Raimundo Carrero
Entrevista publicada nosite http://livreopiniao.com em 2/3/2015
Recife, quinta-feira após as cinzas do carnaval. Terceiro andar do edifício no centro é onde mora um dos maiores escritores do país, Raimundo Carrero, que influenciou gerações e faz da literatura sua luta. Uma dessas gerações estava junto na visita, o escritor Marcelino Freire. Logo na entrada, somos surpreendidos com uma singela homenagem do condomínio ao escritor-morador: a praça Raimundo Carrero.
“Sejam bem-vindos. Vamos entrando”. Raimundo nos recebeu de braços abertos e abraços fortes. Ele nos guiou até seu apartamento, pelo corredor diversos vasos com plantas davam cor no caminho. Carrero estava na sua hora do café da tarde: “Fiquem à vontade. Querem café? Tapioca?”. Fiquei na xícara do puro. Se acomodando na cadeira para degustar a tapioca, Carrero comentou que está no corre-corre de atividades e aulas: “Mas é minha luta. Eu nasci pra lutar, não nasci pra ficar em casa”.
Em dezembro de 2010, Carrero sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) que o deixou com o lado esquerdo do corpo paralisado. Mas a maior luta do escritor estava apenas começando. Debilitado, Carrero tentava voltar a se movimentar e não perder o que sempre o motivou na vida: escrever. Este período conturbado de Carrero gerou o seu mais recente romance, O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo (Editora Record).
Em uma entrevista especial, Carrero conversou com o Livre Opinião – Ideias em Debate sobre os momentos no hospital, se recuperando do AVC, e da paixão pela escrita. Sempre bem humorado, ele compartilhou com o site sobre a adolescência em Salgueiro até a vida literária, passando pelas amizades com Ariano Suassuna e Gilberto Freyre, em Recife, e a construção de O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo. Confira a entrevista na íntegra.
A epígrafe do livro tem uma frase da Clarice Lispector que diz “O corpo é a única certeza que nos acompanha desde o nascimento até a morte”. Esta frase te influenciou em que sentido para escrever O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo?
Preciso falar uma coisa sobre Clarice. Essa frase pode parecer boba, mas vivenciando o contexto você repara que é sensacional. Esta é a maravilha de Clarice, de poder pegar um detalhe tão bobo, que a gente nem observa, e acertar de jeito! Realmente, o corpo é a única verdade que nos acompanha do nascimento até a morte. Todas as outras coisas a gente perde.
O título é maravilhoso. Ele também é a frase que inicia o livro. Conte de onde veio a ideia para o título?
Então, foi uma moça que me disse bem ali naquele canto [Carrero aponta para o canto da sala, próximo da janela]. Eu estava ali fazendo exercício quando ela me disse: “Olhe, o senhor agora vai mudar de corpo”. Pensei que ia ser na hora [risos]. Era apenas uma metáfora. Depois que ela foi embora anotei aquela frase.
E a frase foi a primeira ideia para escrever o livro?
Não. O começo da ideia foi o seguinte, quando eu acordei no hospital a primeira preocupação foi “será que eu consigo escrever?”. Esta seria a pergunta que mais me dramatizava. Eu passei a minha vida toda para escrever. Eu nasci para escrever. Eu não poderia fazer outra coisa além de escrever. Meu medo era ficar cego e paralítico. Na verdade, fui muito burro. Eu reguei o jardim para florescer o AVC [Acidente Vascular Cerebral]. Vou te dizer, eu bebia muito. Bebia porque eu achava gostoso [risos]. Reguei e olha o que nasceu. Eu estava com medo de não poder mais escrever, e perder a escrita é perder a literatura.
A literatura foi o remédio para você?
O único remédio, a não ser a minha religião. Eu sei que tem gente que não concorda, mas sou religioso e gosto muito de ser religioso. Não há nenhuma crise existencial em mim. Eu acredito em Jesus Cristo. Mas não é aquele Jesus Cristo do altar, é o Cristo da minha vida. Permanentemente!
