Norberto Bobbio
Entrevista conduzida por Luiz Carlos Bresser-Pereira, publicada na Folha de São Paulo (Caderno Mais!) de 05/12/1994.
Quando, ainda nos anos 70, ouvi pela primeira vez falar de Norberto Bobbio, aprendi que o grande filósofo, político italiano era um socialista democrático. Depois. lendo seus trabalhos, principalmente seu maravilhoso ensaio “O Modelo Jusnaturalista”, verifiquei que sua visão da política era liberal, marcada pelos grandes filósofos iluministas.
Os séculos 19 e 20 foram caracterizados pelo conflito histórico entre o liberalismo, que surge como uma ideologia burguesa no século anterior, e o socialismo, que afirma os direitos dos trabalhadores. No século 20 o socialismo é distorcido pelo estatismo burocrático. Não obstante, Bobbio, que se autodenomina um mediador, sempre norteou seu pensamento para a busca de uma síntese – ou de um compromisso, como ele prefere – entre as duas primeiras visões.
Este compromisso é o liberal socialismo ou o social-liberalismo, que, conforme ele nos dirá nesta entrevista, afinal não se distingue essencialmente da social-democracia, e se caracteriza pelo compromisso entre o liberalismo político e o socialismo econômico.
Para Bobbio, o socialismo democrático do século 19 não era a antítese do liberalismo mas um desenvolvimento deste. O liberalismo garantira a propriedade e os direitos individuais à burguesia, o socialismo passava a garantir os direitos sociais e o sufrágio universal aos trabalhadores.
Este é o tema central da entrevista que realizei com Norberto Bobbio em outubro último, em seu apartamento em Turim. O filósofo, com seus 84 anos, está lúcido e bem de saúde. Como venho lendo muito Bobbio nos últimos anos, decidi proveitar a oportunidade de uma viagem mais longa à Europa para ir a Turim conhecer o notável pensador, e entrevistá-lo. Para isto vali-me de Celso Lafer, o introdutor de Bobbio no Brasil, e de seu amigo Michelungelo Bovero, discípulo de Bobbio que o sucedeu em sua cátedra de filosofia política na Faculdade de Direito da Universidade de Turim.
Nesta entrevista, procurei, inicialmente, conhecer as influências básicas que Bobbio sofreu na sua juventude, nos anos 20 e 30. Luigi Einaudi e Gaetano Salvemini são os filósofos liberais; Gramsci. o socialista; e Piero Gobetti e Carlo Rosselli, aqueles que já nos anos 20 estavam tentando algum tipo de síntese entre as duas visões da política e do Estado. Na filosofia do direito, Kelsen foi sua maior influência.
Bobbio aproveitou a oportunidade para também falar sobre sua atividade política, particularmente sua luta contra o fascismo e sua participação na Resistência, embora, como salientou, nunca tenha sido um político, mas um professor. O fato de ter-se tornado senador vitalício não mudou esta condição básica de sua vida.
O tema seguinte da entrevista foi a democracia moderna. O autor de “O Futuro da Democracia” reafirmou sua crença na democracia, não como uma forma ideal, mas como uma forma concreta de governo que se tornou vitoriosa neste século, ao mesmo tempo que um compromisso se estabelecia entre o liberalismo e o socialismo. As democracias modernas são formas de governos ‘‘mistas”. O primeiro grande governo misto, em que monarquia, aristocracia e democracia estavam presentes, foi o de Roma.
As democracias atuais são geralmente parlamentaristas. Nelas há um presidente ou um rei representando a monarquia, um senado representando as elites ou a aristocracia, e uma câmara dos deputados representando o povo.
Falamos em seguida sobre o nacional – desenvolvimentismo latino-americano, que, como o estatismo comunista e o “welfare state” social-democrata, vem sofrendo um forte ataque por parte do neoliberalismo. Sugeri que a social-democracia, com uma maior ênfase no mercado e na disciplina fiscal, seria uma síntese possível. Bobbio concordou.
Para Bobbio o estatismo, que acabou dominando o pensamento dos socialistas, foi um desvio, como o neoliberalismo conservador é uma distorção do liberalismo. A social-democracia, ao contrário, é a democracia realista. Mas afirmou sua preocupação com o populismo, que na Itália é representado pela Liga Lombarda, partido conservador do Norte.
