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Grandes Entrevistas

 

Pirandello

 

Entrevista conduzida por  Sergio Buarque de Hollanda e publicada originalmente n'O Jornal (RJ), 11/12/1927.  (Extraído de: O Estado de São Paulo, 31/12/1988)

 

"Eu não sou um autor de farsas, sou um autor de tragédias", diz o ilustre escritor ao representante d' O Jornal. A personalidade de (Luigi) Pirandello, o que nos sugere a sua obra admirável, tem sido, para os homens sensíveis e para os curiosos, um estímulo e quase um convite às opiniões mais desencontradas. Isso em parte se explica se nos compenetrarmos de que o autor do Sei personaggi é um desses indivíduos em constante fuga, que resistem energicamente a qualquer tentativa de definição.

 

Se sabemos administrar os homens de seu tipo, o demônio da inteligência nos trai singularmente desde que procuramos enquadrar a sua obra dentro de categorias invariáveis. A grande maioria dos críticos que estudou a mensagem pirandelliana divorciou indevidamente o artista do filósofo, o que significa não somente uma incompreensão lamentável do que representa essencialmente essa  obra extraordinária, mas, o que é bem mais grave, uma ignorância desoladora do sentido profundo de toda obra de arte que mereça esse nome.

 

Só o próprio Pirandello nos permitiria talvez atingir um ponto de vista legítimo através do formidável equívoco que certos críticos estabeleceram em tomo de sua obra. Só ele nos permitiria situar sem muito artifício a atitude que exprimem os seus dramas, como os seus romances e as suas novelas. A presença do grande escritor italiano nesta capital seria um ensejo único e inapreciável de interrogá-lo sobre o assunto. E Pirandello não se recusou a satisfazer nossa justa curiosidade. À nossa primeira pergunta explicou­nos ele categoricamente.

 

Não sou um filósofo nem pretendo ser. Se minha obra exprime, como querem, uma concepção filosófica, essa concepção independe inteiramente de qualquer intenção consciente. Também não sei, nem me interessa saber qual seja essa intenção. Sustento que uma obra de arte não pode ser intencional e limito-me a interpretar a vida como ela me aparece e o mais diretamente possível. E não se vive com os olhos abertos, vive-se cegamente. A minha convicção de que a personalidade é múltipla não é uma conclusão - é uma constatação.


- A idéia de multiplicidade de personalidade não acarreta também uma negação da responsabilidade e, portanto, de qualquer espécie de moral?

 

Ao contrário - respondeu Pirandello quase com indignação - É preciso compreender a minha obra, que eu não sou um autor de farsas, mas um autor de tragédias. E a vida não é uma farsa, é uma tragédia. O aspecto trágico da vida está precisamente nessa lei a que o homem é forçado a obedecer, a lei que o obriga a ser um. Cada qual pode ser um, nenhum, 100 mil, mas a escolha é um imperativo necessário. E é essa escolha que organiza a nossa harmonia individual, o sentimento de nosso equilíbrio moral. E ela que constitui a tragédia e que faz com que os meus dramas não sejam simples farsas. Eles apresentam uma lei de sacrifício: o sacrifício da multidão de vidas que podería­mos viver e que, no entanto, não vivemos.

 

- Parece que os críticos não frisaram muito esse ponto, o que desvirtua inteiramente o sentido de sua criação artística.

 

E no entanto ele é, pode-se dizer, o ponto central da minha concepção da vida. É uma estupidez afirmar-se que ela destrói o senso moral. Faço questão de que se acentue bem isso. Tem-se escrito enormemente sobre a minha obra, mas infelizmente nem sempre com justiça e com inteligência. Chamo a atenção, particularmente, para o volume de Walter Starkie, publicado este ano, em Londres, pela livraria Dent & Dutton. É um estudo sério e minucioso, compreendendo cerca de 350 páginas de texto. Há, além disso, o livro recente do Sr. Ferdinando Pasini, intitulado Luigi Pirandello (come mi pare), publicado em Trieste, e o da Sra. Bergh, escrito em sueco. 

 

- Bernard Shaw?

 

É um grande amigo meu e um escritor que admiro profundamente. É um dos autores mais vivos que têm existido. E além disso, a seu pesar, é um extraordinário poeta. Um homem que vive. Isso justifica muito de minha admiração por ele. Outro escritor de teatro de grande valor é o francês Jules Romains, que, além disso, é um extraordinário romancista. Mort de quelq' un parece-me um dos mais belos romances da literatura contemporânea. Sinto por Jules Romains uma grande estima pessoal e um dos seus melhores dramas, La scintillante, me é dedicado. A França possui hoje uma bela plêiade de escritores de teatro. Lembro-me no momento de Charles Vildrac, de Raynal, de Cromelynck ... Não posso me esquecer também de mencionar alguns expressionistas alemães como Sternheim, Georg Kaiser, Von Unruh, Tröller, bem como o norte-americano Eugene O'Neill, um dos dramaturgos mais interessantes do momento. Deu-me o prazer de sua visita quando estive em Nova Iorque. A Itália apresenta também um conjunto de autores de teatro bem significativo, dos quais posso citar, por exemplo, o nome do Rosso di San Secondo.