Minha mãe era profundamente religiosa, ela incluiu desde a minha infância a religiosidade e a socialização no mundo. Tive uma mãe extraordinária. Quando eu comecei a ser gente, ela me falou: “Você vai ser músico”. Eu respondia que papai não ia deixar, porque meu pai achava que músico era escola de bêbado. Até que ele tinha razão [risos]. Eu disse exatamente isso a Ariano [Suassuna] e ele deu uma risada grande. Foi com a música que eu aprendi poesia. O que é música? Música é a arte de combinar os sons e de organizar os espaços. Isso se torna até poesia.
Decidi ser músico. Mas mamãe morreu e fui para o colégio interno. Depois que sai do colégio fui tocar em banda de rock, chamava-se Os Tártaros, onde eu tocava saxofone tenor. Esta foi a minha primeira atividade artística no mundo. Mas eu fui criado sem querer querendo lendo teatro. Eu tive um irmão chamado Chiquinho, ele teve que sair de Salgueiro, como todo retirante, e foi para São Paulo, deixando uma biblioteca com mais ou menos cem livros, dentre eles as peças de Bernard Shaw. Essa biblioteca do meu irmão me deu muitos caminhos bons. Quando a banda de rock terminou, decidi ser escritor. Escrevi o livro Gigante único entre quatro paredes, era um romance muito ruim [risos], que contava a história de um jovem músico que se trancava dentro de casa. Mostrei-o para Ariano, que gostou muito. Gilberto Freyre foi outro que me ajudou muito. Ele era uma pessoa muito generosa, me recebia a qualquer hora do dia e da noite. Ele lia tudo o que mostrava para ele. Ligava para Gilberto e perguntava se eu podia ir até a casa dele para mostrar um texto, ele respondia que sim. Chegava na casa dele e estava cheio de intelectuais do mundo inteiro, me chamava de lado e lia o meu conto. Ali, na hora mesmo. Anotava e depois falava comigo. Gilberto e Ariano foram especiais para o meu começo na literatura.
Então Ariano Suassua e Gilberto Freyre te influenciaram na construção de seu estilo literário?
Eu aprendi uma coisa com Ariano, que literatura não é documentação, como o movimento regionalista faz. O que acontece é que a crítica não entendeu porque é burra ou naturalmente fez maldade, que foi apontar Ariano como um mero folclorista. Ariano na verdade via no folclore a metáfora da sociedade humana. Ariano via no folclore algo para refletir o comportamento humano, questionar o comportamento humano a partir do Nordeste e não como uma cópia da nossa região. Muitos viam no Ariano uma extensão do movimento regionalista, o que não é verdade. O movimento regionalista é copista, ou seja, copia a realidade a partir da sociologia e antropologia. Isto foi a escola de Glberto [Freyre]. Ariano já via a realidade como uma metáfora. A metáfora do povo brasileiro com simples imagens e não simplesmente como cópia para virar estudo sociológico e antropológico.
É o que acontece com os seus livros e neste recente não foi diferente, mesmo narrando um fato que aconteceu com você, pode-se perceber a utilização de metáfora no enredo. Mas, o interessante, é que na orelha do livro diz que você tentou narrar em primeira pessoa, mas não conseguiu. Por quê?
Eu vim do hospital no dia 4 de novembro de 2010, a primeira coisa que fiz foi ligar o computador e escrever. A primeira sensação é que não tinha as mãos. Só conseguia escrever com este dedo [Carrero mostra o indicador direito]. Isto aqui não é escrever, o certo é dedada [risos]. Quando o jornal me ligava pedindo um texto com dez mil toques, eu corrigia falando que o certo era dez mil dedadas [risos]. Quando eu descobri que podia usar um dedo para escrever comecei um romance que no início iria se chamar Ás Vésperas do Sol, pois quando acordei não sentia o lado esquerdo, além de cego e mudo. Mas com o tempo eu fui recuperando tudo. O derrame me deu uma sensação boa.
Exatamente esta sensação boa está no trecho em que o personagem do livro está tendo AVC, a narrativa é bem empolgante, chega a utilizar poeticamente um momento sombrio.
