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Grandes Entrevistas

 

Ronaldo Correia de Brito

Entrevista conduzida por Rogério Pereira, publicada no jornal Rascunho, de novembro de 2011

No dia 23 de setembro, o Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep — recebeu o escritor RONALDO CORREIA DE BRITO. Nascido em Saboeiro (CE), em 1950, ele é médico, dramaturgo e escritor. Autor dos livros Faca (2003), O livro dos homens (2005), Retratos imorais (2010), entre outros. Seu romance Galiléia (2008) ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura e foi traduzido para o francês e o espanhol. Para o teatro, escreveu Baile do menino Deus, Bandeira de São João e Arlequim. Na conversa — uma edição especial do Paiol Literário na VIII Bienal do Livro de Pernambuco — mediada pelo jornalista e editor Rogério Pereira, Ronaldo Correia fala sobre sua trajetória como leitor e escritor, passando pelos anos de escriba no sertão do Ceará e pela juventude imersa nos livros a uma opção consciente pela palavra escrita, feita da “busca pelo veio mais puro” e influenciada tanto pelo mundo arcaico do Sertão quanto pelo contemporâneo. Leia a seguir os melhores momentos do bate-papo.

Preencher as faltas
Por que a literatura é importante? Porque nós temos que ler. Eu não concebo minha vida sem os livros, não a imagino. Rebeca, personagem de Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão, anda com um baú com os ossos da família. Acho que os livros são os meus ossos. Sempre estou arrastando uma bolsa ou alguma caixa ou alguma coisa com livros. Os livros são uma presença física, uma extensão minha. Os livros podem preencher todas as faltas na nossa vida. A nossa história pessoal é muito incompleta, é muito fragmentária, é muito cheia de hiatos e buracos. A minha, por exemplo, tem um verdadeiro buraco negro, que além de ser grande, é também um sumidor, onde muita coisa é consumida, onde muita coisa desaparece. E ânsia, nunca preenchida. Acho que os livros podem ocupar esse lugar da falta. Eles vêm justamente para dar essa completude à minha história fragmentária no que ela tem de pedaço, no que ela tem apenas de retalho. A literatura pode — na vida de qualquer indivíduo, não apenas na minha — ocupar esse espaço, preencher esses buracos, essas faltas.

Diplomação de leitor
É muito curioso como a gente é cooptado para a literatura. Como é que a leitura nos pega? Meus pais na minha formação. Ambos são fundamentais para me fazer gostar dos livros. Mas as histórias do meu pai são talvez as mais pungentes, as mais tristes, porque o irmão mais velho dele pôde se alfabetizar, e lia. No entanto, ele não pôde freqüentar a escola, ele não conseguia ler. Meu tio — ele se chamava Raimundo Leandro — saía à noite para namorar na cidade e quando voltava, chegava no cavalo e o cavalo precisava ser levado para o pasto. O pasto era muito longe — eu conheci essa fazenda e sei o quanto era longe. Meu pai era um menino, era bem mais novo, e se submetia a levar esse cavalo numa distância enorme, a tirar os arreios do animal, tirar a sela, ter todo esse trabalho, soltar no pasto, depois voltar. E o ganho era que meu tio lesse alguns livros para ele, algumas histórias. Então, o que fazia meu pai, um homem do campo, um trabalhador do campo, um jovem que vivia o dia-a-dia da roça, de montar animais, de limpar arroz, de pastorar gado, o que o fazia desejar ler os livros ou escutá-los? O que é isso? Que falta é essa, que desejo é esse, que vontade é essa? Minha mãe vem ser professora na fazenda do meu avô e meu pai se apaixona, com dezenove anos, por ela, a professora. Minha mãe se apaixona pelo meu pai, os dois têm dezenove anos, casam e vão morar no sertão. Minha mãe leva uma caixa de livros, com gramáticas, livros de história, de geografia, de matemática. E tem um livro chamado A história sagrada. Então, meu pai começa um projeto pessoal de educação nos livros. Estuda aritmética, estuda geografia. Uma das lembranças mais marcantes que tenho do meu pai é ele acender, no início da noite — o que nós chamamos “na boca da noite” —, um candeeiro, colocar em cima de uma mesa, sentar com os livros, e o dia amanhecer e ele levantar, lavar o rosto e começar o trabalho. E passar a noite toda lendo — toda a noite lendo. Então, meu pai tem todo esse processo de autodidatismo. E você sabe que todo filho deseja um pouco ser como o pai. Então, queria também ser tão leitor quanto meu pai. Tanto que a minha diplomação de leitor acontece quando leio esse livro da família — A história sagrada, um livro que era sempre lido. Meu pai escolhe um trecho de José do Egito e manda que eu leia em voz alta para a família E eu leio, e aí ele me diz: “Olhe, você, a partir de hoje, não precisa mais que eu leia para você. Você já é um leitor. Você já sabe ler”. Eu tinha sete anos. A partir daí, minha vida começa.

