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Grandes entrevistas

Reinaldo Moraes

 

Entrevista publicada na revista "Cândido", da Biblioteca Pública do Paraná


Sétimo convidado do projeto “Um Escritor na Biblioteca”, o autor do clássico Tanto faz fala sobre o hiato de duas décadas longe da literatura e de como concebeu Pornopopéia, romance de 2009 que já foi alçado à condição de clássico contemporâneo


Reinaldo Moraes nasceu em São Paulo em 1950. É escritor, roteirista e tradutor. Estreou na literatura em 1981 com o romance Tanto faz, livro que se tornaria cultuado por diversas gerações de leitores. Em 1985 lançou Abacaxi, continuação de seu livro de estreia. Ambos os romances foram reeditados recentemente em um único volume pelo selo Má Companhia, da editora Companhia das Letras. Depois dos primeiros romances, o autor fez uma pausa na literatura, ficando duas décadas sem publicar ficção. Voltou às prateleiras com a narrativa infantojuvenil A órbita dos caracóis (2003), seguido pelo volume de contos Umidade (2005).

Em 2009 Moraes lançou Pornopopéia, considerado pela crítica seu melhor livro. O romance de quase quintas páginas é uma viagem alucinada pelo underground paulistano, protagonizado por um cineasta fracassado que faz vídeos institucionais para sobreviver e que, segundo Moraes, é “um personagem sem superego”. “Queria escrever sobre um cara que fizesse o que passasse pela cabeça, tivesse uma existência puramente instintual, totalmente dessublimado, um cara que vai cumprindo uns papéis sociais, mas de uma forma totalmente delinquente, totalmente anárquica, que vai derretendo todos os vínculos com a sociedade, com a mulher, com os amigos, com a família, com o filho”, diz o escritor, que conversou com a jornalista Mariana Sanchez na sétima edição do projeto “Um Escritor na Biblioteca”.

Durante o bate-papo, Moraes ainda contou histórias irresistíveis, como seu encontro com Julio Cortázar em Paris, falou sobre suas influências literárias, sobre os primeiros escritores que leu e de sua rotina de trabalho. “Passei muito tempo em que, quando tinha uma ideia saía correndo para os bares comemorar. Hoje, quando tenho uma ideia, corro para o computador e escrevo”. Confira os melhores trechos do papo com o escritor.

Primeira vez na Biblioteca
Eu lembro bem porque, no primário, estudava numa escola pública em São Paulo que ficava na Praça da República. O prédio existe até hoje e, dois quarteirões para cima, pela Avenida São Luiz, fica a Biblioteca Municipal de São Paulo, que foi recentemente restaurada. Chama-se Biblioteca Mário de Andrade, porque foi ele quem a fundou, quando trabalhava num órgão que viria a ser a Secretaria da Cultura de São Paulo. Era uma biblioteca bem bacana, bem gerida, depois passou muitos anos em uma decadência tremenda, praticamente fechada, e recentemente, há uns dois anos, foi reaberta, toda reformada. Lembro que todos os semestres os professores levavam aquela molecadinha de sete, oito, nove anos, de uniforminho azul, em fila indiana, subindo a Avenida São Luiz rumo à biblioteca. Quem ainda não tinha ficha, fazia.

Descobrindo o conhecimento

Adorava a ideia de ser admitido em um lugar onde, segundo a professora, estava todo o conhecimento humano. Quer dizer, era como se você entrasse na caverna do Ali Babá, onde todas as riquezas se encontravam, onde todas as coisas que realmente importavam, coisas da cultura, residiam. A questão era só crescer, aprender e poder ler. Também tinha o grande prazer de você se sentir parte de um órgão importante, como uma biblioteca municipal. Eu tinha carteirinha, devolvia os livros religiosamente na data, nunca atrasava. Aí, entrei no ginásio, fui estudar em outro lugar, mas sempre voltava àquela biblioteca. Podia ficar zanzando pelas revistas, podia pegar qualquer livro. Isso foi até meus 19 anos, quando li pela primeira vez Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Em 1967, quando tinha 17 anos, o Teatro Oficina encenou O rei da vela, do Oswald. Aí, os jornais começaram a dar muita matéria sobre ele, e foi aí que passei a saber quem ele era, o que era o Modernismo brasileiro. Mas não havia livros, os livros começaram a ser reeditados em 1969, 1970, em edições, acho eu, da [editora] Civilização Brasileira em parceria com o Ministério da Cultura. Mas em 1967 eu tava louco para ler Oswald de Andrade e não tinha nada dele para vender na livraria. Na biblioteca, o livro não poderia ser emprestado, ficava confinado no departamento de obras raras. A mulher trazia o livro e ficava te olhando. Eu li Serafim Ponte Grande e Memórias sentimentais de João Miramar ali, com uma pessoa me observando. Então, biblioteca foi uma coisa que me acompanhou.