Sim. Na hora era uma felicidade que eu sentia que nem sei como explicar. Não entendia nada [risos]. Eu ria e dizia: “Tive um AVC! Tive um AVC!”. Eu estava eufórico. Emocionalmente eufórico. O pessoal do hospital dizia: “Esse homem tá doido”. Depois disso tudo, pensei em mudar de título. É preciso deixar claro, eu uso tanta técnica em “Agora o Senhor vai mudar de corpo” que acabo sendo o personagem verdadeiro, minha mulher também é, mas, às vezes, há outros personagens fictícios que vieram até a mim para ajudar a escrever o romance. Eu uso tanta técnica literária, que todos os personagens acabam sendo fictícios. Decidi escrever em terceira pessoa porque eu não conseguia em primeira pessoa. Todas às vezes que eu escrevia em primeira pessoa ficava ruim. Até que eu decidi fazer em terceira pessoa. Não foi de repente. Conversei com a minha psicóloga, que me disse para não insistir porque a mente está reagindo para não escrever em primeira pessoa, então não insista. Então criei um personagem chamado “Escritor”, que era Raimundo Carrero, mas não este Raimundo Carrero, e sim o personagem Raimundo Carrero. Complicado, né? [risos]. Um Raimundo Carrero distante de mim.
E foi complicado abordar essa experiência no enredo?
A princípio foi, mas quando peguei o ritmo me soltei bem e construí o romance sem muita dificuldade.
E o que mudou no Raimundo Carrero depois do romance?
Eu mudei de personalidade. Eu me sinto mais amadurecido, embora mais triste. Hoje sou uma pessoa mais triste, mais marcada pela dor. Eu não quero ser um homem trágico e nem com agonia besta. O corpo é frágil e ter a consciência de que a morte não passa de uma idiotice. Quando acordei, que abri os olhos, eu pensei: “Poderia ter morrido agora”. Significa que a morte é um sopro. Você simplesmente naufraga nela e desaparece. Todo esse empenho na vida, toda essa maluquice de viver, não vale nada. Morrer é tão idiota quanto viver. Só que viver você precisa representar e a morte não representa nada. Você simplesmente desaparece!
Carrero, algumas perguntas rápidas: Adjetivo ou advérbio?
Nenhum dos dois! [risos]. Se tiver parcimônia, e souber utilizar tecnicamente isso, pode usar em algumas frases para ilustrar o texto, mas de preferência não existe. Joga fora [risos].
Jornalismo ou Literatura?
Literatura, com certeza!
Poesia ou prosa?
Para mim, prosa. O que é poesia? Poesia, teoricamente, é tudo aquilo que chamamos de poesia. Poesia pode ser uma morte, tragédia ou comédia. Poema que é a forma da poesia. Aquilo que está escritor em forma de poema é poema. Poesia é aquilo tudo que a gente quer que seja poesia. Mesmo uma topada é poesia [risos]. Prosa já é a maravilha da investigação. Por isso que sou rebelado com texto arrumadinho. Eu chamo isso de “hospitalar”. A Literatura tem que investigar o espírito humano, que é muito superior à linguagem. A linguagem é a epiderme do texto, você tem que naufragar. Se não naufragar, não for buscar na alma, o questionamento do ser, nada resolve. A literatura é a história dos escombros humanos, lá está a dor de viver e estar no mundo incompreensível.
Qual o clássico de todos os clássicos?
Dom Quixote.
O primeiro livro que você leu?
Menino de Engenho, de José Lins do Rego.
Uma palavra que não entra no seu vocabulário?
Eita! Acidente Vascular Cerebral [risos]. Esta é uma expressão que nem quero mais conversa com ela!
Inspiração ou transpiração?
Transpiração, com certeza! Inspiração vem da eclosão. Nós nos preparamos consciente ou inconscientemente para escrever e vamos acumulando matéria. Em certo momento aquilo eclode. E chamam de inspiração, mas está tudo na eclosão. Está tudo dentro de você.
