O centenário de Rubem Braga
por Jorge Fernando dos Santos
Este ano o Brasil comemora o centenário de nascimento de Rubem Braga. O sabiá da crônica, como foi chamado por Stanislaw Ponte Preta, era Capixaba de Cachoeiro do Itapemerim. Nascido em 12 de janeiro de 1913, ele foi acima de tudo um grande jornalista, cujo texto poderia ter feito escola. Publicações literárias e eventos artísticos estão programados para celebrar a data (*).
Braga saiu de sua terra natal ainda menino, depois de um desentendimento com o professor de Matemática, que o chamara de burro. Foi estudar no Colégio Salesiano de Niterói e iniciou os estudos de Direito ainda no Rio de Janeiro, vindo a se formar em Belo Horizonte, em 1932.
Naquele mesmo ano, começou a carreira jornalística no extinto Diário da Tarde e cobriu a Revolução Constitucionalista pelos Diários Associados. No front da Serra da Mantiqueira, conheceu personalidades como Juscelino Kubitschek e Adhemar de Barros. Em 1936, ainda em BH, casou-se com Zora Seljan – de quem mais tarde se desquitou – mãe de Roberto Braga, seu único filho. No mesmo ano, publicou o primeiro livro, “O Conde e o Passarinho”, pela Editora José Olympio.
Ao lado de Joel Silveira, Braga foi correspondente de guerra do Diário Carioca. Tal experiência resultou no livro “Com a FEB na Itália”, de 1945. De volta ao Brasil, ele morou nas cidades de Recife, Porto Alegre e São Paulo, até se fixar no Rio. De temperamento combativo e jeito turrão, exerceu as funções de repórter, redator e editorialista, sendo preso mais de uma vez durante o Estado Novo.
Diplomata e dono de editora
No governo de Jânio Quadros, Braga foi nomeado embaixador no Marrocos, mas não se adaptou às funções diplomáticas. Sua vocação era escrever e parece que só isso o satisfazia. Foi também funcionário da TV Globo, a convite do amigo Edvaldo Pacote, segundo o qual "escrevia todos os textos que exigiam mais sensibilidade e qualidade, e fazia isto mantendo um grande apelo popular".
Homem de visão pioneira, o cronista fundou em 1968, com os mineiros Otto Lara Resende e Fernando Sabino, a Editora Sabiá. Esta revelou o talento de Oswaldo França Júnior para o romance e lançou no Brasil os latino-americanos Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges e Pablo Neruda.
Dono de um estilo pessoal, que só encontra concorrência nas crônicas de Machado de Assis, Braga escrevia “para ser publicado no dia seguinte”. No entanto, seus textos se perpetuaram pela objetividade, simplicidade de estilo, humor e caráter poético. Também fazia versos, embora seu único livro de poemas tenha sido publicado após a sua morte.
Ele morreu na noite de 19 de dezembro de 1990, no Hospital Samaritano, no Rio, vítima de parada respiratória em decorrência de um câncer de laringe do qual se recusou a tratar. Dois dias antes, reunira os amigos mais próximos, entre eles Otto Lara Resende e Moacyr Werneck de Castro, em sua famosa cobertura da Rua Barão da Torre, em Ipanema, onde cultivava árvores frutíferas. Na despedida, avisou que morreria sozinho, como sempre gostara de viver.
Estilo nobre e insuperável
As mais de duas décadas de ausência do mestre da crônica deveriam servir de mote para a reflexão daqueles que hoje preenchem as páginas dos jornais com textos apressados, pretensamente chamados de crônicas. Como poucos, o "urso" sabia mesclar elementos do jornalismo com a literatura, essência de verdadeiros cronistas, como seus contemporâneos Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues – para citar apenas alguns.
Sua passagem pela redação do Diário da Tarde, bem como sua relação com o jornalismo mineiro que lhe serviu de escola, também deveriam inspirar eventos que pudessem resgatar sua presença em Belo Horizonte.
Segundo o crítico literário Afrânio Coutinho, a marca registrada da obra de Braga é a "crônica poética, na qual alia um estilo próprio a um intenso lirismo, provocado pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados de alma, pelas pessoas, pela natureza".
(*) EVENTOS PROGRAMADOS
Exposição de livros
- De segunda a sexta-feira, das 8h às 19h, até 28 de fevereiro, na Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo (Avenida João Batista Parra, 165, Praia do Suá, Vitória). Entrada Franca
Publicações
- O Grupo Editorial Record prepara uma programação especial ao longo deste ano, com antologias, edições em capa dura e novas publicações. Destacam-se a edição especial de “200 Crônicas Escolhidas” e “O Lavrador de Ipanema”, seleção de textos que revelam a paixão do cronista pela natureza.
