se construiu um objetivo, um projeto para o país, nenhuma região teve. Tudo correu à revelia de tudo. Acho que o grande drama da região é que ela ficou atada às estruturas econômicas subsequentes no que tinha de mais atrasado, que era o extrativismo. E, com o extrativismo, que é mais atrasado do que o latifúndio nordestino, por exemplo, mas sendo aplicadas ali técnicas modernas de drenagem da produção econômica da região, porque tudo que se produzia lá era encaminhado para as pontas mais modernas. Por exemplo, o ciclo da borracha inteiro financiou a República. Quando a Amazônia perdeu o que tinha, o café entrou para bancar, mas aí eles não tinham nenhum projeto, o café já estava financiando, então que se lasque a Amazônia, quer dizer, esta é a questão que se deve discutir no contexto de um "projeto Brasil": o que nós queremos do Brasil e o que nós queremos da região amazônica. Isso é indissociável da política desse país. E outra coisa: se você retira a Amazônia desse contexto político, é muito complicado pensar regionalmente ou pensar de maneira internacional. Porque quando você pensa de uma perspectiva internacional, por exemplo, hoje se fala muito na transformação da região em várias ou em uma só reserva extrativista. Isso dito para uma pessoa da região é um absurdo. Justamente porque foi o extrativismo que levou a região a esse estado de inanição política e econômica. O Chico Mendes, por exemplo, propunha a existência da reserva extrativista, como uma tática para evitar o fim do seringal. Mas, como ele era seringueiro no Acre e hoje se fala de seringal nativo naquele ano, quando na verdade tinha um seringal plantado ao longo de 150 anos de trato, porque esses seringueiros foram trabalhando de geração em geração esses seringais... Esses seringueiros do Acre têm experiência de silvicultura realmente. O que o Chico vislumbrava era um salto qualitativo, como os países escandinavos fizeram com a estação da madeira extrativa para silvicultura, um projeto semelhante. Eles não sabiam de nada desse negócio dos suecos, sou eu que já estou extrapolando. Mas, se ele soubesse, ficaria maravilhado, porque já há exemplos históricos disso. E, como [a d]o Chico, há outras propostas de lutas muito localizadas na região, então vejo com muita preocupação essa coisa do show bizz e da superficialidade. Eu me divirto, inclusive, com isso, mas acho que não pode ser só isso.

Ricardo Amaral: Agora, nesse campo da superficialidade, principalmente as pessoas que não são da região como eu, tendem a cair em um dilema que acho que o próprio Chico enfrentou, que é entre o PV e o PT. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre a superação desse dilema da parte do Chico e se você superou também ou se já passou por ele.  Eu gostaria de que o Márcio contasse para nós como foi a superação por parte do Chico Mendes daquele dilema entre PV ou PT. Para quem está aqui do Sul é bastante... 

Márcio Souza: Ah, é interessante que eu não vi esse dilema.

Ricardo Amaral: Ele não esteve filiado alguma vez a um partido ou outro? 

Márcio Souza: Ele sempre foi do PT. O Chico é fundador do Partido dos Trabalhadores Nacional e ajudou a organizar o Partido dos Trabalhadores do Acre; inclusive, quando conheci o Chico, foi no dia da assinatura da ata de fundação do PT aqui em São Paulo.

Ricardo Amaral: Quando ele usava aquelas camisas: “Legalize a maconha”...  

Márcio Souza: Isso foi mais tarde, o Chico era um grande coordenador político! Ele tinha uma sensibilidade, ele sabia unificar, porque  percebeu que as forças [contrárias] eram muito poderosas. E outra coisa, o Chico fazia 24 horas por dia de luta política. O Chico, que se alfabetizou aos vinte anos e que se esforçou para conhecer a história da região – que não é brincadeira, porque levei dez anos estudando sobre a história da região –... Tinha livro que tinha sido publicado em 1930, [apenas] 500 exemplares, [já] estava esgotado e só tinha na casa de um desembargador em Belém do Pará, que eu tinha que procurar. Então você imagina isso para um seringueiro lá no Acre. Muitas vezes ele tinha que ir a Rio Branco, conversar com os professores da Universidade Federal do Acre, perguntar coisas, tal. Esse homem tinha capacidade de escrever; ele, pessoalmente, sentava e escrevia cartas, bombardeava este país com cartas, escrevia para todo mundo, para entidades internacionais, para os jornais. Ele estava sempre presente, [em] todas as oportunidades o Chico ocupava... era um militante extremamente dedicado. Então ele era um representante de dentro do trabalho de construção do Partido dos Trabalhadores, do PT, e pouco se fala de um aspecto interessantíssimo em que a história fará justiça ao PT... 

Ricardo Amaral [interrompendo]: Qual era a tendência do Chico?

Márcio Souza: O Chico anteriormente pertenceu ao PCdoB [Partido Comunista do Brasil], mas saiu do PCdoB na época da fundação do Partido dos Trabalhadores. Mas o Chico pertence a um fenômeno curioso que ilumina o trabalho do Partido dos Trabalhadores, um pouco fora do que aparece na imprensa, que é um trabalho de cidadania, de descoberta de cidadania, de pessoas muito pobres e marginalizadas dentro da sociedade brasileira. O próprio Chico é um exemplo disso. Esse conhecimento político, sua preocupação política, ele foi conhecer na organização do Partido dos Trabalhadores e dentro dele. É claro que a formação política dele é mais complexa, não é só... O PT até é um desaguar dessa formação, porque dentro do Chico tem o sindicalismo muito avançado da Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], nos anos 1960, na Amazônia, que era um aspecto muito curioso também da situação política lá, da Igreja, da teologia da libertação, que só existia no Acre, porque em todas as outras partes da região amazônica existia a Igreja mais tradicional e o trabalho político de militância, que logo a seguir surge com o PT. Mas, inicialmente, como sindicalista, justamente por esse conhecimento, por esse esforço diário e cotidiano de luta, ele vai descobrindo a necessidade de fazer articulações; era um grande articulador, mas nunca deixou de ser realmente um militante do Partido dos Trabalhadores. 