E como você define O senhor agora vai mudar de corpo?
Dor! Eu digo sempre que o AVC não foi um castigo, foi um prêmio. Daqui pra frente vou poder viver sem muito álcool, até que eu queria um pouquinho, mas não posso mais. Tudo bem!
x.x.x
Raimundo Carrero
Entrevista conduzida por Heloísa Buarque de Hollanda, publicada em seu sitehttp://www.heloisabuarquedehollanda.com.br (25/2/2016)
Raimundo, de onde é que você veio com tanta garra?
Eu nasci em 30 de dezembro de 47 numa cidade chamada Salgueiro, no sertão de Pernambuco, sertãozão, o sertão mais distante.
E foi lá que você descobriu a literatura?
Foi eu tinha um irmão mais velho que era ator de circo e um intelectual seríssimo. Ele me deixou uma biblioteca inteira debaixo dos balcões da loja de roupas e chapéu de meu pai.. E eu fui descobrindo que , debaixo dos balcões, haviam muitos livros. Eu só não podia levar os livros para casa porque quando meu irmão voltasse, os livros deveriam estar lá. E eu ficava horas lendo Zé Lins, Graciliano, Ibsen, Shakespere, Bernard Shaw.
Aí você começou a escrever logo?
Comecei sim, comecei escrever usando os papeis lá da loja. A solidão do sertão é muito grande, é uma solidão bem diferente da solidão daqui. É uma solidão cheia de sol, de silêncio, mas muito pegajosa, muito pesada. A solidão da cidade grande é sombria, cinzenta, a do sertão é pesada, eu chamo de solidão oca. Parece que dentro a solidão tem outra solidão.
E o que você fazia com seus escritos?
Isso demorou. Eu comecei como músico. Por volta de 64 e 65 em Salgueiro, eu formei um conjunto que se chamava “Os cometas”, mais tarde, vim para o Recife e, na década de 70, acabei virando músico profissional. Eu tocava saxofone tenor em baile, num conjunto de Rock chamado “Os tártaros”.
E era de música que você vivia?
Vivia. Mas desde que houve um outro problema financeiro na minha família, decidi ser jornalista e me dedicar a literatura. É o que venho fazendo desde então Sou jornalista de batente há 27 anos e não paro de escrever.
E isso foi bom para sua escrita?
O jornalismo foi a minha grande escola. O jornal disciplina organiza o trabalho de escrever. No jornal você já se exibe, perde o medo. Minha primeira novela, chamava-se Grande mundo em 4 paredes e foi escrita entre 1968 e 1969. Essa novela foi novela de menino, eu tinha 19, 20 anos. Eu tinha acabado de sair do conjunto, era principalmente um leitor.
E como você conseguiu ser editado pela primeira vez?
Resolvi mostrar essa novela para o Ariano Suassuna e, antes de ler, ele disse uma frase que eu nunca mais iria esquecer: “se eu ler e não gostar, não significa que não presta, significa que eu não gostei”. Depois ele me chamou e disse que o escritor estava lá mas que eu precisava amadurecer.
Esta novela foi publicada?
Não. Escrevi quatro ou cinco livros que eu não publiquei, no começo da carreira. Graças a Deus que não publiquei. Logo depois conheci o Pessoa de Moraes, autor de Sociologia da revolução brasileira, que me deu um emprego de secretario dele, e em troca me pagava cem cruzeiros e mais a comida. Foi através dele eu conheci Gilberto Freire, que me deu grandes indicações de leitura. Mais tarde, fui assessor de imprensa Gilberto e em seguida trabalhar com Ariano. Tudo que se pode esperar de um grande orientador, de um grande mestre, tive com Ariano. Tenho até vergonha de lembrar, mas eu chegava na casa de Ariano domingo, às vezes às nove da manhã e saia às nove da noite, estudando literatura, falando de autores, conversando sobre autores. Ele ia buscar livros na estante, estudava comigo meus textos, anotava meus textos, quer dizer, Deus estava presente e, ao lado disso, ainda tinha Ermilio. Era como ter uma universidade inteira aos meus pés. Escrevi, já sob a influencia de Ariano, A prisioneira do castelo, e outros livros que, graças a Deus não foram publicados. Até que em 73, fiquei doente e me mandaram para fazenda da minha então sogra, onde eu fui descansar. Foi lá que escrevi um romance em cinco dias, A historia de Bernardo que foi publicado pela Arte Nova, do Álvaro Pacheco. O livro foi bem, teve quatro edições.