Estímulo para ler
Inicialmente, quem primeiro me incentivou foram os professores mesmo. Na minha casa, minha mãe lia alguma coisa, mais revistas como Cláudia, Seleções, etc. Então eu não tinha grande estímulo para ler em casa. Mas a gente sempre tem, em alguma fase da vida, uma espécie de guia literário — em muitas fases, aliás. Eu tinha uma tia, irmã da minha mãe, que era professora, ela adorava ler os brasileiros. Lia todo Machado de Assis, todo José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, os poetas românticos, etc. Essa tia tinha uma biblioteca em casa. Era uma coisa que eu achava de um supremo chique, supremo privilégio. Era simplesmente uma estante grande, com uma porta de vidro de correr, com livros de coleções diversas que ela e o meu tio compravam dos vendedores ambulantes da cidade. Aí fui crescendo e ficando cada vez mais tarado por livro, ia fuçando essas coisas mais bacanas, mais difíceis. Eu passava férias lá e me esbaldava.

Diversão e transformação
As duas coisas sempre vêm juntas. Lembro quando li Grande sertão: veredas, com 18 anos, quando já era um leitor — com essa idade, já tinha lido muito mais do que a média dos garotos da época. Tinha lido Padre Vieira, Machado, García Márquez. Mas aí me meti a ler o tão falado e reverenciado Grande sertão: veredas, que é um livro difícil de ler. Eu já tinha um ânimo de enfrentar as dificuldades do livro e ver onde ia dar. Grande sertão te ensina a lê-lo, você só tem que ter paciência, perceber como se arma a sintaxe daquele cara. O Riobaldo fala um tipo de português que ninguém fala em São Paulo. Algumas coisas da fala dele parecem com a fala dos caipiras que conheci no interior, mas aí você lê o Camões e vê que aquilo é parecido com Camões, aí percebe que o cara tá fazendo uma fusão de um português quinhentista, camoniano, com aquele português sertanejo — e contando uma história que é uma aventura fantástica. Aquilo ali exige esforço. Mas acho que quem gosta de ler, vai querer decifrar escritores que tenham uma prosa um pouco mais intrincada, menos óbvia do que a literatura de entretenimento.

Literatura nas escolas
Já vi muita gente questionando a forma como a literatura é introduzida nas escolas. É um jeito meio forçado, porque aquilo faz parte da história oficial da literatura. Você tem que ler o Machado [de Assis], que é maravilhoso. Mas, de repente, não está a fim de, com 14 anos, ler Dom Casmurro, mas pode estar a fim de ler outro livro. Mais engraçado, mais provocativo, mais irreverente. E isso a escola não oferece. Se você não tiver um pai, uma mãe, um círculo de amigos bibliófilos, tarados por literatura, não vai ter contato com coisas que poderia ler e gostar. A coisa tem que te interessar de algum jeito.

Disciplina de leitor
Já fui mais disciplinado. Antigamente fazia uma coisa que eu achava legal: ler o livro de um cara, achar bacana e sair lendo tudo que encontrava desse autor. Começou assim com Machado de Assis. Fazia amizades com caras que gostavam de Machado. É como fazer amizade por causa do Corinthians, do futebol. Era tipo um clube. Então, trocávamos cartas em estilo machadiano. Aí, lia tudo: crônicas, romances, contos. Descobri Guimarães Rosa e caí de boca naquilo. Aí, descobri Cortázar, primeiro grande escritor estrangeiro, li tudo dele.