 

- Que pensa de D'Annunzio?

 

É uma pergunta um pouco indiscreta, ­ disse-nos Pirandello. E, depois de refletir um pouco: Admiro-o certamente. Mas sinto igualmente uma grande admiração pelo escritor que representou o tipo de literatura mais anti-dannunziana que se poderá conceber, o meu conterrâneo Giovanni Verga. D' Annunzio, aliás, nas suas narrações provincianas, foi bastante influenciado por Verga. Lembro-me de ter lido uma aproximação entre o caráter de sua produção literária e a obra do novelista siciliano ... aproximação  que carece do menor fundamento. Verga pertencia à geração naturalista e, a despeito de sua independência, viveu, de certo modo, preso a alguns compromissos de escola. O único traço  comum entre nós, suponho, é o que deveria provir do fato de termos um e outro nascido no mesmo recanto da Itália. Os críticos têm um mau hábito de procurar aproximações e até influências onde podem existir apenas coincidências nascidas de fatores muitas vezes estranhos. Assim, já se têm encontrado semelhanças entre a minha obra e a de Marcel Proust. Benjamin Crémieux, sobretudo, insiste nessa comparação. Devo advertir que nunca abri um livro de Proust.

 

- Que acha do futurismo?

 

Considero o futurismo, sobretudo, para não dizer apenas, como uma atitude de polêmica. Sob esse aspecto acho que é admirável. Penso que é um esforço que vale principalmente como ação, não como criação. São consideráveis, realmente, os benefícios que prestou. Marinetti é um excelente poeta e um homem de grande engenho. Pessoalmente é uma das criaturas mais simpáticas que conheço.

 

Falou em seguida de alguns mestres do teatro europeu contemporâneo. Quando pronunciamos o nome de Claudel, fez um gesto significativo de indiferença. Em compensação referiu-se, com bastante entusiasmo a Tehekov. Depois, levado para a questão do cinema e da possível concorrência que possa oferecer ao teatro, Pirandello exclamou:

 

Acredito que o cinema está aparelhado para ser um maravilhoso instrumento de arte, mas só atinge o seu objetivo, quero dizer, só chega a ser um instrumento de arte, quando deixa de ser popular. Observei, por exemplo, que todo filme artisticamente bem realizado é sempre um filme bem cinematográfico, se assim se pode dizer. Infelizmente todo filme "cinematográfico" há de ser necessariamente impopular. O célebre Gabinete do Dr. Caligari era muito belo e, entretanto, na Itália, como na França, nos Estados Unidos e mesmo na Alemanha, sua exibição foi um insucesso completo. ( ... ) Carlitos é um grande artista. Um verdadeiro criador. O tipo grotesco senti­mental que criou é de primeira ordem e real­mente genial. Que extraordinária, que profunda tristeza ele exprime!

 

Nessa altura aproximou-se o Sr. Francesco Bianco, um dos delegados da Itália à Conferência Interparlamentar e com o qual já havíamos travado conhecimento em outra ocasião. O Sr. Bianco, que já tem publicado um livro sobre o Brasil e que sempre manifesta grande entusiasmo pelo nosso país, referiu-se ao progresso que notou em todos os sentidos no Rio de Janeiro e, incidentemente, aos arranha-céus da Praça Floriano Peixoto. Nisso interveio Pirandello:

 

Os arranha-céus no Brasil provêm de um erro profundo. É injustificável e lamentável numa terra rica de espaço esse sistema de construções que em outras cidades, em Nova Iorque, por exemplo, tem sua explicação e sua razão de ser. No Rio de Janeiro a existência dos arranha-céus não tem sentido. É uma imitação. As formas de arte não resultam de uma vontade. Não há forma de arte intencional. E, por isso mesmo, os vossos arranha-céus, que não correspondem a uma necessidade, que não surgem espontaneamente da terra, são necessariamente uma expressão falsa de arte. Penso muito que, de um modo geral, a arquitetura no Rio é quase uma ofensa à paisagem. Deve-se procurar sempre uma linha correspondente à da natureza.

 

Espero que se há de compreender bem cedo essa necessidade. E espero com otimismo, pois sinto uma vida em efervescência nos países sul-americanos e uma curiosidade bem confortadora. Em Montevidéu, sobretudo, essa impressão se impôs vivamente ao meu espírito. São Paulo também me pareceu uma cidade cheia de vida. Notei ali um interesse intenso por questões de arte. Eu desejaria, entretanto, que os povos latinos da América se desinteressassem um pouco da política e vivessem mais pelo espírito.

 

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