E aí não parou mais?
Não. Tive outro período de silêncio. Caí na gandaia, fui beber, fui festejar. Eu estava com 26 anos, tinha tempo para isso. Mas acabou complicando e me recolhi um tempo numa clínica psiquiátrica, para descansar. Quando saí, escrevi imediatamente escrevi outra novela, A semente do sol, o semeador, baseado no clássico episodio adultério do rei David com Beth. A novela não é grande coisa, tem alguns descuidos técnicos, mas a linguagem até que é boa. É típica de um garoto que está saindo de uma crise existencial e religiosa. Depois escrevi uma terceira novela chamada A dupla face do baralho, e essa novela, publicada pela Francisco Alves, deu um impulso na minha carreira.
Como você chegava nessas editoras?
No caso da Francisco Alves foi através de um convênio que foi feito com a prefeitura do Recife, e nós fomos até lá, a editora ficou entusiasmada, e meu livro vendeu muito bem, teve até uma segunda edição e chegou a ser traduzido para o inglês. Era um livro sobre a culpa. O caráter do culpado. Eu vinha carregando uma vida muito complicada, vinha de um adultério mesmo.
A culpa é uma coisa bela.
Bela até quando você trabalha. Não é para ser tratada como algo terrível, mas ser trabalhada do ponto de vista católico, cristão, trabalhar como reformulação da alma. Mas esse livro nasceu quando eu tive um enfarte do pulmão, que é uma coisa rara. Fui assistir um jogo de futebol e cai, formou-se um coagulo que acabou no pulmão. E eu, que tenho muito medo de alma de outro mundo, tive um sonho no qual apareceu um amigo meu que havia morrido, chamado Ernani, que vinha vindo em minha direção, mas que não falava nada comigo. Perguntei: só porque morreu não vai mais falar comigo, não? E ele respondeu: não falei com você porque eu vim lhe dizer que você vai morrer em 15 dias. Acordei em pânico, tomei um Lexotan, fui para a minha biblioteca, me tranquei, e pensei, já que vou morrer em 15 dias, dá tempo de escrever uma novela.
Aí escreveu uma em 15 dias?
Tentei, fui até a metade, mas sentia muita dor o tempo todo. O livro começa assim: “eu estou aqui sentado na calçada da minha casa, vestido todo de branco, esperando a morte”. A partir daí fiz um balanço da vida de um policial, que levou a vida torturando, ofendendo e maltratando as pessoas, e que na hora da morte tenta fazer uma reforma da alma. O principal personagem ao lado dele era um menino excepcional, chamado Camilo. Era um menino que joguei para fora do romance umas três vezes, mas ele voltava sempre. Esse personagem terminou assumindo um papel muito importante no livro. Em 1984 escrevi Sombra Severa que é um romance muito importante na minha vida, por muitos motivos. Primeiro porque trata da traição, do drama, da angústia. Não sei se é porque sou sertanejo, mas tudo isso toca muito profundamente a minha alma, a presença de Deus em mim é muito forte. A minha casa era bem em frente da Igreja, se eu andasse em linha reta, eu batia no altar, fui criado em colégio religioso, enfim, uma vida de religiosidade. Há um livro que me marcou muito que é, As horas do assassinos, de Muller, que trata de Rimbaud, e do rebelde que é um traidor por natureza. A partir dessa reflexão do traidor, da traição, do adultério, temas que já estavam contidos em Na dupla face, comecei tentar escrever a historia dos dois irmãos, que no fim das contas me revelou porque eu sou escritor, foi uma coisa fantástica.