Rinaldo Gama: Márcio, parece que nós estamos aqui nos debatendo desde o início, com um dilema entre amazônicos e não amazônicos, quem conhece a Amazônia e quem não conhece a Amazônia. Logo no princípio de seu livro você esclarece que vai falar como amazônico e, ao longo do livro inteiro, se refere, volta a esta colocação: “Nós, os amazônicos, pensamos assim ou pensamos assado”. E você fez aqui, entre aspas, uma acusação à imprensa, de que ela teria chegado tarde – não a imprensa brasileira, mas a imprensa comum e tudo que a imprensa possa implicar – ao fenômeno Chico Mendes. Uma das primeiras coisas que você disse aqui foi que a sua idéia inicial não era tratar do Chico Mendes. Você, provavelmente, tinha na cabeça uma coisa sobre a Amazônia, um novo livro sobre a Amazônia. E depois, mais adiante, você diz que a imprensa chegou tarde quando Chico Mendes já estava em vias de ser assassinado ou depois de ser assassinado. Eu pergunto: se o Chico Mendes não tivesse sido assassinado, haveria um livro chamado O empate contra Chico Mendes, assinado por Márcio Souza, um amazônico? E esse mesmo livro teria o interesse de dez países? Embora você tenha publicado livros lá, sei de tudo isso, mas é o Márcio ficcionista, quer dizer, tudo isso não teria sido uma conjunção de fatores entre Amazônia, a questão ecológica? Inclusive para você, porque um livro que tem em algum momento o nome de Chico Mendes – e acho que não é por acaso que você não pensou primeiro no Chico Mendes –... Na minha opinião, pelo menos, o Chico Mendes aparece e some aqui no livro, assim como um fio que vai longinquamente conduzindo o que você quer falar, mas ele está no título. Então pergunto: será que só a imprensa internacional, ea imprensa brasileira chegaram atrasadas ao Chico Mendes ou todos nós chegamos atrasados ao Chico Mendes – inclusive os "amazônicos" como você? Se ele não estivesse morto, existiria esse livro?

Márcio Souza: Bom, é claro que não. Aliás, preferia que esse livro tratasse de outro assunto. Agora, a bem da verdade, eu queria fazer um reparo...

 

Rinaldo Gama [interrompendo]: O Chico Mendes só valeria um livro se ele tivesse morto?

Márcio Souza: Não, não é isso que quero falar, o que quero dizer é o seguinte. Primeiro, quero fazer um reparo: não acusei aqui nem disse que a imprensa chegou atrasada... 

Deonísio da Silva [interrompendo]: Fui eu que disse, Rinaldo.

Márcio Souza: Foi o Deonísio da Silva que disse, aliás, defendi a imprensa, dizendo que... Aliás, foi outra posição...

Rinaldo Gama: É, mas você disse que a imprensa, de qualquer maneira, diante de um cidadão como o Chico Mendes, que era uma pessoa que irritava, deu a ele um espaço reduzido e agora volta a dar a ele um espaço reduzido. Você terminava a sua colocação assim: “é um espaço que ele mereceria”.

Márcio Souza: Exatamente, mas isso é verdade. E outra coisa: examinei bastante o material de imprensa, tenho ótimas matérias, mas a melhor matéria sobre Chico Mendes saiu no Libération, no jornal francês. É a mais completa, que fala de toda essa complexidade política da personalidade do Chico Mendes, com compreensão, é curiosíssima a matéria. Bom, mas esse é só um esclarecimento. Não fiz uma crítica nesse sentido sobre a imprensa. Eu não disse que a imprensa chegou tarde ou cedo. E outra coisa: nunca pretendi nem chegar cedo nem tarde em relação ao Chico Mendes. E mais: a discussão que desenvolvo aí nesse livro é uma discussão que venho fazendo há pelo menos uns 25 anos. E, se estou publicando hoje um livro em que está o Chico Mendes como personagem que alinhava essa discussão, é porque era uma maneira de expor o debate da questão amazônica para os leitores brasileiros. É mais uma maneira de discutir velhas discussões que vêm sendo feitas não apenas por mim, mas por outras pessoas que estão pensando na região, não só de lá, mas de outras partes; não só do Brasil, mas de outras partes do mundo também que pensam a região. Outra coisa é que esse talvez não fosse o livro perfeito agora para publicar, talvez... E esse livro estou me propondo a fazer, inclusive, [como] se fosse um livro sobre a história da região, não mais uma vulgarização da história da região. Um livro mais informativo, que servisse de roteiro para as pessoas que têm interesse de conhecer um pouco mais a região porque é difícil. Eu mesmo me coloquei na pele de Chico procurando se informar sobre a região e sei da dificuldade, mesmo para quem está lá no Acre ou está em Manaus ou Belém, ter algumas informações especialmente sobre períodos da história regional. 