No final da entrevista afirmei que suas idéias pressupunham uma visão otimista da história, dada a sua crença na democracia e na possibilidade da solução dos conflitos internos e internacionais sem o uso da violência. Bobbio reafirmou esta utopia, mas manifestou reservas quanto ao otimismo, dada a violência que ainda prevalece no mundo, uma violência que ele testemunhou durante toda a sua vida.
Luiz Carlos Bresser Pereira
-Professor, na sua juventude, o positivismo estava morto, o realismo conservador de Crocce era dominante, o liberalismo democrático de Luigi Einaudi e Gaetano Salvemini uma ilha, o liberalismo social de Gobetti era uma promessa e o marxismo de Gramsci uma revisão voluntarista. O senhor pode dizer quem foram, naquele momento, os seus mestres na Itália, os intelectuais que mais o influenciaram na sua juventude?
Norberto Bobbio
- Não é fácil. Não é fácil porque o senhor sabe que quando se é jovem, se está sujeito a diferentes influências, que muitas vezes são contraditórias. Eu, certamente, fui influenciado pelo ambiente de Turim, onde havia uma cultura de orientação liberal. Einaudi era professor na Universidade de Turim, era economista, como o senhor sabe, e mesmo durante a ditadura continuou a ensinar, porque o fascismo, como dizemos, foi uma ditadura mais branda. A universidade não era ainda fascistizada. O processo de fascistização que tomou a Itália não tomou a universidade. Einaudi era um representante do liberalismo. Liberalismo político e liberalismo econômico, que na Itália chamamos liberismo político e liberismo econômico. Eram visões liberais em confronto com o fascismo. Eu era coetâneo e amigo de Giulio Einaudi, filho de Einaudi, que em 1933 fundou uma grande editora, que existe até hoje, uma das maiores editoras italianas do ponto de vista cultural. Eu participei da fundação dessa editora, que tinha o propósito de publicar livros que não fossem fascistas. Foi uma tentativa de desenvolver uma atividade de caráter cultural contra o fascismo. Tanto é verdade que fomos todos presos, quando publicamos a revista, que se chamava “Cultura”, em 15 de maio de 35. Gostaria de acrescentar que, do ponto de vista político, o ambiente de Turim nos anos imediatamente precedentes ao fim da Primeira Guerra e entre o fim da Guerra e o advento do fascismo, foi caracterizado pela presença de dois intelectuais políticos que foram, na época, e são considerados ainda agora, os mais importantes na Itália. O primeiro foi Antonio Gramsci, o iniciador do Partido Comunista. Depois da divisão, em 1921, ocorrida no interior do Partido Socialista, os comunistas se retiraram e constituíram o Partido Comunista. O outro personagem importante foi Piero Gobetti, que concebeu a mais importante revolução, a revolução liberal. Era um liberalismo de aspectos revolucionários em confronto com o advento da ditadura fascista. Teve uma enorme importância na cultura turinesa e, portanto, na formação dos jovens estudantes de alguns anos depois. Ambos pertenciam a duas correntes diferentes. Um era comunista, o outro era um liberal revolucionário – porém eram muito amigos. Gobetti colaborou como crítico no jornal comunista de Gramsci, que se chamava “A Ordem Nova”. Esta era a atmosfera cultural pela qual eu e muitos outros fomos influenciados.
Bresser-
-E os intelectuais fora da Itália? Hobbes é a sua principal influência?
Bobbio
- Não. Devo dizer que então eu não tinha interesses políticos. Tinha interesses nos estudos e não me preocupava com política. Eu me dediquei, naqueles anos, ao estudo da teoria lógica do direito...
Bresser
- Kelsen?
Bobbio
- Numa parte, a da teoria do direito, fui influenciado por Kelsen. Mas não há, nos anos do fascismo, escritos políticos meus. Eu comecei a escrever sobre política logo depois da liberação e do advento da democracia. Eu participei da Resistência do fim de 43 até 45. Comecei a escrever sobre política num jornal cotidiano de Turim, que foi fundado logo depois, em meados de 45, e que era a expressão do movimento político ao qual eu havia aderido durante a Resistência e que depois se transformou no Partido de Ação, que era a expressão da tradição republicana, aquela de Mazzini, homem político do século 19, muito conhecido em todo o mundo, que Constituiu grupos de revolta contra o despotismo.
