Miguel Sanches Neto
Entrevista comandada por Isabel Furini, publicada no site www.bonde.com.br em 26/05/2010.
Chá das Cinco com o Vampiro está agitando Curitiba. Nesses últimos meses ouvi aquele burburinho sobre o autor dessa obra, o escritor, professor e crítico literário Miguel Sanches Neto. O pessoal emite conceitos tão diferentes sobre ele, do tipo “esse cara é um grande escritor”, “ele é um oportunista”, “ele é honesto demais”, que decidi entrevistá-lo e criar minha própria opinião.
Queria conhecer o trabalho de Sanches Neto e comecei com Venho de um País Obscuro e Pisador de Horizontes. Fiquei apaixonada por dois poemas desse livro: Difícil Aceitar (pág.143) e Poema para a Menina sem asas (Pág. 45). Esses versos expressam sua revolta contra os clichês e terminam com alto grau de lirismo e sensibilidade. Imediatamente procurei Chove Sobre Minha Infância. O livro é realmente envolvente. Quando o menino pobre insiste em estudar e é enviado para o colégio, lemos: “Os pais estão longe, não podemos contar com os professores e com os empregados. Temos que sobreviver no meio de um jogo de poder em que fala mais alto quem pode mais...” (pág.137). Talvez Miguel Sanches Neto tenha vislumbrado o mesmo jogo de poder nos meios literários. Quando enviei e-mail minha primeira surpresa foi a receptividade. Ele aceitou a entrevista. Em segundo lugar, fiquei admirada com sua honestidade. Ele não fugiu das perguntas. Nem respondeu com frases retóricas. Miguel Sanches Neto foi direto, objetivo, e suas respostas revelam um escritor que analisa seu próprio processo criativo friamente, sem autoelogios e sem sentimentalismo. Essa honestidade podemos também perceber nos livros Chove sobre minha infância e Venho de um país obscuro, nesse último fala: Minha mãe comprava um único pão, repartindo-o entre quatro bocas”. (Pág. 13). Minha vó lavava roupas para fora e sempre trazia alguma sobra”. (Pág.17) “O padrasto me ensinou a ser correto, a não mentir, não furtar e todo o resto, mas exigindo ser obedecido em tudo, reduzindo-nos a passivos súditos.” (pág. 20). Mas, no momento, o livro de Sanches Neto que desperta mais interesse é Chá das Cinco com o Vampiro, por isso começamos a entrevista com uma pergunta sobre esse livro.
- Como foi gestado seu novo livro Chá das Cinco com o Vampiro?
Este romance nasceu de um projeto de criar um universo paralelo ao universo literário curitibano dos anos 90. Eu tive uma percepção de que havia muitos personagens possíveis naquele meio. Era um momento - começo dos anos 2000, em que tinha me desiludido com a vida literária, então havia um sentimento forte de frustração nos meus projetos de viver num ambiente literário. Foi neste contexto que nasceu o livro, onde uso e abuso da ficção para fazer um painel não do meio literário de Curitiba, mas do meio literário a partir de Curitiba.
- Você foi criando os personagens e escolhendo como modelos escritores paranaenses ou, ao contrário, os personagens foram aparecendo na sua mente, criando-se sozinhos, como Minerva na cabeça de Zeus?
Eu queria contar uma trajetória e contar um ambiente, então foi esta espinha dorsal - a ida de um jovem problemático para a capital, a construção de uma outra possibilidade de ser, a solidão daquele que sai de seu território, a ilusão de uma vida no grande monde, e rompimento total com tudo a partir da primeira grande experiência existencial - a morte de uma pessoa amada. Em torno disso nasceram personagens que ora estão mais próximos do mundo factual, ora mais distantes - mas que são sempre pessoas ficcionais.
- Você pensou e escolheu o enredo, ou "foi escolhido pelo enredo", a história foi tomando corpo sozinha, sem sua vontade.
Num primeiro momento, havia só o impulso para escrever, e fiz algumas tentativas soltas. Quando achei o caminho, estruturei muito rigorosamente o enredo - fiz uma planta baixa. Ao alternar tempos, criei a possibilidade de estabelecer confrontos. Em Pebiru, o personagem vive uma coisa que só terá resposta no outro tempo, já em Curitiba - e fui montando estes paralelismos, muitas vezes usando a ironia.
- Você já escreveu livros de gêneros diferentes como Impurezas Amorosas (crônicas), Venho de um país obscuro (Poesias), Contos para ler em viagem, Contos para ler no bar, o romance Chove sobre minha infância, e outros. Qual destes gêneros você prefere? E qual de seus livros lhe deu maior satisfação escrever?
Eu me encontro mais no romance, pois o romance apresenta uma oportunidade de dizer mais, de ampliar as discussões, e exige mais do autor também, pois não é possível escrever uma história com proporções tão dilatadas com um envolvimento pequeno, tanto de tempo quanto de energia psicológica. O romance é, para mim, como eu já disse em alguns lugares, um resumo de todos os gêneros literários. Você pode se valer de outras formas textuais para compor o romance, e esta liberdade me agrada muito. O livro que me deu maior alegria na escrita foi Chove sobre minha infância (2000), meu livro de estréia nacional, onde eu passo a limpo, ficcionalmente, a história de minha família. Foi um livro produzido em apenas um mês de dedicação exclusiva.
- Podemos entender que seus enredos e personagens partem da realidade, mas que nunca permanecem lá. A realidade é só o ponto de partida. Isso pode confundir um pouco os leitores - pensam que seu livro é "quase histórico", quando na realidade estão lendo pura ficção. Sente-se incomodado por essa confusão de alguns leitores e críticos?
Ficção é por natureza um terreno movediço, você não tem muitas certezas neste espaço. Eu trabalho numa espécie de radicalização do conceito de não-ficção. Tudo parece muito real, e há uma dose de realismo muito grande, mas eu não facilito para o leitor, eu tento enganá-lo, ou criar uma confusão. Que alguns leitores caiam neste equívoco eu acho normal, o que me estranha é que críticos e escritores que escrevem sobre livros valorizem apenas o factual em meus livros, um falso factual. A literatura não é uma área para leitores ingênuos, ela exige uma capacidade imaginativa muito grande. O problema é que a humanidade como um todo está perdendo a sua capacidade de imaginar, porque os meios de comunicação valorizam excessivamente a realidade, então o leitor quer ler tudo como realidade. Isso faz com que a literatura assuma mais do que nunca o seu caráter fantasioso.
- Que conselho daria aos novos escritores?
Que nunca deixem de ler muita literatura, pois não há outro caminho para a construção de um estilo, de uma voz, de uma visão do mundo, do que lendo a literatura que nos antecedeu. Escrever deve ser sempre um subproduto da leitura, uma forma de unir nosso nome a uma tradição, nem que seja negando-a.
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