Esse livro é inacreditável, fiquei hipnotizada quando li.
Que coisa boa. Nesse livro, descobri porque sou escritor. Porque queria matar meu irmão e, como não sou assassino, escrevi esse livro. Comecei a trabalhar as imagens do adultério no sentido metafórico. Eu nunca escrevo exatamente sobre uma historia, escrevo sobre temas. Ali comecei a construir a figura de Judas, do irmão Abel, da mulher Dina e da sogra Sara. Na verdade, esses personagens todos são eu. Minha vida foi observar essas pessoas pesadas, difíceis. Descobri, de repente, que Judas era um primo meu, uma figura que eu via sentada na frente da porta da casa, com o chapéu sob os olhos, pensando, carregando provavelmente uma enorme culpa nos ombros. Minha infância está toda na primeira parte da minha obra, que vai até Maçã agreste. É Salgueiro inteiro dentro de mim.
É interessante porque apesar disso, sua obra não me parece regionalista. Parece mais bíblica do que regional.
Exatamente. A Bíblia é minha fonte. O regional tem compromisso com o documento da região, eu não tenho essa preocupação. Me preocupo com a transcendência da situação do romance e de seu personagem. Tanto que fui estudar justamente a questão dos mitos religiosos, a do grande mito do inocente sacrificado. Não usei Jesus Cristo porque essa é uma imagem desgastada pela literatura e que quebraria a unidade metafórica do livro. Aí escolhi Abel, que também é o cordeiro sacrificado, assassinado pelo irmão. Da mesma forma, se eu usasse a imagem de Caim, comprometeria a formação metafórica do livro. Judas era um personagem de espírito pesado, mas que ele lia as estrelas, lia os baralhos. Criei também uma lindíssima personagem chamada Dina, que aparece no antigo testamento como personagem que atravessa o deserto num caixão de defunto.
Não conhecia essa personagem da Bíblia.
É uma personagem linda. Precisei do lado escuro de Dina, que era o passado… Quando você percebe Dina, a carta está sempre virada, porque ela olha para os arquétipos do passado. Aí vem Sara, e em Sara está o meio e o fim do jogo.
A mistura de Sara com Dina tecnicamente é uma loucura, é lindo. Você não sabe quando sai uma e entra outra.
Fiz um jogo de baralho. Sombra severa nasceu desse jogo do baralho com o destino, eu queria identificar onde é que o destino entra na historia, porque a pergunta que eu sempre fiz a mim mesmo, é por que as pessoas matam as outras? Uma das coisas que mais me motivava a infância, era cadeia pública. De manhã, eu pegava um tamborete e ficava conversando com os presos: o que é que faz uma pessoa matar? O que tem nesses olhos, o que é que tem nessa face? Eu tinha loucura para ver o rosto de uma pessoa na hora do crime, a coisa que mais me fascina, uma angústia que carrego, que ainda hoje me sufoca.
Você matou alguém?
Já me perguntaram isso. Mas, graças a Deus, sou artista e tenho a chance de fazer minha chacina sem ter que maltratar a humanidade.
Quanto tempo você leva escrevendo um livro?
Sombra severa eu escrevi de janeiro a novembro.
Mas ele é muito trabalhado.
Muito. As pessoas que forem ler os meus livros, por favor, comecem pela Epígrafe.
Eu não fiz isso.
Eu também não faço isso no livro dos outros. Mas se você conferir vai ver que a primeira epígrafe fala sobre o traidor, a segunda fala sobre o destino do criminoso que permanece ao lado da vitima, mesmo na eternidade, o que é terrível, a terceira é de Sheakespere, de Hamlet, que faz as pessoas encarem esse mundo com tanta dor, a quarta é um texto longo de Thomas Mam, que está no livro. Se o livro for lido nessa direção, sem dúvida será outro livro, terá toda uma iluminação interior, a figura mágica, inquietante, sofrida de Judas, aquele sofrimento, que não deixa de ser o meu sofrimento. Construo meus personagens como se fosse, eu atuando. Se você escreve, você tem que ser sincero até a morte, então você tem que ser sincero tanto quanto vive.