Formação despedaçada
Nós morávamos no sertão. Era o sertão do Ceará, talvez um dos mais inóspitos do Brasil, o Sertão dos Inhamuns. Eu chego ao Crato com cinco anos porque meu pai teve a brilhante idéia de que “bom, esses meninos são inteligentes” — já éramos quatro filhos — “eles precisam ir embora, não vou criar meus filhos para a cangalha, eles não vão criar gado, não vão plantar, a terra não tem mais futuro, eles vão ser todos médicos, advogados, militares”. Essa era a idéia dele. No Crato, então, começo a freqüentar as bibliotecas municipais, que eram muito precárias. Imagine que o que havia de melhor na biblioteca municipal e na da diocese era Grandes romances do cristianismo. Meu Deus! Era muito sangue, muito martírio, muito drama. Era Perseguidores e mártires, Quo Vadis, Papai Fallot, Lucíola, A cabana do pai Tomás… Aí, então, o que acontece: começo a freqüentar a biblioteca de um primo e leio, de cara, toda a obra de Machado e de José de Alencar. Aconteceu uma coisa dramática: nunca mais consegui ler Machado de Assis nem José de Alencar. Ainda leio os contos de Machado. Mas nada mais. Porque li tudo, tudo mesmo, até os quatorze anos. Bom, aí leio toda a obra de Monteiro Lobato, continuo lendo tudo o que tem nessa biblioteca municipal e na diocese. Depois alguém resolve me apresentar à biblioteca da universidade. Então, com treze para quatorze anos, tenho acesso à biblioteca da universidade do Crato. Aí, posso ler os clássicos. Começo a ler Shakespeare, começo a ler os tragediógrafos, começo a ler Homero, começo a ler a literatura clássica. Tem uma história que está em Galiléia que todo mundo pensa que é piada, mas é verdade. Meu primo tinha uma biblioteca na fazenda. Era uma biblioteca imensa, imensa, da mais alta qualidade. E era um lugar onde eu passava de três a quatro meses todo ano. Só que nessa biblioteca, todos os livros eram parcialmente comidos pelas traças e pelos cupins. E de fato, a minha formação se faz lendo esses livros em que eu nunca soube do começo, nem do meio, nem do fim. Eu lia pedaços de livros. Então, minha formação é completamente despedaçada. Se eu já sou um indivíduo dado aos fragmentos — Retratos imorais é um livro de vinte e dois fragmentos de contos, é uma piração —, é porque na verdade acho que a minha formação culta, a minha formação erudita, ela se dá de início dessa maneira.