Leituras hoje
Na juventude, caía de boca na obra dos autores. Bukowski, quando conheci, li tudo. Até traduzi um livro [Mulheres, reeditado pela L&PM em 2011]. Hoje em dia, estou um leitor preguiçoso, mais fragmentado. Fico tentando ler Em busca do tempo perdido. Como aprendi um francêszinho razoável, pois morei na França, leio em francês. Aliás, o Mario Sérgio Conti está fazendo uma tradução que, parece, vai ter um português mais palatável. Apesar de o Proust ter sido traduzido por grandes caras, como Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade e Lúcia Miguel Pereira, nunca consegui passar do primeiro livro, No caminho de Swann. Agora reli o primeiro e comecei o segundo. Quer dizer, estou com 61 anos, faz 40 anos que quero ler Proust. Enfim, fiquei dispersivo. Boa parte da culpa pode ser atribuído a um processo discreto de esclerose progressiva, assim como à internet, essa grande fábrica de mentes estilhaçadas, que reduziu a atenção das pessoas em cerca de 89,3%. Antigamente, as pessoas tinham saco de pegar um livro e passar duas horas lendo. Hoje em dia, procuramos o mouse do livro.

Busca pela liberdade
Escrevi Tanto faz entre 1979 e 1980, o livro saiu em 1981, ainda dentro do período ditatorial. Mas a verdade é que depois de 1979, começou haver liberdade de imprensa, acabou a censura muito estrita aos produtos de cultura de modo geral. Era um momento em que a cultura brasileira ainda era hegemonicamente de esquerda. Então, todo mundo que estava escrevendo, fazendo filme, etc., 99,9% dessas pessoas eram, de alguma forma, de esquerda. Então, quando comecei a escrever, existiam dois superegos: o superego ditatorial, que também no meu caso combinava com a minha casa, pai e mãe que adoraram os militares no poder; e o da esquerda. Eu era um tipo muito encontradiço na época, aquele hippie marxista, calça boca de sino, fitinha na cabeça, barba do Che Guevara, lia um Marx ali e fazia umas maluquices aqui. Então, também tinha esse superego do comunismo pétreo, radical, ideológico e cagador de regra. E, por outro lado, a coisa da direita, da censura, da repressão. Saí então para uma terceira via, criando esse personagem picaresco [Ricardo, protagonista de Tanto faz], que dá uma banana para a direita e cospe o chicle na cara da esquerda. Mistura rock com samba e bossa nova. Não era uma coisa que inventei, era uma coisa que se via, a moçada ali num choque, numa pororoca ideológica.

Sucesso de Tanto faz e Pornopopéia
Foi um sucesso totalmente inesperado. Eu não esperava nem que fosse editado, quanto mais publicado por uma grande editora [Brasiliense]. De repente abri a Veja e vi o cara falando de mim. Trinta anos depois, isso aconteceu com Pornopopéia, que escrevi achando que ninguém ia ler. Inclusive era uma coisa pela qual eu me desculpabilizava, porque pensava assim: “estou botando tanta maluquice nesse livro, que ninguém vai editar”. O livro não parava de crescer, chegou a ter mil páginas. Então, fiquei pensando: “um livro desse tamanho, com o cara fazendo esse tanto de maluquice, com uma linguagem totalmente desabrida, com palavrão misturado com linguagem culta, personagem totalmente amoral, irreverente e cínico, ninguém vai ler”. Isso me deu uma grande liberdade, como se tivesse escrevendo em finlandês. Porque ninguém vai ler um livro no Brasil escrito em finlandês.