Rinaldo Gama [interrompendo]: Quer dizer, a colocação de Chico Mendes aqui, então, vem como uma forma de tornar o debate um pouco mais atrativo, já que...

Márcio Souza [interrompendo]: Não, o Chico Mendes hoje está no centro da questão amazônica, não há como fugir. Não se pode falar da Amazônia sem discutir a luta do Chico Mendes. Inclusive porque tem posições hoje que põem um fato estratégico da luta de Chico Mendes como solução para o futuro da região. Você vê como ganhou e, portanto, não se pode fugir disso. É um fato histórico, não é? 

Rinaldo Gama: Então esse outro livro que você faria, que seria mais para esclarecimento, pela falta de uma bibliografia etc, sairia aqui  – de um lado - e, do outro lado, teria um livro que seria esse, digamos, ampliado, em que o Chico Mendes teria uma dimensão maior e aí você discutiria mais a questão Chico Mendes

Rinaldo Gama [interrompendo]: Vocês chegaram a pensar nisso enquanto ele estava vivo? Enquanto ele esteve vivo, você chegou a discutir isso, a propor que ele apresentasse a você um depoimento, que ele fosse incluído em um projeto que você tinha? Márcio Souza, nós estamos falando um pouco por hipóteses. Digamos que o Chico estivesse vivo e feliz com a Isamar [companheira de Chico Mendes], lá em Rio Branco, continuando sua luta. O Chico entraria nesse livro de história da Amazônia em um capítulo que falaria ou sobre o fim do extrativismo ou no capítulo que falasse sobre as lutas populares na região amazônica, incluindo a luta dos sindicalistas rurais de Santarém... 

Márcio Souza: Não, porque é uma questão que se vem discutindo há muito tempo. Eu não estou discutindo hoje, não é novidade para ninguém que estou discutindo a região. Então enquanto a história vai rolando, vai se discutindo isso.

Rinaldo Gama: Pois é bem por isso que estou lhe perguntando se você chegou a propor ao Chico Mendes isso que você está me contando agora... 

Márcio Souza [interrompendo]: Não!

Rinaldo Gama: Se ele estivesse vivo, faria parte de um capítulo... Alguma vez vocês conversaram sobre isso? 

Márcio Souza: Não, nunca. Inclusive, meu contato foi muito rarefeito. Lamento muito não ter tido mais contato com ele. Para você ter uma idéia, eu tive dois contatos com o Chico pessoalmente: um aqui em São Paulo e outro em Manaus, quando Chico foi ser julgado na Auditoria de Guerra, arrolado com outros sindicalistas como Lula, Jacó Bittar, naquele episódio de 1980. Meu irmão ficou mais amigo dele, porque foi o encarregado de ficar conduzindo os sindicalistas do Acre de um lado para outro de carro. Tive contato com ele, conversei algumas vezes; duas exatamente, ele me telefonou para participar de eventos no Acre aos quais não pude comparecer por outros compromissos. Mas eu não estava envolvido, porque não sou seringueiro, não sou acreano, sou amazonense. A luta dos acreanos era aquela, nós temos nossas lutas. Fiz trabalhos, que nunca foram publicados, de análise sobre a situação da Zona Franca de Manaus que ajudaram os trabalhadores de lá. Eu estava na minha luta, e eles nas deles. Eles sabiam o que eu estava fazendo em Manaus e eu sabia o que o Chico estava fazendo no Acre. Mas nós estávamos cada um na sua luta. Ocorreu um fato e a Amazônia, naquele momento, se tornou uma questão internacional discutida no mundo inteiro. Hoje não mais. Depois, caiu o Muro de Berlim [muro construído em 1961, na cidade de Berlim, depois da derrota dos alemães na Segunda Guerra Mundial, dividindo-a entre os aliados: a parte ocidental (capitalista) para os americanos, britânicos e franceses, e a outra para os soviéticos, que implantaram o sistema comunista. A queda do muro, em novembro de 1989, marcou o início do fim do regime comunista no leste europeu e provocou uma crise generalizada nos partidos comunistas] e toda a situação do Leste Europeu... hoje esta é a grande questão internacional. A Amazônia já foi para segundo plano.

Felipe Lindoso: Márcio, é de uma cumplicidade não pensada, afinal de contas, porque as sintonias entre nós são muito mais antigas do que o programa, mas a pergunta que eu tinha preparado para você entra um pouco no que o Rinaldo levantou. Você é um escritor profissional que oscila muito entre o ensaio e a ficção. Uma carreira que começou como ensaísta, inclusive, seu último livro é um ensaio, o próximo é uma ficção. Não são muitos os escritores brasileiros que têm essa tradição; alguns mais comumente entram na área da crítica, como, por exemplo, o Deonísio, que já entra numa área da crítica junto com a manifestação policialesca da crítica, como é o caso do livro sobre a censura ao Feliz Ano Novo do Rubens Fonseca. Mas, por outro lado, você tem uma tradição de escritores que oscilaram muito nisso daí, para citar inclusive os modernistas, Mário de Andrade, Oswald [de Andrade, talvez o professor Darcy Ribeiro hoje, que passa da antropologia para a ficção mais desvairada também ou da ficção mais séria para a antropologia mais desvairada, de um lado para o outro. Mas a pergunta que quero colocar é sobre as razões dessa oscilação. Se esses ensaios são uma espécie de base para o desenvolvimento de futuros romances ou em que medida  representam atividades paralelas, mais ou menos estanques, da atividade comum do escritor. Quer dizer, colocar essa sua dualidade entre romancista, ficcionista e ensaísta como ela vem se manifestando no correr desses anos...