Ler como Borges
Acho que eu buscava certo deslumbramento. Buscava talvez compreender o que era incompreensível, traduzir o que era intraduzível. Havia coisas que eram incompreensíveis, que só o livro poderia me dizer, que só o livro poderia me explicar, só o livro me colocava naquele lugar. Eu era um menino muito fantasioso, talvez muito inadaptado ao mundo, e, dentro dos livros, eu encontrava meu mundo, minha possibilidade. Eu lia pelos mesmos motivos por que Jorge Luis Borges dizia ler. Ele lia porque sentia prazer em ler. Eu amava os livros. Eu adorava estar com os livros. Existe uma palavra que acho que só existe no Ceará. Chama-se farne. Farne ou farnizim. É um prurido, é um exército de formigas percorrendo o teu corpo, é uma coceira, é uma inquietação, é um prazer, uma alegria que dá vontade de você esfregar as mãos e os pés e gritar e rir porque você não sabe o que é aquilo. Era o que eu sentia com os livros. Eu adorava os livros.

O escriba
Conversando com Avelina [sua esposa], cheguei à conclusão de que sempre tive um projeto de escritor — adiado, mas sempre tive. Sempre soube que seria escritor. Começo como escritor muito, muito cedo. Minha mãe era professora e nós vivíamos num mundo muito iletrado, num mundo de pessoas que não sabiam ler e escrever. Então, a nossa casa ficava cheia de pessoas, de todos os lugares, sobretudo do interior, que vinham pedir para escrever cartas. Naquele tempo, muita gente viajava para São Paulo, Brasília, Fortaleza, Recife, e não havia telefone, não havia e-mail, não havia celular, não havia nada disso. A forma de comunicação realmente eram as cartas. Quando era um lugar mais perto, se mandava uma mensagem pelo rádio: escrevia-se uma mensagem, essa mensagem era lida no rádio, alguém ouvia e transmitia para aquela pessoa. Numa época mais remota, quando eu morava no sertão, os violeiros saíam com mensagens, sem saber nem onde iam encontrar aquela pessoa. O mundo onde nasci e me criei era muito medievo, era muito isolado do mundo. E aí o que acontece? A nossa casa passa a ser o lugar procurado para se escrever cartas. Minha mãe, além de todas as ocupações, tinha de escrever cartas para as pessoas. Então, tive que ocupar o lugar da minha mãe, porque ela era muito ocupada. Uma pessoa chegava e o método consistia no seguinte: a pessoa sentava de um lado da mesa e eu sentava com o papel, a caneta, uma caneta tinteiro, e dizia: “Diga, o que é que você quer que conte aqui na sua carta?”. Aí a pessoa botava para chorar: “Ah, meu filho viajou e ficou de mandar notícias e não mandou” ou “Meu marido ficou de mandar o dinheiro e esqueceu da gente, já faz tantos meses que não volta para casa”. Em suma: fazia um relato — num modo geral, dramático. Já havia uma técnica, um começo padrão e um final padrão. Escrevia a carta e ao final lia para a pessoa. Isso são os meus primeiros escritos. Começo como um escriba, realmente, como no Egito, como na Palestina, como na Mesopotâmia. Comecei muito cedo a ser um escriba. Depois começo a escrever cartas de pedido de casamento, de noivado, término de casamento, ameaça de morte — “Eu vou aí me vingar!” —, cobrança de dinheiro. Aí começo a escrever discursos, redações… Em suma, vou cada vez mais escrevendo para as pessoas. Na escola, começo a escrever os diálogos, que eram esquetes representadas. Eu era um dos grandes escribas do colégio, do grupo, vivia escrevendo. Aos 16 anos, com um colega, adapto Vidas secas, de Graciliano Ramos. A partir daí me torno dramaturgo. Depois começo a escrever meus próprios textos. Imagine que ousadia e que fracasso foi essa adaptação de Vidas secas para o teatro.