Alienação de Tanto faz
Eu achava essa abordagem um erro. Porque o livro era político. Era um livro que debatia essa questão, porque botava a consciência do personagem no meio da rua. No Tanto faz, o personagem narrador fica debochando da esquerda, da esquerda normativa, ideológica, dizendo “pô, esses caras querem controlar minha libido, eles que vão às favas, já chega os milicos tentando controlar minha vida por 20 anos, agora que estou adentrando a vida adulta não quero ninguém me controlando”. Isso não era uma ideologia minha, eu não era aquele carneiro, aquela ovelha negra. Era um monte de gente que estava entrando na soleira da vida adulta, num mundo totalmente pop, com o rock explodindo, como opção musical e também comportamental, tinha um monte de coisa para ler, literatura americana, por exemplo, que nunca foi muito marxista, estava muito perto da vida, Bukowski, John Fante, Henry Miller. São caras que estão falando do corpo, do desejo. Coisas da vida que não estavam necessariamente ligadas à luta de classes. O foco não era esse. As pessoas estavam tendo outras experiências, com drogas, com formas diferentes de relacionamento. Então, era uma moçada com um programa de vida que não cabia mais naquele molde da esquerda clássica, em que “tomar consciência significa se engajar num processo de superação histórica da burguesia”, etc. Esse personagem de Tanto faz questionava e era questionado dentro do livro. Para mim, era um livro muito político, mas não exatamente do jeito que a esquerda esperava. O livrou tirou três edições: uma delas vendeu em semanas, porque saiu na Veja, foi um auê.

Encontro com Cortázar
Nos anos 1970, fiquei amigo do Davi Arrigucci, professor de literatura da USP, grande ensaísta, que sabe tudo de Cortázar. Em 1979 ganhei uma bolsa para estudar em Paris. Então o Davi falou: “já que você gosta tanto do Cortázar, leva esse disco para ele”. Era um vinil de O bicho, do Caetano Veloso. Porque o Cortázar tinha vindo para o Brasil em 1972 e visto um show da Bethânia e do Caetano — inclusive ele achou que a Bethânia era o Caetano na versão feminina, estilo Shiva e Parvati, o deus feminino e masculino dos hindus. Davi fez uma dedicatória e disse para eu levar para o Cortázar em Paris, deu o endereço e tal. Pensei: “porra, maravilha”. Cheguei lá, nem tomei banho, peguei o telefone e liguei. Ninguém atendeu. Tinha um amigo lá, o Giba Vasconcellos, que me acalmou e tal, falou que ele poderia não estar na cidade. Eu ligava quase todo dia. Chegou o outono e nada. Aí o Giba falou: “vamos lá na casa dele”. Pegamos o endereço e fomos. Ele morava numa rua no centro, num bairro que tem um comércio muito chique, mas na época tinha uns prédios residenciais bem de classe média. O endereço era assim: “Rua tal, número 68”. Chegamos lá e vimos as caixas de correio, típicas dos prédios de Paris. Em nenhuma delas estava escrito “Cortázar”. Aí, ficamos ali pensando, decidindo entre ir embora ou não, quando demos dois passos para fora, vimos que existia o número 68 bis. Tentamos naquele, e numa das caixas de correio estava escrito monsieur Cortázar. Mas aí não sabíamos o número do apartamento, porque só tinha o nome. Enquanto a gente estava nessa discussão, ouvimos um barulho nas escadas, por onde descia uma equipe de TV, com todos os equipamentos, todos loirinhos, e atrás deles o Cortázar. Ele olhou para a gente. Eu e meu amigo éramos duas figuras estranhas, barbudões, cabeludões. Cortázar deve ter pensado: “tô encrencado”. Olhei para ele, não sabia falar quase nada em francês ainda — só saía um bon jour, mas não sabia exatamente em que hora falar isso —, então misturei um francês com português, coisa horrível. E ele respondeu: “ah, o disco do Caetano Veloso, que bom, você é amigo do Davi, então?” Mandou um português ali, bicho, tranquilo, quase melhor que o meu. E aí ficamos conversando, ele um sujeito simpático, um pouco mais alto do que eu, tinha uns 75 anos, mas sem um fio de cabelo branco, uns olhos azuis, um cara bonito para chuchu. Ficamos batendo um papinho, por uns 20 minutos, e os caras da TV esperando. Até que o Cortázar disse: “tenho que ir com eles agora, mas liga pra mim, meu telefone mudou, vou viajar, mas daqui um mês você pode ligar”. Fiquei um ano tentando ligar, mas nunca mais o vi. Esse foi o dia em que conheci Cortázar.