O Partido de Ação funcionou clandestinamente durante o fascismo, em 42. Depois nós participamos do então Comitê de Liberação Nacional, constituído por cinco partidos – o Partido Comunista, o Partido Socialista, o Partido de Ação, a Democracia Cristã e o Partido Liberal. Esse era o quadro dos movimentos políticos que depois constituíram a ossatura o sistema político italiano por muitos anos.
Bresser
-Mas, depois, o Partido de Ação tornou-se um partido socialista?
Bobbio
- Não, o Partido de Ação, depois de constituída a República, em 2 de junho de 46, se dissolveu. Disse tudo isto para chegar aos primeiros artigos que escrevi. Foram para o jornal que se chamava “Justiça e Liberdade”, que nasceu em Paris, pelas mãos os exilados do fascismo. O seu maior representante foi Carlo Rosselli, que escreveu um livreto em francês muito conhecido, intitulado “Socialismo Liberal”. A inspiração ideológica do Partido de Ação era o socialismo liberal, era Rosselli. O movimento de Rosselli se chamava Justiça e Liberdade. Gostaria de acrescentar que eu não tive jamais uma grande vocação política.
Bresser
-O senhor sempre procurou manter uma independência forte em relação aos partidos políticos?
Bobbio
- Claro. Eu repito, nunca tive uma grande vocação política, nunca quis fazer política, apesar das pressões que sofri. Se o senhor olha a minha bibliografia, são dez livros, nove dos quais sobre direito...
Bresser
-E filosofia política.
Bobbio
- Sim. E um de política. Eu comecei a escrever em jornal, a ter influência direta na formação da opinião pública, muito tarde, com 64 anos. Sempre me dediquei ao ensino. Sempre me considerei, acima de tudo, um professor. De fato, quando o presidente, em 1984, me nomeou senador vitalício, o primeiro a se surpreender fui eu. E quando alguém me perguntava se devia me chamar senador ou professor, eu respondia professor.
Bresser
-Como professor, quando li o ensaio sobre jusnaturalismo (conjunto de teorias filosóficas e políticas desenvolvidas nos séculos 17 e 18 para explicar o Estado como fruto de um contrato social, que colocavam como fundamento do direito a razão natural do homem), percebi que o senhor opõe o pensamento de Aristóteles, Hegel e Marx – pensamentos históricos – ao pensamento dos contratualistas, que seria lógico-dedutivo. Me parece que a sua formação combina as duas correntes muito claramente.
Bobbio
- Sim. Eu me considero sincretista, no sentido de que, no fundo, eu nunca fiquei preso a uma corrente determinada. Sempre procurei ir além das tendências contrapostas. Eu me defini como um intelectual mediador, aquele que procura encontrar soluções, ao invés de dividir. Evitar opostos extremistas, como na Itália, o fascismo e o comunismo.
Bresser
- O debate político do século 20 se obscureceu porque o liberalismo tornou-se a ideologia da burguesia, o socialismo que deveria ser a ideologia dos trabalhadores foi confundido com o estatismo burocrático, e o eficientismo, além do estatismo, é a ideologia dos burocratas. O senhor pode comentar essa minha afirmação, que está muito ligada a coisas que eu escrevi?
Bobbio
- Estou de acordo. O socialismo foi desde o início estatista, no sentido de dar primazia ao setor público. A influência do comunismo na União Soviética determinou em pane, o pensamento socialista democrático. Uma das características do socialismo democrático em todos os lugares, e certamente na Itália, era a nacionalização, um maior alargamento da economia pública e do setor público. Quando os partidos políticos socialistas franceses tiveram o poder houve nacionalização. Os partidos socialistas, desde o início, foram estatistas. Eu me lembro que Piero Gobetti, desde o início, era contrário aos socialistas italianos favoráveis à estatização, que teria levado inevitavelmente à burocratização do Estado. Eu acho que não há somente crise no comunismo, mas também, em grande parte, no socialismo democrático.