Buraco negro
Se há alguma coisa que define a minha intenção de escrita, é de fato tentar me livrar da memória. É fazer com que tudo se torne esquecimento. Esses livros, à medida que são escritos, vão se tornando estranhos a mim. Sinto uma quase agonia. Hoje, um professor do Rio de Janeiro, me pediu que mandasse uma versão antiga de um conto que está em Livro dos homens, porque ele está estudando na universidade com os alunos e quer fazer uma genealogia do conto chamado Brincar com veneno. Fui localizar uma versão bem antiga do conto e comecei a ler. Quando li três frases, achei aquilo tudo tão estranho a mim, não tinha nada mais a ver comigo. Rapidamente peguei, copiei, mandei para ele, e foi como se aquilo fosse algo que tinha que despachar para longe porque já tinha me deixado. Eu já tinha me livrado daquela memória. Então, escrever é uma maneira de tentar me livrar da memória. Só que a minha memória é terrível, ela não se esgota. Ela é esse buraco negro. Há muito que preencher. E estou sempre escrevendo, escrevendo, escrevendo, tentando me livrar dessa memória, mas ela me cobra muito. Me cobra demais. Acho que as pessoas que não têm memória são muito felizes.

Apenas leitor
Eu morava no Recife, na casa do estudante, e convivi num ambiente muito culto, cultíssimo. Um dia desses, fiquei muito impressionado — esse é um dos temas do meu novo romance — como nós éramos cultos aos 17, 18, 19, 20 anos. Meu Deus, como era possível? A gente sabia tudo de cinema, tinha lido tudo. Citava filósofos, poetas. A gente vivia delirando nesse mundo de literatura, poesia — era uma coisa absurda. Ia para a cidade universitária para ficar lendo Rilke em voz alta, aos gritos. Parecíamos uns doidos, uns doidos mesmo. Mas era completamente diferente dessa realidade de hoje, era muito, muito diferente. A gente vivia imerso. Talvez porque a repressão era muito grande e a gente escapava por aí mesmo, por esse caminho, por essa via. No nosso tempo de estudante, nós vivíamos num ambiente de muitos leitores. A gente vivia muito em torno dos livros, com os livros. Só estávamos amparados quando tínhamos pelo menos um livro debaixo de cada braço. Eu não sei se a Avelina, minha mulher, se apaixonou por mim ou pelo livro debaixo do meu braço. Acho que atualmente há muito interesse pelo livro, e há muito interesse pela figura do escritor. Acho que vamos chegar ao interesse real pelo livro, o gosto pela leitura. Porque ler implica no hábito da solidão, no hábito de estar só. Quando eu ia passar uns três, quatro meses na casa da minha avó, levava a minha caixa de livros. E era um tempo de ler, de estar só, mesmo, de não ser incomodado. De ninguém falar, de ninguém tocar em mim. Estava ali com os livros. Às vezes, tenho vontade de deixar de escrever, sinceramente. A coisa que mais me motiva a deixar de escrever é o gosto de ser apenas leitor.

Escritor rasgado
Eu fiz uma descoberta que outros filósofos também fizeram no século passado. Mas assim como um químico russo havia descoberto dezessete anos antes a Lei de Lavoisier, de que na natureza nada se cria, tudo se transforma, mas no entanto não a patenteou, há descobertas que você faz e que depois você as encontra ditas por outros escritores muito anteriormente a você, e é como se a partir daquele instante pudesse ser legalizado o seu saber, o seu conhecimento, a sua descoberta. É como se pudesse entrar numa ordem de legalidade. Descobri que a minha literatura teria que buscar uma via, que era a via do mito. Tinha que reencontrar a linguagem do mito. A minha contemporaneidade, o real com que trabalho, no entanto, é um real que remete sempre a uma matriz mais arcaica, que é essa matriz do meu saber arcaico, do mundo em que eu vivi, que é a mitologia. Hermann Broch faz essa descoberta em relação à poesia como única saída para a poesia da modernidade. Eu também fiz isso em relação ao conto, ao meu romance, ao meu teatro. Eu vivo meio rasgado de tanto abrir as pernas tentando avançar numa contemporaneidade e ao mesmo tempo não perder a minha relação com esse saber arcaico dentro do qual fui educado e que me remete sobretudo a uma ética, à busca do bem, que é o princípio da filosofia platônica.