- A Editora José Olympio lança “Retratos Parisienses, 31 textos inéditos em livro”, sobre personalidades como Matisse e Sartre, escritas no período em que Braga foi correspondente em Paris. E relança “Na Cobertura de Rubem Braga”, do jornalista José Castello.
- Para as crianças, será lançado “O Menino e o Tuim”, pelo selo Galerinha.
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Jorge Fernando dos Santos Jornalista, escritor e compositor, tem 40 livros publicados, entre eles as novelas Palmeira Seca, Sumidouro das Almas e 'Primavera dos Mortos', todos pela Atual Editora
RUBEM BRAGA
Entrevista de Beatriz Marinho, publicado n'O Estado de São Paulo, de 24/10/1987.
Apresentação:
Mesmo no Rio de Janeiro, essa não é uma cena comum: na cobertura de um 22º andar, em Ipanema, crescem coqueiros, pitangueiras, abricós de praia e um cajueiro. Junto ao pomar suspenso, há redes de diferentes cores que balançam com a brisa do mar. O apartamento já foi ponto de encontro da intelectualidade ipanemense, carioca, brasileira, internacional, e ainda hoje é muito visitado. Seu dono, Rubem Braga, 74 anos, conversou ali muitas vezes com Fernando Sabino, José Carlos Oliveira, Sérgio Porto, Paulo Mendes Campos, Clóvis Graciano, Pablo Neruda, Santa Rosa e Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.
Os personagens mudaram um pouco, o clima já não é tão festivo, mas o "Velho Braga" continua sendo o mais popular cronista brasileiro, primeira figura de uma época de ouro do jornalismo brasileiro, que ele preservou em livros diversos. Os cabelos estão brancos, mas continuam ondulados e fartos. Rubem é agora, segundo seus amigos, menos falante que outrora, mas é ainda o bom “causeur” de sempre, bem-humorado e um pouco cético quando fala de si próprio. Morador solitário da cobertura que domina de longe o mar de Ipanema, divide agora com trabalhos avulsos para a imprensa a aborrecida tarefa de lidar com problemas domésticos, como buscar a melhor iluminação para este ou aquele canto do apartamento.
O coração já não deixa que Rubem Braga seja boêmio de outras épocas, mas ele pode ser encontrado num ou noutro bar e restaurante de Ipanema e Leblon sempre cercado de amigos e admiradores. Involuntariamente, por isso, acaba sendo notícia, não apenas literária mas também de coluna social. Mas é em casa que ele gosta de passar a. maior parte do dia, sempre em sua cadeira predileta, às vezes respondendo a perguntas como agora, a voz rouca e os olhos apertados com frases curtas, quase tímidas. Nesta entrevista, Rubem Braga fala de 40 anos de atividade jornalística, naquele tom que mistura o sério e o brincalhão, o simples e o profundo e que deu fama e imortalidade à sua crônica.
* * *
- Como foi seu encontro com o jornalismo?
É uma longa história. Saí de Cachoeiro porque fui expulso da escola depois de uma encrenca com um professor. Como tinha de continuar estudando, tentei sem sucesso a transferência para o Rio, mas só consegui matrícula no Colégio Salesiano, em Niterói, onde terminei o curso secundário. Matriculei-me depois na Faculdade de Direito do Rio, mas continuei o curso Belo Horizonte, onde meu irmão mais velho, Newton, tinha ido morar porque estava – como se dizia naquela época - "fraco do peito". Meu irmão era mais adiantado do que eu e foi colega de Tancredo Neves, Ciro dos Anjos e Guilhermino César. Quando Newton voltou para o Espírito Santo me deixou de herança o emprego no "Diário da Tarde", da Cadeia Associada, que existe até hoje. Fui ficando por Belo Horizonte, conclui o curso de Direito, mas nunca usei meu diploma.
- Você se descobriu imediatamente cronista?
Fiz crônica desde Cachoeiro do Itapemirim, mas a especialização ficou por conta da necessidade de ganhar um pouco mais, porque jornal sempre pagou pouco. Depois, com a crônica não precisava ir tanto ao jornal, pegar no pesado. Fiz dela uma espécie de rede particular, escrevendo várias para diferentes jornais. Certa vez, passei dois meses em Buenos Aires mandando crônicas e reportagens para os grandes jornais do Rio e de São Paulo, que me pagavam um tanto. Não era muito, mas dava para viver.
- Seu primeiro front foi a Revolução Constitucionalista. Como foi sua estréia na guerra?