Márcio Souza: Acho que poderia explicar um pouco assim... Funciona na minha intimidade essa questão da seguinte maneira: tenho uma formação em ciências sociais na Universidade de São Paulo. Então sou um escritor meio anfíbio, digamos assim, trabalho muito com o jogo da criação, o jogo poético, o lance de dados na poesia, como diria o Haroldo de Campos. E, ao mesmo tempo, para fazer esse jogo poético, preciso de uma sólida base investigativa. Só consegui fazer o Galvez, por exemplo, meu primeiro romance, depois de pesquisar para A expressão amazonense [do Colonialismo ao neo-colonialismo], um livro que foi publicado posteriormente ao Galvez, mas que é anterior ao Galvez. Quando publiquei o Galvez, ele já estava pronto, o Galvez acabou puxando a edição do Expressão amazonense. Esse livro é uma espécie de roteiro pessoal de conhecimento da minha própria região. Eu já tinha até me reportado anteriormente a quanto nós éramos forçados a ter uma educação lá em Manaus, para não ter o menor convívio com a região amazônica. E um pouco do roteiro desse aprendizado foi sintetizado na Expressão amazonense, como a base não só para o meu trabalho literário, mas também até para o trabalho teatral. Da mesma forma como os outros livros que eu fui publicando, como O palco verde, sobre a experiência teatral, posterior à própria experiência, um pouco para compreender o que tinha ocorrido com aquela experiência. Como agora com o Chico Mendes, porque muitas das idéias de Chico Mendes já estão no romance que é anterior, embora O fim do terceiro mundo vá ser publicado agora em outubro, é um romance, um livro anterior ao livro sobre o Chico Mendes e a Amazônia. Então a parte teórica entra um pouco assim como ou reafirmação das minhas inquietações ou então roteiros também de descobertas e propostas de discussão sobre essa questão.

Rodolfo Konder: Márcio, nós vamos dar mais um espaço para os telespectadores, muitos telefonemas e muitas perguntas. Nelson Oliveira, de Santa Cecília, pergunta se o livro Galvez, o imperador do Acre será transformado em filme ou novela. 

Márcio Souza: Não tenho notícias quanto à novela, agora os direitos pertencem ao Hector Babenco e espero que ele faça o filme.

Rodolfo Konder: Marcílio Dias Vasconcelos, do Paraíso, pergunta qual foi a influência do colégio Dom Bosco em seus livros. 

Márcio Souza: Marcílio foi meu colega no colégio Dom Bosco, lembro-me muito bem do Marcílio. O Gualter, que é outro amigo meu, que está por aqui pelos estúdios, também deve lembrar do Marcílio. Acho que os salesianos, sem saber, são responsáveis bastante pelo que sou hoje. [risos]

Rodolfo Konder: David Ambubler e Danice da Silveira, ambos aqui de São Paulo, perguntam se apesar de o Sting ter sido tão criticado, você acha que o trabalho dele é válido e se ele deveria parar ou continuar. 

Márcio Souza: Acho que, se ele quer ajudar realmente, primeiro deveria se informar sobre os canais que realmente estão precisando de ajuda. E acharia válido se ele continuasse esse trabalho.

Rodolfo Konder: José André da Silva, da Freguesia do Ó: “O que você acha dos irmãos Villas Bôas [os sertanistas Leonardo, Cláudio e Orlando Villas Bôas (ver entrevista no Roda Viva de 10/12/1999), em 1943, comandaram a expedição Roncador-Xingu, criada pelo então presidente Getúlio Vargas para desbravar o Brasil central]”? 

Márcio Souza: Conheço o trabalho deles no Parque Nacional do Xingu, acho que são importantes amigos dos índios.

Rodolfo Konder: Virgínia Meireles, do Pacaembu: “O que você acha de organizações que defendem os interesses dos índios como a Comissão Pró-Índio? 

Márcio Souza: Eu tenho feito muitos trabalhos, nesses últimos anos, que ficam ao lado das entidades como a Comissão Pró-Índio de São Paulo. O trabalho da Comissão Pró-Índio foi importantíssimo e ainda é para ajudar a luta dos povos indígenas do Brasil. São entidades como a Comissão Pró-Índio que deram todo esse avanço, não apenas de organização, mas também de elevação, inclusive, da parte do conhecimento técnico dessas lideranças. O aparecimento hoje de lideranças extraordinárias, que discutem com conhecimento de causa a sociedade brasileira, que vêm de militâncias como a Comissão Pró-Índio de São Paulo.

 

Rodolfo Konder: Francisco Andrade faz uma pergunta nesse sentido, ele diz: “O Chico Mendes deixou sucessores, existem pessoas na região com o mesmo nível de dedicação do Chico?"

Márcio Souza: Acredito que sim. No Acre tem várias lideranças, inclusive a do próprio Osmarino [Amâncio Rodrigues] que é o presidente [e fundador] do Conselho Nacional dos Seringueiros...

Rodolfo Konder [interrompendo]: E que está ameaçado também. 

Márcio Souza: ...que está nesse momento sendo ameaçado pelos pistoleiros, lá dos latifundiários, ele é uma liderança à altura do Chico.

Rodolfo Konder: Jorge Antônio, de Pirassununga, pergunta o que você acha do trabalho das Forças Armadas na região, especialmente da Força Aérea, que abrange boa parte da Amazônia. Ele é dispensável? 