Obsessão pela palavra
Descobri ultimamente que tenho preferido sempre mais escrever. Gosto de falar, mas tenho descoberto que prefiro escrever. Acho que quando escrevo, tenho menos chance de errar. E tenho menos chance de errar justamente porque posso corrigir obsessivamente. Posso corrigir, corrigir, corrigir… corrigir muito. E até nem publicar. Venho de um mundo de saber oral, do legado da palavra oral, em que tudo era transmitido oralmente. As bibliotecas eram bibliotecas humanas, eram saberes guardados dentro de indivíduos. No entanto, sei que hoje, numa opção consciente, numa opção mais amadurecida, tenho preferido a escrita, tenho gostado de ficar trabalhando a palavra. Então, se não encontrar a frase, não começo o livro. Se não encontrar o nome do personagem, não começo o livro, não começo o conto. Se não encontrar a palavra exata, sou capaz de ficar um dia, seis, oito horas, indo e voltando até encontrar aquela frase — aí eu sinto um alívio. Eu não sei o que é isso. É uma doença, é obsessão mesmo. Escrever é cavar. Você cava, cava, cava, cava… para ver se encontra lá no fundo o que você busca e para ver se você encontra sem falsificação, encontra o veio mais puro, o veio mais “descontaminado”.

Transtornado
Não sou um escritor satisfeito. Sinceramente, nunca estou satisfeito. É muito perigoso um escritor satisfeito. Sem dúvida nenhuma que você passa a mão naquilo que você fez, como quem afaga a cabeça de um filho. Acho que em parte você faz isso com a sua literatura. Mas o escritor deve manter o seu estranhamento em relação a sua própria obra. É fundamental que o escritor nunca deixe de estranhar o que fez, nunca deixe de estranhar o que criou, para que possa ser sempre um inquieto, ser sempre um transtornado em busca do transtorno.

Satisfação como escritor
Se pego um conto de Faca, o conto seria Faca. Acho que este conto, a construção dele, como experimento de linguagem, tudo é muito ousado como experiência de linguagem, porque é narrado em vários tempos, os tempos verbais mudam muito, o leitor fica inquieto, fica em desequilíbrio, fica numa situação instável e ele não cochila. Ele tem que estar muito atento para ler o conto. Em Retratos imorais, o conto Homem-sapo acontece em vários tempos narrativos. Preciso dizer que o personagem vai finalmente chegar à consciência de que só há um caminho, o caminho do sagrado, o homem tem que realmente buscar a Deus. Ele é um personagem que está caminhando para o sacrifício, é assassinado. Começo assassinando o personagem. Só que conto isso várias vezes. Até que o personagem, finalmente, na sua última morte, atinge a redenção que busca. Em Livro dos homens há um conto chamado Eufrásia Meneses, que é uma mulher sentada numa cadeira esperando o marido chegar e botando para dormir um filho. E ela pensa sobre o seu lugar de mulher, sobre o seu papel de mulher, e questiona esse lugar, questiona aquela sociedade masculina, questiona aquele mundo. Considero um conto muito ousado para um rapaz de vinte e poucos anos; ele é publicado quase quarenta anos depois de escrito. Então, eu já era assumidamente muito feminista; escrevo o conto na primeira pessoa, escrevo como se fosse uma mulher, falo dessa agonia de ser mulher. É um conto que me satisfaz muito. E em Galiléia, acho que Adonias é um personagem bem pós-moderno mesmo, um personagem perplexo, ambíguo, sofrido, um personagem que vez por outra quer resvalar para um caráter duvidoso, mas no entanto ele é salvo pelo sofrimento, é um personagem que sofre, sofre, sofre. E a literatura se faz com sofrimento. Com silêncio, com sofrimento. Acho que ele tem essa lição para a literatura, o seu sofrimento.