Desastrosa. Fui para a frente governista da Serra da Mantiqueira, escrevendo para um jornal da oposição. Era só um repórter e, naquelas circunstâncias, limitavame aos fatos. Mas fui preso assim mesmo e devolvido a Belo Horizonte. No final de 1933, segui para São Paulo na raça,. sem conhecer ninguém, e arranjei um emprego nos "Diários Associados". Procurei o próprio Chateaubriand e ele me deu o emprego depois de se informar sobre mim. Fiquei trabalhando no "Diário de São Paulo", fazendo crônica como sempre para aumentar o orçamento. Era difícil arrumar assunto todo dia, trabalhava feito um desgraçado
- Você era constitucionalista?
Eu era antigetulista, contra aquela transição que não acabava mais desde a revolução de 1930 e tinha simpatia pela causa: meu pai era paulista. Os paulistas é que não queriam nada comigo. Morava numa pensão, da qual fui praticamente expulso sob a acusação de "nortista", naquela loucura de sentimento xenófobo paulista. Um dia pedi um ovo frito e me disseram que não tinha, enquanto serviam o sujeito ao lado de omelete. Não sabia porque, já que meu aluguel estava rigorosamente em dia. A causa era pensarem que eu era "nortista". Certa vez, de brincadeira, escrevi um artigo dizendo que meu avô fora "bandeirante". Antoninho de Alcântara Machado, um paulista quatrocentão, e o Oswald de Andrade acharam muita graça e ficaram meus amigos a partir disso, mas o Mário de Andrade passou a implicar comigo, pelo mesmo motivo. Ele tinha a essa altura uma grande paixão pela causa paulista, o que revelou em várias crônicas. Uma delas falava de sua viagem de avião sobre o "chão paulista", sobre a "terra paulista", sobre "as nuvens paulistas". Mário era crítico de música do "Diário de São Paulo", já era um sujeito muito importante e eu era até fã dele. Mas nunca cheguei a revelar isso porque o homem não queria me ver nem pintado.
- Você foi talvez o jornalista mais itinerante de sua geração. Era inquietude, mera contingência profissional ou outro tipo qualquer de necessidade? Política por exemplo?
Salvo quando fui para o Exterior, a partir da II Guerra, saí do Rio ou de São Paulo sem querer realmente. Em 1934 ou 1935, já não lembro bem, vim para o Rio a convite de Antoninho Alcântara Machado, que era deputado federal, e foi convidado pelo Chateubriand para dirigir o melhor vespertino carioca de então, o "Diário da Noite". Vim de lá para o "Diário de Pernambuco", no Recife, por causa do Tristão de Athayde. Nossa, como aquele homem era fanaticamente reaconário! Há pouco tempo, li num artigo do Gilberto Freyre que constava a recomendação pessoal do Tristão para a Polícia verificar "se não havia comunista" num congresso sobre negros organizado no Recife pelo sociólogo. Alceu era um grande líder católico e tinha em "O Jornal" a "Coluna do Centro", onde cada dia escrevia algum figurão católico. Pois bem, ele mandou uma carta ao Chateubriand ameaçando retirar a coluna caso eu continuasse escrevendo para o jornal. Tudo porque não gostara de uma crônica que eu tinha feito, ou não gostara de nenhuma outra anterior que eu tinha feito. Essa carta me, foi mostrada sigilosamente pelo secretário de redação, que, por sinal, não publicava nada meu sem antes submeter ao Chateubriand. Lógico que o Chatô reclamou, sem citar a fonte é, claro. Eu já ia embora porque não tinha como brigar com aqueles pesos-pesados, mas o Dario de Almeida Magalhães - então diretor do jornal - resolveu contemporizar sugerindo minha transferência para Minas ou São Paulo. Recusei, e ele deixou a opção entre Porto Alegre e Recife. Preferi a última porque não conhecia o Nordeste. Mais tarde, trabalhei também em Porto.Alegre. Não era esse trabalho atual de representar o jornal em outro lugar, era rotina de batente duro mesmo.
- Havia muita diferença entre o jornalismo da capital e das províncias?
O sonho de todo mundo era vir para o Rio de Janeiro, mas eu me acostumei nesse vaivém. Havia tabém peculiaridades regionais interessantes que jamais conheceria se não fosse um itinerante. No "Diário de Pernambuco, por exemplo, nunça havia sido noticiado um suicídio, mesmo quando falavam da morte de alguém por essa causa. Fui autorizado a noticiar um pela primeira vez na hist6ria da vida do jornal, que é dos mais antigos do continente. Esperei alguns suicídios de pobres, de velhos e de doentes, até que noticiei discretamente, mas com foto, o de uma moça da sociedade. Foi um impacto inimaginável. Não fiquei muito tempo no jornal depois disso, de qualquer forma.