Qual seu próximo livro?
O próximo é sobre a violência das famílias e chama-se O amor não tem bons sentimentos. É de um maluquinho que estupra e mata a mãe e a irmã, que, tem, coitado, um sofrimento imenso. Minha primeira decisão quando escrevo é não correr do personagem, não correr de suas reações. Se eu ficar com ele, vou com ele até o final, jogo minha alma inteira, minha alma completa, minhas maluquices, minhas dores, minha solidão de tantas faces…
Fala um pouco desse novo livro. Este é mais urbano, menos sertão?
É. Passa-se em Recife e fala da dor na família. A partir de Maçã agreste, minha literatura começa a ter uma expectativa mais urbana, ainda que um urbano muito ligado ao rural, até porque eu tenho muito medo da vida urbana. A relação urbana me parece surda por natureza, é uma relação apessoal. O sertão, o rural, é mais pegajoso, as pessoas estão na alma das outras o tempo todo, mesmo nas que parecem não muito próximas.
A literatura hoje anda muito tagarela, fala demais. Ao contrário, seus personagens são mudos, tem um silêncio profundo, uma densidade grande, muitos não ditos que pegam a gente de surpresa.
Meus personagens não falam. Sempre acreditei em elipses, é ali que está a literatura, não é na palavra escrita, é no abismo entre uma palavra e outra, esse abismo que é que forma a loucura.
Isso vem do ethos sertanejo?
Certamente. No sertão, as pessoas são magoadas com o silêncio, odeiam o silencio, e amam o silencio. Sobre isso há um depoimento muito bonito de Graciliano que saiu nos Arquivos Confidenciais do Cruzeiro. Ele conta que o modelo dele Vidas secas foram um tio e uma tia que se amavam demais, mas não se falavam, que não trocavam um beijo, que não trocavam um abraço. É por aí que se chega na história do sertão. Eles não se falavam dentro de casa, nem se olhavam quase, e, no entanto, a ternura e o afeto que havia entre aquelas pessoas era algo que o espantava. Acho uma coisa de cidade e comunicação, uma coisa tão besta, tem palavras que eu odeio, interagir, interface, comunicação, palavras muito feias.
Mas você acha que hoje se pode fazer uma literatura sem o impacto desses modelos?
Veja bem, a atividade de um escritor não é a de critico, é de observador, de analista, ele deve refletir sobre o que significa isso tudo. E foi por aí que comecei a trazer essas vozes para minha ópera.
Onde você começou esse trabalho?
A partir de Somos pedras que se consomem. Aí comecei a trazer para minha obra o que chamo de vozes contemporâneas, escritores, personagens, atores, atrizes, que falam demais. Peguei todas essas vozes e fui ver, que país é esse e como a gente está vivendo nesse país. Passei um ano só lendo, estudando, anotando. Assinei O Estado, A Folha, O Brasil e O Globo, e as duas revistas da época, que era a Veja e Isto é, e comecei a analisar o comportamento da sociedade, dos mais jovens, e me abismei. Falam de sexo como se tomassem água, as mulheres falando com uma eloqüência, com uma inquietação. Tem uma atriz que diz na Veja: “eu conheci um fotógrafo numa festa, e aí quando eu cruzei com ele, eu arriei a calcinha, e foi ali mesmo…” Imagina um sertanejo, de repente, verificar tudo isso… eu comecei a ficar assustado. Na minha cabeça de sertanejo, é complicado ver isso. E, além disso, a maldade, a violência é demais. Em Brasília, os bandidos seqüestraram uma criança de dois anos, queimaram a criança numa placa de cimento e quando a policia veio, (eu até fiz um poeminha sobre isso no livro), só encontrou 300 gramas de criança. Foram essas vozes, essa loucura do mundo contemporâneo, que me levaram a escrever sobre As pedras que consomem como uma visão da descida ao inferno. Depois escrevi Os extremos da cruz, que é um livro mais didático e As sombrias ruínas da alma, que tem uma unidade interior muito forte, que é a saída do ventre materno, passa por iluminação, entra nas ruínas, que é, naturalmente, o final de quem cumpre uma vida completa de infância até a velhice, e então, é um livro muito cruel, muito doloroso. Publiquei também no final de dezembro, Ao redor do escorpião, uma tarântula, que recebeu muitos elogios mas também algumas divergências
Você continua trabalhando na linha das descidas ao inferno?