Bresser
- Eu creio que o socialismo não necessitava ser tão estatista. Houve uma espécie de corrupção burocrática do socialismo, que foi confundido com a idéia de estatização e de poder burocrático, em vez de poder verdadeiramente democrático. Seu discípulo, Michelangelo Bovero, escreveu recentemente um artigo sobre o liberal socialismo, no qual diz que é possível haver um liberalismo socialista se o liberalismo e o socialismo forem definidos de uma forma limitada, que torne possível compatibilizar as duas idéias. Eu sei que esta é, talvez, a sua idéia fundamenta – a possibilidade de um liberalismo social – mas o senhor também diz que não é possível uma síntese. O senhor pode comentar isso?
Bobbio
- Para mim é possível um compromisso e não uma síntese. O fascismo não era nem liberal nem socialista. Não era nem liberal em política nem socialista em economia porque protegia a classe burguesa. Eu creio que, se se quer falar de social-liberalismo deve-se falar de um compromisso de liberalismo político e de socialismo econômico e, portanto, da correção dos defeitos do livre mercado. Deve-se saber quanto de liberalismo e quanto de socialismo, na prática, pode-se pactuar em uma determinada situação. A dificuldade está, justamente, em determinar a dosagem.
Bresser
- Professor, no Brasil, na América Latina, toda a estratégia, o modelo de desenvolvimento, foi o modelo nacionall-desenvolvimentista, no qual o Estado teve uma importância muito grande. Nestes últimos dez anos, uma onda conservadora, neoliberal, vinda especialmente dos Estados Unidos, afirmava ser a única alternativa para o velho nacional-desenvolvimento que já está exaurido. Eu, pessoalmente, comecei a falar e escrever sobre a possibilidade de uma espécie de síntese. Esta síntese seria uma alternativa social-democrática ou poderia ser uma alternativa liberal-socialista, em que o liberalismo seria não somente político, mas também econômico, no sentido de que se deve usar o mercado; mas a idéia de justiça e a idéia de Estado forte, capaz de corrigir as falhas do mercado, também seriam importantes.
Bobbio
- Eu estou de acordo. Acho, porém, que é muito mais fácil falar do que aplicar de fato. Sobretudo diante deste triunfo do mercado capitalista, também aqui na Itália sem limites e sem preocupações com as consequências.
Bresser
-Professor, qual a diferença entre social-liberalismo e social-democracia?
Bobbio
- Eu creio que a diferença não existe. Se o senhor vê o socialismo liberal de Rosselli, ele dizia que o socialismo era o fim e o liberalismo o meio. Mas se o senhor interpretar desse modo, não há muita diferença daquele que era o ideal da social democracia. A minha impressão é que o socialismo liberal de Rosselli, se o atualizarmos com outro nome, não é muito diferente do socialismo democrático. No socialismo liberal, a palavra liberal tem um significado mais histórico. No século passado nós interpretamos o socialismo mais como um desenvolvimento do liberalismo e não como uma antítese do liberalismo. O socialismo não era tanto um antítese do liberalismo, era um desenvolvimento, no sentido de que alargava. aqueles que são os direitos fundamentais já proclamados pela Revolução Francesa. Era um prosseguimento dos movimentos históricos inevitáveis e necessários. Não era um movimento que se opunha às conquistas da Revolução Francesa.