Márcio Souza: No caso da Força Aérea, não. O trabalho da Força Aérea é digno dos maiores louvores. Eu diria, inclusive, que é mais fácil você xingar a mãe de um caboclo perdido no interior da Amazônia, do que a do piloto da FAB. A atuação da FAB é uma coisa assim extraordinária. Realmente quem conhece a Amazônia sabe dos problemas da região, sabe o alto serviço prestado pelos pilotos da FAB por essas linhas, por essas pessoas que estão lá, por esses malucos que saem de Manaus em suas aeronaves fazendo a ligação dessa região. Falando da FAB, acho que mereceria até um país melhor, para a FAB atuar melhor ainda.

Rodolfo Konder: Luiz Achut, de Porto Alegre, pergunta se todo esse interesse internacional, inclusive aliado a uma missão de jornalistas intelectuais brasileiros, não poderá tirar a Amazônia do controle do Brasil? 

Márcio Souza: Não acredito, não.

Rodolfo Konder: Ana Maria Ferreira, do Morumbi, pergunta se existe um grupo do governo ou de intelectuais que esteja preparando algum projeto para cuidar do que fazer com a Amazônia. 

Márcio Souza: Na área de governo, desconheço.

Alexandre Machado: Eu queria voltar à questão política e pedir ao Márcio que fizesse uma análise da situação das artes do Brasil. Tenho a crença de que esse período de autoritarismo que nós vivemos produziu um holocausto cultural no nosso país, em que apenas a manutenção das formalidades democráticas... Você agora há pouco falou que se vivêssemos em uma democracia... Mas, pelo menos, a abertura existente no país permitirá que este país se movimente, acho que já está se movimentando, no sentido de ser o progresso da volta a uma visão mais crítica por parte de toda a sociedade. Num programa que eu fazia na TV Gazeta, entrevistei o secretário da Cultura, o Ipojuca Pontes, e perguntei se ele não tinha inveja do Zico, já que todo fim de semana o presidente da República faz propaganda da Secretaria de Esportes. E ele geralmente não faz a mesma propaganda da Secretaria de Cultura; ele não pára no final de semana para ler um livro, para assistir a um filme do Djalma... [risos] Seria uma coisa interessante se o presidente se dedicasse um pouco à cultura. 

Márcio Souza: É que a mãe dele proibiu esportes perigosos, não é? [risos]

Alexandre Machado: Pois bem, eu gostaria de que você nos desse esse balanço, já que temos aqui gente ligada a teatro, cinema, literatura e os nossos telespectadores certamente gostariam de ouvi-lo: como é que você sente que estamos em nosso país? Você acha que o governo deveria ter uma atuação maior em relação à cultura, ou como alguns pensam, deveremos deixar os artistas todos à mercê do chamado mercado? 

Márcio Souza: Tenho muito medo dos liberais brasileiros, não é de hoje. Aliás, acho que as pessoas um pouco mais preocupadas com o país temem o liberalismo, as maneiras como ele chega aqui. Acho que uma das formas mais cruéis do liberalismo justamente é a afirmação de que as artes no Brasil já receberam ajuda demais e hoje precisam aprender a conviver com suas limitações, a vencer com aquilo que o mercado lhes der. São afirmações desse tipo que, mais uma vez, em nada colaboram para o processo brasileiro. Agora mesmo quando o Deonísio da Silva comentava sobre a perspectiva da literatura brasileira, uma coisa que me ocorreu, por exemplo, e sempre me ocorre, é que tudo que foi possível fazer individualmente pelos escritores brasileiros, para a literatura brasileira fora do Brasil, foi feito. Mais do que foi feito agora, só se o Brasil tiver uma perspectiva, só se o Brasil souber o que quer de si mesmo. Acho que essa resposta que precisa ser dada ao país ou o país [precisa] se dar, é fundamental para saber como agir em relação a outras, mas fundamentalmente como reagir em relação à questão da cultura. Nós realmente tivemos, nesses trinta anos de ditadura militar, um processo grave de impedir que se desenvolvessem as relações sociais que produzem a cultura. Acho que nós tivemos, na área criativa do país, muita dificuldade, porque, se nós formos computar, o Estado nunca deu nada para os verdadeiros artistas. O Estado nada deu, ao contrário, tentou impedir. Nós temos hoje listas das peças que foram interditadas durante esse período todo, um número incontável de músicas que foram proibidas, de filmes que foram proibidos, cortados e mutilados, de livros que foram proibidos. Todo o esforço feito foi muito esforçado para que isso não chegasse ao contato com os espectadores, com os leitores brasileiros. De outro lado, essa discussão da participação do Estado... Nunca foi possível nem estabelecer as reais proporções em que o Estado pode intervir - e deve intervir - nessa questão, justamente porque esta pergunta nunca é respondida: o que nós queremos neste país? Uma vez que se responder esta pergunta, países que já responderam estão sabendo o que fazer com a cultura. O Estado intervém no município na Alemanha Federal e a arte vai muito bem. Um dos teatros mais inventivos do mundo é o teatro alemão hoje. Ele é inteiramente financiado pela municipalidade. A Alemanha não financia escritores, as editoras lá são todas particulares, mas o governo alemão ajuda na divulgação dos seus escritores no mundo. Eles pagam as traduções dos seus escritores. A mesma coisa se poderia dizer, por exemplo, do Canadá, que é um país da América, um país jovem, portanto sem tradição. Podem afirmar: “O Estado na Alemanha faz isso, porque já tem uma tradição histórica”. Mas o Canadá – que é tão jovem quanto o Brasil, talvez até mais jovem que o Brasil – tem. O Canadá, que nem é nação como o Brasil, é um Estado com várias culturas que se entrelaçam, com basicamente uma cultura de língua inglesa e uma de língua francesa. O Canadá sabe o que quer e tem uma política do Estado participando na movimentação. A literatura canadense hoje é uma literatura internacional com a ajuda do Estado. Nunca ninguém saiu acusando a Margaret Atwood, por exemplo, a mais importante escritora de língua inglesa do Canadá, talvez uma das melhores escritoras de língua inglesa do mundo, de ser uma marajá da cultura do Canadá, porque eles sabem o que querem do país. Eles estão realmente imbuídos de uma perspectiva para o país. Acho que essa é a discussão que deveríamos fazer, porque há um papel para o Estado, como há um papel para a independência da produção cultural. Acho que encontrar essa política – e a sociedade já deu indicativos disso, a sociedade como um todo – é o que deve ser feito. O que acontece é que o Estado.... Por exemplo, hoje, nessa mutação do governo Collor... O Estado brasileiro sempre está começando do nada, eu até acho estranho quando [se] diz que o brasileiro tem falta de memória. Acredito que nós temos é “disritmia histórica”, porque nós estamos sempre levando pauladas desse tipo. Nós estamos lembrando uma coisa e, de repente, parece que o ciclo... inclusive já computado de 15 em 15 anos. Começamos do zero, esquecemos, levamos uma paulada histórica, um pontapé, uma patada histórica e esquecemos tudo. Mas a questão principal é essa, que tem viciado, inclusive, todas as políticas.