Literatura de risco
O romance possibilita você tratar com personagens. Descobri agora no meu novo romance. Há um personagem que eu pude ir com ele: ir, ir, ir, ir, longe. Pude ver que o conto não possibilita isso, e isso me deu tristeza. Pude ver que no romance você pode fazer viagens, grande viagens verticais — para cima, para baixo, para os lados —, com os personagens. O que nem sempre é possível no conto. Daí porque o conto precisa dessa concentração. Ele é tão conciso, ele é tão uma paulada — na cara —, que o leitor tem que estar firme para segurar e para poder captar o que o conto quer dizer. No romance, não, você pode divagar, manter uma atenção divagante, não ler, esquecer, ir adiante, pular páginas… E é o personagem que ajuda nessa viagem. Mas no conto, não. Você não pode perder tempo. Nem o leitor pode perder tempo. Ao mesmo tempo, no romance ou num conto, trabalho com a história narrativa, me é fundamental contar boas histórias. Tenho um projeto de linguagem; sou um escritor que está sempre inventando coisas com a escrita. Por exemplo: Retratos imorais são vinte e duas narrativas, são vinte e duas experiências diferentes com a forma narrativa. Estou sempre inventando modos de narrar, modos de desequilibrar o leitor. Acho que, além de contar uma boa história, gosto de experimentar com a linguagem, gosto de puxar o tapete do leitor, gosto que o leitor pense que vou por ali — e eu vou por acolá. Por exemplo: quem for ler meu próximo romance pensando que lerá Galiléia, se enganará. É um livro que não tem nada a ver com Galiléia. Gosto de correr risco, gosto muito de correr risco. Escritor tem que correr risco. A coisa mais perigosa é o escritor que descobre truquinhos, certos truques, e fica permanentemente apostando naqueles truques.

Clássicos e contemporâneos
Leio permanentemente os mesmos autores. Tenho uma parte da minha biblioteca que está sempre ali. Sempre leio Whitman. Se estiver triste, leio Whitman para me exaltar um pouco. Se estiver muito exaltado, leio Whitman para me acalmar. Sempre leio os russos, sempre. Permanentemente leio Tolstói, Dostoievski, leio Gogol, leio Tchekhov. Gosto sempre de ler Faulkner. Leio alguns filósofos sempre, alguns ensaios sempre, alguns ensaios críticos sempre. Há alguns poetas que leio muito. Borges é um escritor que sempre leio, e com muita surpresa. Gosto de ler o mesmo conto vinte, trinta, quarenta, cinqüenta, cem vezes se for preciso. Antigamente todo ano lia Os irmãos Karamazov, de Dostoievski. Mas leio autores contemporâneos, leio sim. Acabei de ler o novo livro de contos de um autor ultrajovem chamado Altair Martins. E que alegria ler este rapaz. Conheci Altair porque por acaso ganhei o livro dele, A parede no escuro, e quando terminei de ler, achei impossível que um rapaz tão jovem pudesse ter escrito um romance tão bom, e li uma segunda vez para constatar se de fato havia um rapaz que escrevesse tão bem — e havia. E agora ele me mandou o seu livro de contos para eu escrever a orelha. E fico empolgado. Chego e digo: “Olha, vocês têm que ler esse autor. Vocês têm que ler esse conto. Olha, leia um trecho”. Desperto as pessoas para ler. Acabei de ler um livro de contos [Ficção Interrompida] de um cara que conheço como um curador de fotografia, e o livro dele é fantástico, um cara chamado Diógenes Moura. Gosto de descobrir. Recebo muitos livros de autores jovens, e eu quase sempre leio — leio, se não leio todo, leio uma parte, escrevo, respondo, acho muito importante para mim.