Eu me lembro que um professor de Rosselli, um professor socialista muito conhecido na Itália, escreveu no início do século um artigo importante, “Das Declarações dos Direitos ao Manifesto Comunista”, que estendia aos trabalhadores os direitos fundamentais que foram definidos na declaração francesa. Quando os direitos do cidadão foram reivindicados pela burguesia, estes eram, sobretudo, direitos de liberdade em relação ao despotismo do Estado. Eram, sobretudo, direitos de liberdade e também direitos políticos de participação. Quando os trabalhadores começaram a ser ouvidos, eles reivindicavam, naturalmente, outros direitos. Para os burgueses era importantíssimo o direito de propriedade, porque procuravamdefender a liberdade de propriedade face às pressões do Estado, queriam liberdade em relação ao Estado opressor. Quando surgiram na ribalta política os trabalhadores, o interesse não era tanto pelo direito à propriedade, mas pelo direito ao trabalho. Além dos direitos de liberdade, também foram exigidos os direitos sociais, que dependem, de qualquer modo, da intervenção do Estado. Nesse sentido, o liberal-socialismo era um desenvolvimento histórico dos direitos de liberdade aos direitos sociais. Os direitos de liberdade eram aqueles próprios da classe burguesa. E os direitos sociais, próprios dos trabalhadores. Mesmo o sufrágio universal, se o senhor pensar bem, poderia ser reivindicado somente quando surgiram em cena os trabalhadores. Os burgueses não precisavam do sufrágio universal. Os trabalhadores requisitaram o sufrágio tanto para aqueles que não tinham propriedade quanto para aqueles que não tinham cultura. Isto é visto sempre como uma espécie de processo inevitável e necessário na passagem, no alargamento da base social da democracia.
Bresser
- Professor, o senhor é um importante teórico da democracia. No seu livro sobre formas de governo, o senhor observa que para os filósofos gregos a monarquia e não a democracia era a melhor forma de governo. O que mudou para que as pessoas, hoje, pensem que a democracia seja a melhor forma de governo?
Bobbio
- A história é muito complicada. A democracia foi considerada não a melhor, mas a pior forma de governo, porque sempre desafiou a capacidade política do povo, da plebe...
Bresser
- A impressão que tenho é de que a democracia, para ser possível, necessita de uma certa cultura popular. E necessário que o capitalismo seja, mais ou menos, estabilizado e que uma certa cultura política permita um governo democrático.
Bobbio
- Sim. Mas é um assunto muito complexo. Eu falei no meu livro sobre a concepção inicial de democracia grega, aquilo que eles chamavam não tanto democracia mas isonomia. Penso que o maior exemplo histórico foi a Atenas de Péricles. Se alguém olha o epitáfio de Péricles, nele estão todos os princípios fundamentais da democracia. Esta alternativa entre governo de um e governo de muitos e, em Aristóteles, entre governo dos ricos e governo dos pobres, esta alternância entre a superioridade da monarquia e a superioridade da democracia é uma alternância que transcorre ao longo de toda a história...
Bresser
- A monarquia para os gregos era a melhor forma de governo e a pior era a tirania. E, assim, o risco da monarquia era muito grande. E o problema fundamental – eu aprendi com o senhor, no livro “Teoria das Formas de Governo” – da democracia era sua instabilidade. As instituições desenvolveram-se de tal maneira no mundo moderno que garantiram para a democracia a estabilidade que era o seu problema. Creio que era esse o motivo pelo qual a democracia é considerada hoje a melhor forma de governo por todos ou por quase todos.
Bobbio
- Mas não se deve confiar muito nessa estabilidade. Na Itália, nós estamos vivendo uma experiência traumática da nossa democracia. Atualmente a nossa democracia não está em condições de resolver nossos problemas econômicos e políticos. E, infelizmente, a alternativa para uma democracia frágil é o fascismo, no sentido de um Estado autoritário. Quando a liberdade perde os limites, o próprio povo invoca o tirano. Quando vejo na televisão os discursos desse chefe da Liga [força política conservadora, com base no Norte rico italiano, contra “os impostos de Roma” e com inclinações separatistas], Umberto Bossi fico preocupado. São discursos de uma vulgaridade, de uma estupidez política e cultural inacreditáveis. E vejo a plebe que o aplaude, que agita bandeiras e lenços, de modo fanático. Vejo que a democracia se transforma em populocracia, no governo da plebe.
Bresser
- No seu livro sobre formas de governo, o senhor dá muita importância à idéia grega de governo misto (misto de monarquia, aristocracia e democracia). No Brasil, quando li o seu livro, discutia-se o problema do presidencialismo e do parlamentarismo. E, para mim, parecia que o parlamentarismo, como instituição, seria mais adequado a um governo misto moderno que o presidencialismo. O senhor pode comentar isso?