Júlio Carlos Duarte: Sobre essa questão de estilo, tem uma lenda, não sei se é verdadeira, que conta uma história engraçada sobre como você encerrou sua carreira no cinema. Dizem que você adaptou um conto de um escritor português e, um belo dia, o escritor foi ver na cinemateca em Lisboa e logo em seguida teve um ataque cardíaco e morreu. Eu queria saber como é que você traz para sua literatura hoje aquelas experiências com cinema marginal. Você hoje tem o estilo claro, limpo, mas você ainda recupera aquela experiência? 

Márcio Souza: Bom, quando eu morava aqui em São Paulo, estudava aqui, trabalhei muito como roteirista da Boca do Lixo que era muito família naquela época. Boca do Lixo produzia filmes de cangaceiros, comédias caipiras. A censura era muito rigorosa, não tinha essa liberação dos costumes que é hoje o típico da Boca do Lixo, o que era uma pena, inclusive, porque poderíamos ter uma diversidade maior de roteiros naquela época, naquela oportunidade, não talvez de posições, mas pelo menos de temas. Agora é verdade essa história do Ferreira de Castro, aconteceu com ele. E era o romance A selva. Ferreira de Castro era o maior escritor da Amazônia e ele escreveu um dos livros mais importante da região amazônica, que é A selva, o relato clássico da cultura da borracha. A história toda se passa num seringal, tem um português que vai ser seringueiro na Amazônia e tal. É um romance muito sério, apenas de ser um português no seringal, não tem nada engraçado, é um livro seríssimo. E fui convidado para fazer o filme, fiz adaptação para o cinema e o Ferreira de Castro, inclusive, já tinha vendido várias vezes os direitos desse filme para as empresas americanas. Eles nunca tinham conseguido realizar, porque ele era muito rigoroso. Até que ele vendeu para um brasileiro que não ouviu o que ele dizia e fez mesmo o filme e me chamou para dirigir. E, de fato, ele assistiu ao filme, que era muito ruim, era péssimo, era uma das piores coisas que já foram feitas pelo cinema brasileiro. E ele foi assistir em uma estação em Lisboa e morreu uns três dias depois. Acho que fui eu que o matei realmente. [risos]

Deonísio da Silva: Quer dizer, você fez um parricídio... [risos] 

Márcio Souza: Limpei o campo da Amazônia em matéria de escritor importante, talvez até para mim mesmo. Agora, isso foi um aprendizado...

Rodolfo Konder [interrompendo]: Tem um telespectador que, falando em culpas, já que você se sente culpado pela morte... [risos] 

Márcio Souza: Não, não me sinto culpado não, eu...

Rodolfo Konder: O Orlando Paiva, de Tremembé, pergunta se você também se sente culpado pela derrota do Mestrinho. 

Márcio Souza: Não, eu me sinto culpado pelas vitórias dele... [risos] Mas a história foi importante, esse... Quando eu fui para a mesa de montagem e comecei a ver esse filme, primeiro para o meu retorno para a Amazônia esse filme foi importante. E, de outro lado, o ato de trabalhar como roteirista especialmente para o [Antonio Polo] Galante, para o [Alfredo] Palácios, que estão aí ainda produzindo filmes. Na época eles tinham uma empresa chamada Servicine, praticamente fui roteirista exclusivo da Servicine. E eles tinham estoques de histórias, isso me deu uma canja enorme, porque não eram exatamente filmes para o Festival de Cannes, mas para o público do interior de São Paulo, um público popular. E eles tinham fórmulas muito claras do que queriam, sabiam exatamente, pediam um tipo de roteiro. Por exemplo, eu ia fazer um filme de cangaceiro, não podia ter muito cavalo, porque a produção era pobre, podia ter no máximo dois tiroteios e tal. Então essas limitações um pouco dessacralizaram o ato de escrever para mim. E eu tinha que escrever realmente, em geral, até um roteiro por semana, porque o pagamento não era lá muito alto também e eu precisava viver. Eu era estudante e a coisa que fazia era o roteiro, então isso me deu... Sempre adorei cinema, essa arte é um dos pontos fundamentais para a compreensão do romance no século vinte. E, além disso, tive essa participação interna na feitura do filme e tal e até uma ambição de ser do cinema. Depois descobri que não era a minha realmente, deixei o cinema em paz, coisa que, aliás, muitos cineastas brasileiros já deviam ter tido essa autocrítica também... [risos] Mas essa experiência reconheço até hoje que foi importantíssima, porque não sento hoje com a gravata do autor, mas sim com a mesma sensação do roteirista, porque vou jogar uma história, vou brincar com aquela história,  com os espectadores, e hoje, no caso, com os leitores.