Não mais. No final, meus personagens acabam sendo eu mesmo, meus vícios, minha maneira, meu comportamento, minha angústia. Esse personagem que vem agora, Matheus, é muito inquieto…
Voltamos à Bíblia?
Sim, porque a minha obsessão religiosa é muito forte. Meu novo livro de contos, Os deliciosos peitinhos murchos, deve trazer dois contos que para mim são significativos, um sobre Frei Caneca e outro que é uma nova historia sobre santo Antonio, que é meu santo. Eu já havia feito um conto sobre ele chamado “Uma vida escondida em Cristo”, e agora volto de novo porque, a partir da leitura de seus sermões, pude construir uma visão da psicologia dele não como um santo popular, mas como um doutor da Igreja.
Você começa sua trajetória literária pela densa ética do sertão, passa pelas vozes contemporâneas e agora está fechando o circulo de novo?
Estou. Pela reflexão interior, pela angústia, pela dor. Eu estava olhando o mundo pela calçada. Precisei entrar de novo na sala, entrar um pouco mais em mim. Eu estava muito perto da luz e isso faz mal, o escritor tem que dar sempre um pouco de recuo.
Quais são os seus autores preferidos?
Meu autor de todos os tempos e momentos é Dostoievski.
E entre os mais contemporâneos?
João Gilberto Noll, Sergio Santana e Antônio Torres.
Você gostou de ter participado dessa FLIP?
Talvez essa seja uma visão de um matuto, mas, para mim, foi arretado. Falei durante duas horas e li o conto Os deliciosos peitinhos murchos que dá o título do meu novo livro. Para mim, a FLIP, me colocou direto no caminho de Deus. Por isso escrevi um artigo no site da Globo sobre o fracasso, a vaidade e a mentira na vida dos escritores. A coisa que tenho mais tenho medo é a de cair no conto do sucesso. Sou muito vaidoso então fico angustiado, rezando o terço, para poder me livrar disso. O perigo do escritor é virar festa, ele tem que de vez em quando dar um volta para trás e deixar o bloco passar.
E os novos autores de Recifes? Existe uma literatura mangue beat?
Até onde eu possa conhecer, acho que não. Mas tem novidades por aqui. Uma tendência que me parece muito boa é de um grupo chamado “A mula manca e a triste figura”. Eles fazem música com literatura, com a participação de poetas. Me pediram para gravar um CD com eles onde leio o texto de Dom Quixote, e que acabou saindo bom. Tem também a Micheline que publicou um CD e que é uma poeta muito forte, da cidade de Arcoverde, do sertão de Pernambuco, e que agora está fazendo um mestrado na PUC, São Paulo. Sem dúvida aqui está se produzindo uma literatura subterrânea e boa. Nesse campo temos um contista chamado Carlos Magnata, que é bom e publica em blogs… Já que a imprensa não tem mais espaço para contistas, para poetas, o caminho é esse mesmo. Eu também gosto de blog e até tenho um: www.aoredor.blogspot.com , é onde digo coisas, mando recados, converso sobre literatura.
Como um escritor daqui, com a obstrução dos canais Rio-São Paulo, faz para ser lido no país?
Em Paraty, Lygia Fagundes Telles fez palestra brilhante. Ela falou sobre Capitu e a literatura de Machado de Assis, e numa hora lá, ela disse: para escrever, tem que ter talento, estudo e sorte. E disse mais: um matuto disse que a sorte é um cavalo selado que passa correndo, se você for bem preparado monta e vai embora, senão, fica. Foi o que, pessoalmente fiz.
|