Bobbio
- O sistema parlamentar foi interpretado desde o início como um governo misto. Se nós pegarmos a origem do governo parlamentar na Europa veremos que ele nasceu da monarquia constitucional. E as monarquias constitucionais foram interpretadas como governos mistos: ficam os princípios monárquicos da monarquia e o parlamento representa os movimento populares. Os parlamentos, frequentemente, são constituídos de duas câmaras; a dos deputados representa o poder democrático, e o senado representa o movimento aristocrático. A força dos governos mistos é a sua duração. Um regime político que durou séculos, além do romano e da monarquia inglesa foi o das repúblicas de Veneza e Gênova. Eram repúblicas monárquicas, porque o “Doge” era eleito e vitalício. Quando a república precisa do coletivo, chama o consenso, o consenso deve ser dado. Quando um Estado tem um chefe eleito vitalício, cujo poder não pode ser controlado e reconfirmado periodicamente, é uma república monárquica.
Bresser
- Para o senhor, uma das promessas não mantidas da democracia é a derrota dos poderes oligárquicos. Ao contrário, temos uma democracia de elite. É possível uma democracia oligárquica que não seja populista? Porque se fala muito de populismo na América Latina.
Bobbio
- Eu sei, eu sei. Porém, a palavra populismo possui muitos significados. Hoje existe uma tal admiração pela economia de mercado, que qualquer um que diga “devemos também pensar nas classes inferiores” é chamado, de modo depreciativo, de populista. Por que o senhor me coloca essa pergunta?
Bresser - Eu pergunto porque a minha impressão é que é possível distinguir uma democracia popular de uma populista. Na América Latina especialmente, mas creio que em todo o mundo, com esta onda conservadora, neoliberal, qualquer coisa de caráter mais social tornou-se “populista”, o que é um perigo. Mas me parece que, com a vitória de Clinton nos EUA, houve uma mudança. E é possível pensar que este avanço do liberalismo radical começa a perder importância. E creio que neste momento é importante distinguir o populismo do popular. Há coisas populistas que são negativas mas há coisas populares que são positivas.
Bobbio
- O populismo confunde um pouco a democracia com a demagogia. O populismo é um popularismo demagógico. O populismo necessita de um chefe carismático, um líder. Um partido popular tem lideres mas não tem um líder, um líder que seja considerado pelos seus fiéis como um chefe indiscutível. Por exemplo, a Democracia Cristã, na Itália, foi considerada um partido popular, enquanto o partido da Liga é de caráter populista, porque possui personagens que são aclamados nos períodos do grande crise. De Bossi não se sabe nada de sua vida; não estudou e agora é aclamado pela multidão como se fosse um líder carismático. Isto é populismo.
Bresser
- Os economistas usaram a expressão populismo, nos últimos anos, para designar políticas econômicas que não levam em consideração o ajuste fiscal e que atendem a todas as reivindicações. Isto seria populismo?
Bobbio
- É uma forma de populismo. Um dos problemas da democracia na Itália depende deste tipo de populismo, isto é, ceder à todas as reivindicações sem levar em conta as incompatibilidades.
Bresser
- Para Montesquieu, a democracia é o reino da virtude e o despotismo o reino do medo. Para o senhor, a democracia não é somente uma forma de procedimento político, mas um sistema de valores no qual a tolerância é fundamental. Isto quer dizer que o senhor é um filósofo essencialmente otimista. Estou certo?
Bobbio
- No que diz respeito aos direitos, sim. O grande valor da democracia, para mim, é a não-violência. Nas democracias o objetivo é resolver os conflitos sem violência, através ,de discussões. Eu digo sempre: melhor uma democracia desarranjada, como esta da Itália, que um regime autoritário. A minha utopia é uma democracia internacional que consiga resolver os conflitos entre os Estados sem recorrer à violência.
Bresser
- Para isso é necessária uma concepção otimista da história.
Bobbio
- Sim. Porém eu estou dividido entre esta esperança utópica e a comoção contínua e muito amarga, realista e pessimista, provocada pelo que acontece diante dos meus olhos e por tudo que eu já vi durante minha vida. A história humana foi determinada pela potência. Eu tenho um pouco desta visão da história, uma visão em que há uma meta, mas, quando reflito sobre minha experiência pessoal, fico em dúvida se será possível alcançá-la.
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