- Sua fase política começou aí?
De forma mais marcante, sim. Aquele era o momento da Aliança Nacional Libertadora (ANL), ligada ao Partido Comunista, e fui procurado para fazer um jornal diário: "A.Folha do Povo". Andava chateado com os Associados e topei fazer aquele jornal vagabundíssimo, de quatro páginas, todo à mão, mas. só fiquei lá dois meses. Fui convidado para a "Exposição Farroupilha", de Porto Alegre, para a qual todos os jornais do Recife foram chamados também pelo governo estadual. Os gaúchos deram até um dinheirinho para as despesas, mas a Folha era tão pobre que embolsou a maior parte e só me deixou uma bobagem. Na volta, preferi ficar no Rio trabalhando num jornal das esquerdas chamado "A Manhã". Eu era de esquerda, mas nunca fui do Partido Comunista, mesmo que ele fosse a face mais avançada de oposição à ditadura, na ocasião. Fiquei no jornal até novembro de 1935, quando ele foi fechado por causa da chamada Intentona. Estava para ser preso e me escondi na casa de um fazendeiro protestante, no Grajaú. O Rio era uma cidade diferente, rarefeita, tudo muito distante e com meios de comunicação precários, e por isso não tive dificuldades em me esconder. Só seria preso se houvesse denúncia detalhada, como foi o caso do Prestes. Já tinha sido preso no Recife, não gostei da experiência e tampouco estava disposto a repetir a dose. Mesmo porque, na época, estávamos em pleno trabalho da Constituinte de 1934 e qualquer prisão era rebatida com um discurso em plenário. Em 1935 não havia essa conversa.
- Indo de um lugar para outro, você não se fixava em nenhum emprego. De que vivia então?
O fato é que eu não fugia o tempo todo, e entre uma ameaça e outra dava para viver normalmente. Em 1936 fui para Belo Horizonte onde me casei. Em 1937, a barra começou a pesar realmente, e eu.ouvi o discurso de Getúlio Vargas anunciando o Estado Novo. Estava em São Paulo, na casa de Oswald de Andrade no último andar de um prédio da Avenida São João, perto da esquina da rua Aurora. O Sérgio Buarque de Holanda, recém-casado, estava lá também. Mudei-me novamente para o Rio e, depois, para Belo Horizonte, voltando mais tarde para São Paulo. De volta, encontrei Jorge Amado e combinamos com ele passar uma temporada em Estância, no interior de Sergipe. Jorge foi me esperar em Salvador e embarquei em Santos com minha mulher, Zera, e meu filho Roberto, ainda de colo. Era um navio francês que tocaria no Rio e em Salvador. Quando o navio chegou ao Rio fomos presos a bordo. Era o dia inesquecível do jogo Brasil X Itália na Copa de 1938. Estava numa sala de interrogatório com um detetive, e o rádio ligado como Gagliano Neto irradiando. Quando o Brasil perdeu, o detetive baixou a cabeça e começou a chorar desesperadamente, como uma criança. Foi ridículo estar ali naquela condição de preso, e ainda ter de providenciar consolo e água com açúcar para o policial amargurado, mas.não havia outro jeito porque o homem estava desmaiando
- Já era um hábito então ir para a prisão?
Tecnicamente nunca fui preso, só detido, embora na prática essa diferença não me convencesse muito. Fui preso e expulso de Porto Alegre em companhia de Moacir Werneck de Castro, sob a acusação de estar reorganizando ali o Partido Comunista. Uma vez, estava escondido da polícia, numa fazenda de Carlos Lacerda, no interior do Estado e soube, por uma rádio, da nomeação do novo interventor de São Paulo, Adhemar de Barros. Ele fora meu médico e era meu amigo desde que coloquei uma notinha sobre o livro de um conhecido seu num jornal em que trabalhava. Adhemar prometeu ajuda, recomendou que ficasse por perto e garantiu que, caso recebesse ordens, teria de agir, mas me daria antes uma semana de prazo para que eu fugisse.
- Por que você evitava entrar para o Partido Comunista?