Jefferson Del Rios: Márcio, gostaria de que você falasse mais um pouco da sua experiência como diretor e autor teatral em Manaus e queria saber que fim levou seu grupo lá, que eu conhecia e era muito bom. 

Márcio Souza: Infelizmente o grupo terminou em 1980, justamente com a peça A resistível ascensão do Boto Tucuxi. Essa peça...

Rodolfo Konder [interrompendo]: Foi essa peça que derrotou o Mestrinho [devido à sua fama de conquistador durante a juventude, os amazonenses deram-lhe o apelido de "Boto Tucuxi", aludindo à lenda do boto que se transformava em um belo rapaz e engravidava as caboclinhas pelo interior do Amazonas]?  

Márcio Souza: Foi com essa peça que ele ganhou as eleições infelizmente. [risos] Ele não era tão resistível, não. Existia esse movimento lá em Manaus no teatro instrumental do Sesc, que era uma entidade vinculada ao Sesc, mas era independente... Eles tinham um contrato, um acordo com o Sesc, que participava com a parte dos recursos para as produções e passou, depois um certo tempo, a funcionar como fórum de debates das idéias lá. E entrei no grupo em 1973, até então minha experiência teatral ou como expectador era muito limitada. Eu tinha feito só sonoplastia para uma peça, enfim, não tinha muita ligação, tinha escrito um texto por curiosidade, influenciado por O rei da vela [considerado o texto teatral mais importante de Oswald de Andrade, publicado em 1937, representado em três atos] aqui. E mais tarde seria encenada pelo grupo essa peça, que é Tem piranha no pirarucu, foi encenada em 1978, mas o grupo era importante justamente como espaço de debate sobre a Amazônia. Isso me atraiu muito, porque era o que queria fazer. Tinha saído aqui de São Paulo, tinha voltado para a Amazônia com a intenção de encontrar um trilho que me conduzisse à região amazônica e o grupo foi perfeito, porque ali estavam reunidas algumas das inteligências da cidade de Manaus, algumas das sensibilidades da cidade. De tal forma que chegou o momento, em 1974, em que o grupo estabeleceu como projeto de trabalho trazer para a cena a Amazônia. A Amazônia não como folclore, não como regionalismo, como é visto no sul do Brasil, a partir da leitura do regionalismo feito pelos nordestinos, mas sim a Amazônia como uma perspectiva crítica da história da região, inserindo também os povos indígenas, que é o outro lado da fronteira. Então, digamos, nós tínhamos dois trilhos em que o grupo caminhava, que era trazer os povos indígenas e suas culturas para o palco e fazer uma leitura crítica da história da região. O grupo montou um espetáculo sobre o choque cultural no período colonial, entre os colonizadores portugueses e os povos indígenas. Montou um largo espetáculo sobre a modernidade da Amazônia que foi As folias do látex, um vaudeville [gênero de peça teatral em forma de pantomima, cuja trama é apresentada, geralmente, por meio de letras adaptadas de conhecidas canções populares] que fazia um resumo cômico e trágico da história contemporânea da Amazônia, começando pelo Charles Marie de la Condamine [personagem de As folias do látex que na obra foi o autor da primeira comunicação de caráter científico sobre a borracha] e terminando na crise econômica que começa na Primeira Guerra Mundial. E outros espetáculos, inclusive, montou o primeiro trabalho sobre a Zona Franca de Manaus, que era o primeiro texto realmente crítico. Ninguém até então tinha coragem de falar, de dizer que a Zona Franca era feia, todos elogiavam muito a Zona Franca. Nós montamos, era um teatro de 50 lugares e, na primeira semana, foi um sucesso extraordinário, esse espetáculo foi visto por trinta mil espectadores, foi assim o maior sucesso do grupo. Imediatamente todo mundo começou a bater na Zona Franca, gente que tinha um texto escondido na gaveta há dez anos saiu, publicou no jornal, e tal, e foi uma avalanche de crítica. A primeira vez também que se falou em Manaus sobre defesa dos povos indígenas foi depois da encenação de A paixão de Ajuricaba, a cuja montagem original você assistiu até, em Campina Grande. As primeiras lutas pela preservação da cidade de Manaus, especialmente da memória do ciclo da borracha, repercutiram na Assembléia Legislativa na Câmara a partir da encenação das Folias do látex, lá em Manaus também, e da ironia que se fazia com esse processo histórico. Acho que a experiência foi seminal para mim; é uma experiência, inclusive ,que pessoalmente lamento que tenha sido realizada numa época muito hostil e também numa região muito complicada, sem tradição para esse tipo de cultura crítica. De tal forma que o grupo começou num processo de colisão com a sociedade local. Especialmente foi a partir de As folias do látex, que eles perceberam que não era exatamente um grupo bem comportado. Com a montagem de Tem piranha no pirarucu, nós fizemos a prova dos nove para eles de que realmente nós não estávamos brincando. E, quando nós anunciamos que íamos montar A resistível ascensão do Boto Tucuxi, eles pressionaram, nós perdemos o teatro, essa peça foi encenada no Teatro Amazonas. E a imprensa de Manaus sequer aceitava anúncio pago, porque tinha empresas nacionais que gostariam de nos ajudar, já tinham nos ajudado anteriormente, queriam pagar os anúncios e eles recusavam. Nós fizemos esse espetáculo com os atores saindo nas ruas, fazendo propaganda com filipeta. Deu bastante público, o espetáculo ainda fez duas semanas com a casa muito boa no Teatro Amazonas e o grupo se despediu do teatro em 1980.