Rotina de escrita
Escrevo em qualquer lugar. Na verdade, não tenho disciplina. O único hábito que tenho é ler jornal. Toda manhã leio a Folha de S. Paulo, o jornal físico mesmo. Com uma caneca de café e pão com manteiga do lado. Mas eu deveria ter mais disciplina. O único jeito de encarar uma leitura mais complexa, como Em busca do tempo perdido, seria ter um horário destinado a isso. Mas eu vou lendo por compulsão, quando tenho tempo, vou e leio. Com a escrita é a mesma coisa. Escrever não é uma coisa em que se sai do zero. Sempre há uma ideia antes. Agora, estou na metade de um romance. Então, estou já empurrando aquele bonde todo, cheio de personagens e tal. O barato é escrever todo dia, não deixar de escrever nenhum dia, nem que você mude apenas um verbo. Eu faço isso às vezes até como um ritual, da mais baixa superstição. Mesmo que eu esteja bêbado, de saco cheio, deprimido, sem tempo, cansado, com sarna, dor de dente, não importa, tenho que ligar o computador, nem que seja para alterar uma vírgula. Isso religa. Religa o cérebro.

Horários
Escrevo muito de manhã. De manhã, reescrevo muito, na verdade. À tarde, cochilo e leio. Às vezes mais cochilo do que leio. E à noite escrevo, depois de uma cervejinha, um vinhozinho, é gostoso para ter ideias. Escrevo sem muito compromisso, se não ficar bom, dane-se. Aí, de manhã seleciono, edito, etc. Não tem mistério, o dia tem vinte e quatro horas só, não tem como inventar muito. Você também tem que comer, dormir, namorar, etc.

A origem de Pornopopéia
Era um conto que eu já tinha escrito há um tempo e que entraria no Umidade, que lancei em 2005. O editor Luiz Schwarz, da Companhia das Letras, às vezes edita, ele mesmo, os seus autores. Como foi ele quem editou o Tanto faz, pela Brasiliense, quando fui fazer esse livro de contos, ele pegou os textos e editou. Imagina, o cara deve ser ocupadíssimo, para mim foi uma grande honra ter o dono da editora fazendo a edição do meu livro, lendo os contos, comentando. Esse conto era um deles, era sobre uma grande suruba, uma orgia que se passa num centro de estudos neo-brâmanes, que o cara chama de surubrâmane. Um conto em que um cara chega para assistir a um recital de cítara de um amigo e, quando ele percebe, está pelado e todo mundo trepando. O recital de cítara vai dar nisso. Aí, o Luiz Schwartz perguntou: “quem é esse cara, ele é só amigo do tocador de cítara? Isso aí não vai funcionar como conto, não tem começo e não tem fim”. Concordei e o conto não entrou no Umidade. Mas aí fiquei com aquilo na cabeça, então escrevi o começo e o fim. Fui trabalhando para trás e para frente, controlando isso e inventando, então, quem era aquele cara.

Personagem sem superego
Enquanto fiquei cogitando essa questão da trama, de dar uma lógica, uma substância para o personagem, fazer o cara ficar mais de carne e osso, pensei em um projeto que já vinha fermentando em minha cabeça há um tempo: fazer um personagem sem superego. Um cara que fizesse o que passasse pela cabeça, tivesse uma existência puramente instintual, totalmente dessublimado, um cara que vai cumprindo uns papéis sociais, mas de uma forma totalmente delinquente, totalmente anárquica, que vai derretendo todos os vínculos com a sociedade, com a mulher, com os amigos, com a família, com o filho. Quer dizer, um personagem que reivindica uma liberdade para além de qualquer código moral, ético, mas que estivesse inserido em um contexto realista. Que não fosse um monstro. Não era esse tipo de ausência de superego que me interessava, era um cara que poderia ser qualquer um de nós, que está no trabalho, nas ruas, nos bares, um cara comum. Aí eu pensei: “puta, o cara que eu estou querendo fazer é esse fulano que está nessa surubrâmane”.