Grandes dramas
Não suportaria a literatura na minha vida sem o exercício da medicina. De modo algum. Tanto que já poderia me aposentar e sei que não vou me aposentar nunca da minha profissão de médico. Não vou, é uma decisão já interna, toda vez que penso nisso, entro em depressão. Não consigo, não consigo. Gosto de ser médico. Medicina para mim não é um emprego, é uma escolha de vida. Sei exatamente o dia na minha vida em que escolhi ser médico. Sei que passei a noite sem dormir, que passei a noite apavorado. E eu queria dizer uma coisa, talvez a coisa mais sincera que pudesse dizer: todo dia, quando eu entro no hospital, o grande aprendizado diário é ver que a minha vaidadezinha, as minhas conquistazinhas, essas coisinhas, todas, elas são insignificantes diante dos grandes dramas, dos grandes sofrimentos, da grande miséria que acompanho diariamente, de grandes, grandes dores. E nisso lembro exatamente de uma passagem de Crime e castigo, de Dostoievski, quando Sonia conta a história dela e Raskolnikov, que está no auge do delírio pelo crime que havia cometido, começa a chorar e se ajoelha aos pés de Sônia, e chora. E ela não entende, ela é uma prostituta, e não entende como ele pode se ajoelhar aos pés dela. Aí ele diz: “Eu, na verdade, me ajoelho diante do grande sofrimento humano”. Então, embora eu tenha que também administrar dramas sujos, grandes problemas políticos, grandes questões administrativas, todo dia uma história me é contada. Todo dia. E posso todo dia cuspir nessa vaidadezinha, mas dar uma cuspida mesmo, com gosto, aquela cusparada mesmo, e posso me ajoelhar diante de algum drama muito maior do que o meu. Muito, muito maior do que o meu.

Processo de escrita
Sou um escritor muito disciplinado. Trabalho todo dia, inclusive sábado e domingo. Sou uma pessoa extremamente disciplinada. Se disser “Dia 30 de setembro vou fechar a primeira cópia do meu romance, o primeiro tratamento”, dia 30 de setembro imprimo a primeira cópia do meu romance. Sou uma pessoa extremamente determinada. Tenho um projeto, tenho uma idéia. Trabalho muito com as técnicas que aprendi no teatro. Trabalho com uma coisa que se chama “memória de personagem”. Por exemplo, Adonias [do romance Galiléia]. Ele, como personagem, tinha uma caixa que podia ter vinte, trinta, quarenta páginas. Às vezes isso pode ser em si já um romance. Acho que Davi chegou a ter nessa caixa umas oitenta ou cento e vinte páginas. Davi, de Galiléia, era um personagem tão importante que a primeira cópia que tirei se chamava Davi entre as feras. Depois foi que virou Galiléia. E Davi foi um personagem que foi perdendo significado, foi perdendo, perdendo, e eu fui cortando, cortando, cortando. Galiléia era um romance que ia ter 500 páginas, e terminou com 236 páginas. Eu escrevo muito. Às vezes, escrevo um dia todo, escrevo horas e horas e horas, e nada daquilo entra na estrutura central do romance. No entanto, estive labutando com o meu personagem. Stanislavski usava uma técnica que era mandar o ator trazer elementos do personagem: roupas, óculos, sapatos, comida: tudo que ele imaginasse que pudesse construir a memória do personagem. Então, tenho que trabalhar memórias para aquele personagem. É uma maneira do personagem não ser raso. É um modo de o personagem ter profundidade. Então, há coisas que Adonias não faz, como há coisas que Ismael não faz e há coisas que Davi não faz. Isso me toma muito tempo, me toma muito tempo mesmo. E é um método. Mas a literatura é um exercício de cura, é um exercício de saúde. Na verdade, todo escritor é um grande histérico, só que ele é um histérico produtivo — ao invés de ele produzir sintomas, ele produz literatura, produz livros. Ainda bem, porque quando ele produz sintomas é um horror.

Aos jovens escritores
Bom, o primeiro conselho é clássico: leia, leia, leia, leia… Se um dia sentir vontade de escrever, escreva. Às vezes, você senta uma hora, duas horas, três horas diante do computador e não sai nada, ou você escreve meia página e deleta porque é muito ruim. Às vezes, quando você não consegue escrever nada, você se levanta e dança — saia pulando, entendeu? E pode ser que desça o Santo, pode ser que baixe.

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