Deonísio da Silva: Márcio, nessa cadeira onde você está sentado, esteve, pouco tempo atrás, num outro Roda Viva, o ministro Armando Falcão. [risos] Não sei se você está sentindo alguma coisa. O Armando Falcão recolheu durante os quatro anos em que esteve à frente do Ministério da Justiça, no governo Geisel, dito governo de distensão lenta, segura e gradual - quem jogou futebol sabe o quanto dói uma distensão... Ele recolheu 508 livros. Só para reiterar, não é que a imprensa... Isso sem nenhum ressentimento, não sou daqueles que têm rancor, porque a imprensa não cuidou de um livro de tal autor ou do seu mesmo, não é nesse sentido, é no sentido de lamentar. Se, por exemplo, você depender da revista Veja, que é uma das maiores revistas semanais de informação do Brasil dos últimos dez anos, para fazer um levantamento da literatura brasileira, você vai chegar à conclusão de que a literatura brasileira foi estéril, não houve nada, porque ela não registrou o que houve. Mas você pega, por exemplo, o livro do ano da Enciclopédia Britânica do ano passado e você vê lá uma chusma de autores que não foram registrados aqui e que o inglês viu. Talvez eles escreveram para inglês ler, não é? Mas eles viram. Então queria dizer que... é uma forma de pergunta no meio de uma afirmação: acho que no Brasil, nós não temos, não para dizer que a imprensa seja culpada dessas coisas, não é nesse sentido. É no sentido de dizer que nem a imprensa nem a universidade chegaram ainda à literatura brasileira, talvez no próximo século cheguem. E está acontecendo aí também uma verdadeira revolução, uma renascença cultural com a literatura infanto-juvenil. Espero que, daqui a vinte anos, nós tenhamos umas edições iniciais de cem mil exemplares, e não os modestos três mil que hoje se fazem. Mas a pergunta, então, para ficar dentro... Só essa retificação, me julguei no dever de fazer, porque o Rinaldo estava atribuindo a você uma afirmação que não fizera. É a seguinte...

Rinaldo Gama: Ele concordou com a afirmação, tanto é que... 

Rodolfo Konder [interrompendo]: Só que nosso tempo está se esgotando, se não vai fazer a pergunta, então, vou encerrar.

Deonísio da Silva: Estou vendo, nos tempos que correm, nesse final de século aí, a presença forte do herege no Brasil. Acho, por exemplo, o Armando Falcão muito mais justo com os autores que recolheu do que a Veja ao não registrar o aparecimento deles. Porque, de uma forma ou de outra, tem o outro lado de que os livros passaram a ser mais lidos por causa da censura. Há uma presença do herege, tem o Chico Mendes, tem o Leonardo Boff [ver entrevista do franciscano praticante da Teologia da Libertação no Roda Viva], tem uma vinculação – queria que você deslindasse isso aí –... há uma vinculação muito séria da Igreja Católica com esses movimentos, não é? O Boff foi proibido durante dois anos, o Chico... Qual é a vinculação da Igreja, que é o único partido político com diretório em todos os municípios, porque tem capelas? Qual é a vinculação do Chico com a Igreja Católica e com a questão da Amazônia? 

Rodolfo Konder: Márcio, você tem um minuto para responder.

Márcio Souza: Bom, como dizia o Oswald de Andrade, “a internacional das catacumbas” que é a Igreja Católica tem muito a ver com Chico Mendes e com várias lutas realmente. Sem essa Igreja da Teologia da Libertação [movimento teológico surgido no interior da Igreja Católica latino-americana nas décadas de 1970 e 1980. Propõe vivenciar a fé por meio da prática social junto aos mais pobres, transformando a sociedade para que ela aja segundo os princípios cristãos de partilha, fraternidade e desapego às estruturas de poder], no Acre, não existiria nenhum movimento social, foram eles que formaram. A primeira vez em que fui conduzido na rua de Rio Branco para ver ex-seringueiros morrendo de fome em 1973, foi pelo dom Moacir Grechi, bispo de Rio Branco, Acre [ver entrevista com dom Moacir no Roda Viva]. Então ele já tinha conhecimento, ele já estava lá nessa época. 

Rodolfo Konder: Muito bem. Márcio de Souza, nós agradecemos muito a sua presença aqui no Roda Viva. Agradecemos a presença dos convidados que nos ajudaram a fazer essa entrevista; agradecemos a presença dos convidados da produção, dos telespectadores, inclusive daqueles que nos mandaram as suas perguntas. Obrigado ao Caruso, que registrou os melhores momentos – inclusive, você vai receber, certamente, uma caricatura bem à altura dele.

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