Mirisola
Um dos caras mais interessantes que li nos últimos anos é o Marcelo Mirisola. Ele escreveu Notas da Arrebentação, O herói devolvido, Fátima fez os pés para dançar na chopperia, entre outros. Foi o primeiro autor no Brasil, depois do Guimarães Rosa, que criou uma língua para escrever. Ele não escreve na minha língua, nem na sua. Ele tem uma sintaxe própria, reorganizou o léxico para dar outros sentidos a adjetivos e palavras. E tem uma visão totalmente anárquica e suicidaria, impossível de se domesticar. Meio difícil de ler também. Ele foi aplainando essa sintaxe, bota aforismos, cusparadas, tem umas abjeções sexuais, o avô que transa com o neto, pedófilos, mas aquilo também vai sendo diluído por uma levada quase filosófica na prosa dele.

Autores contemporâneos
Tenho muitos amigos escritores. Gosto muito do Antonio Prata, cronista maravilhoso, que conheço desde quando ele tinha três anos, filho do Mário Prata. É um Rubem Braga repaginado, modernizado. Como ficcionista, tem o Milton Hatoum. Conheci o Milton em 1979, quando eu estava escrevendo o Tanto faz e ele esquematizando o Retrato de um certo oriente, primeiro livro dele, que é fantástico. Mas não tão fantástico quanto seu segundo romance, Dois irmãos, que está no nível de Machado de Assis, fantástico, maravilhoso, uma prosa mais tradicional, mais discursiva, que não traz muita atenção para sua fatura, sua linguagem. É a estratégia contrária, fazer uma prosa que flua porque o interesse está em outro lugar. Ao contrário do Mirisola.

Processo criativo
Nunca fico escrevendo qualquer coisa para ver onde vai dar. Quero contar uma história, sempre tenho um núcleo. Aquilo pode virar qualquer coisa, pode virar um início de romance abortado, que depois vai virar um conto, ou o contrário. Mas sempre parto de alguma coisa que já está feita. Quer dizer, eu fiz alguma coisa antes, e depois utilizo. Gosto muito de mexer, fuçar. Você fica trabalhando todo dia numa coisa, as ideias vêm. Não tem jeito, as ideias vão atrás de você. Às vezes você vai fazer cocô, vem a ideia e senta ali do seu lado. Você está dormindo, olha para o lado, a ideia está lá. Às vezes você está transando, vem a ideia, você broxa. Você fica meio escravo.

Hiato na literatura
Eu não escrevia literatura porque não parava de escrever. Não escrevia literatura porque estava escrevendo novela, roteiro institucional, traduções, sempre com a bunda diante do computador, escrevendo para viver. Aí, virou o ganha-pão em várias modalidades. Virei aquele escritor de hobby. Passei muito tempo em que, quando tinha uma ideia saia correndo para os bares comemorar que tinha tido a ideia. Hoje, quando tenho uma ideia, corro para o computador e escrevo. Acho que é uma questão hormonal, têm menos hormônios me incomodando, me chamando para o crime. É só isso, na verdade. Escrever é uma coisa muito física, muito ligada à vida concreta. Você precisa de coisas mínimas: solidão, silêncio. Você não pode ter o coração aos pulos porque os credores estão dando picaretadas nas paredes ou porque sua mulher está dando para o vizinho. A realidade não pode estar querendo morder sua canela o tempo todo. Você tem que botar ela ali num cantinho. Tem que ter uma torre de marfim. Escritores descobrem a torre de marfim em vários lugares. Cervantes, por exemplo, na prisão de Madri, que não devia ser exatamente o Hilton Bangkok Balzac vivia perseguido pelos credores, sempre se escondendo em Paris. Baudelaire vivia perseguido por si mesmo, pela sua loucura total, ou por uma mulher que queria esfaqueá-lo. Escrever é naquela hora em que não tem uma mulher enfiando a faca em você. Você precisa ter esse momento. Precisa ter tempo, dinheiro. Tem que trabalhar, precisa ter um break. Outra coisa que é bom para escrever é estar vivo, tem que contar com isso. A hora que não tiver mais fica difícil, quer dizer, depende de uma psicógrafa.

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