Porque eu não era comunista e tampouco ligado nesse formalismo de pertencer a qualquer agremiação, não tinha muito a ver comigo. Minha mulher na época - Zora Soljan, com quem casei era do Partido. Muitas vezes a polícia ia buscá-la e acabava me levando junto. Depois, o Partido Comunista tinha umas coisas incompreensíveis. Houve um tempo em que era regido pelo célebre “Artigo 13", que obrigava seus membros a não falarem com pessoas, mesmo parentes, "que não fossem solidários com a causa". Muitos amigos deixaram de falar comigo por causa disso, outros nem ligaram. Eu achava uma bobagem toda essa rigidez, num ambiente aberto como o dos jornalistas, mas era assim. A exceção nesse meu comportamento independente foi o fato de ter fundado o Partido Socialista, com aquela famosa esquerda democrática que incluía Hermes Lima e João Mangabeira, dos quais era admirador e amigo. Meu parâmetro político sempre foi a oposição ao Getúlio, a qualquer ditadura ou também à falta de governo, como ocorreu com João Goulart ou com este que está aqui agora, tão enjoado. Recentemente, fui procurado pelo pessoal do Partido Socialista Brasileiro com um requerimento visando reativá-lo efetivamente. Fui lá e, apesar de ser da comissão fundadora - um negócio com mais de 40 anos -, avisei logo: "Quero cair fora " Estava lá toda aquela gente importante e estimável, como o Evandro Lins e Silva e o senador Jamil Haddad, mas muito solenemente pulei do estribo.
- Você lutou para ir à Guerra com a FEB?
Inicialmente, nem havia essa possibilidade porque a ditadura de Getúlio não queria mandar nenhum jornalista fora do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) para cobrir a FEB. O problema é que o ministro da Guerra, general Dutra, não gostava do diretor do DIP, Amilcar Menezes, e ao mesmo tempo era amigo dos diretores do Diário Carioca, um jornal pequeno mas barulhento e muito influente, onde eu trabalhava. O Horácio de Carvalho sugeriu ao ministro mandar um repórter para a Itália, O DIP esperneou o que pode, mas o Dutra decidiu enviar vários repórteres de jornais privados ao front. Fui convidado depois que o Otávio Tirso de Andrade desistiu de ir, porque se casara recentemente. O Joel Silveira foi mais tarde pelos “Diários Associados” – que já tinha mandado para Argel o seu comentarista internacional, Barreto Leite Filho. O Globo tinha enviado o Egídio Squeff e o Correio da Manhã, o Raul Brandão. Fui pensando fazer uma epopéia da guerra, mas fiz a crônica da guerra, que publiquei em livro.
- Muitos anos depois você voltou ao cenário da guerra. Como foi essa experiência e, afinal, de que forma sua participação como correspondente de guerra repercutiu no homem e no profissional?
Não saberia dizer como, mas de fato deve ter mudado muita coisa em mim, porque não é possível passar por alguma coisa como aquela impunemente. Mas voltei lá 20 anos depois, junto com o fotógrafo Luiz Manprin, num trabalho para a revista Realidade. Vi outra vez Monte Castelo, Porreta Terme, Castelnuovo, mas não fui a todos os lugares que queria, porque toda a região estava inundada por uma série de temporais. Havia lugares que gostaria de ter revisitado, regiões intocadas pelo tempo ou pelas mudanças do mundo e que nem mesmo a loucura da guerra conseguiu abalar, mas desses nem cheguei perto por causa das enchentes. Estive, porém, numa aldeia que tinha me impressionado muito na guerra, um lugar onde as pessoas se conheciam por gerações e gerações. Mesmo os refugiados não atrapalhavam muito a rotina, embora houvesse mais movimento ali naquela época do que se viu durante séculos. Mas visitamos uma casa onde o dono, que conheci na guerra, fazia seu próprio pão, queijo e vinho. Bebemos muito, ficamos emocionados, revi rostos que o tempo estragara um bocado, mas foi uma grande, uma inesquecível experiência.
- A volta ao Brasil reativou em você aquela velha intinerância, dessa vez voluntária...
Voltei para o Brasil logo depois do fim da guerra, porque aqui andavam acontecendo coisas importantes. Nesse tempo, o Aporelli, um grande humorista, e o Arnon de Mello, que era um organizador fabuloso, abriram o jornal "A Manhã", contratando cinco redatores que poderiam escrever parecido com o velho Barão de Itararé, que só cortava e ajeitava os textos. Lembro bem do Raymundo Magalhães ]r. e do José Lins do Rego, mas havia outros dois que a memória apagou. Era, de qualquer forma, um trabalho animado. Quando o Prestes foi solto, fui convidado a conversar com ele e explicar o pensamento dos oficiais FEB, com quem tinha estado na Itália, além de falar sobre a imprensa do País. Fui lá com um oficial chamado Costa Leite, mas tudo o que fiz foi ouvir o Prestes falar sobre sobre o “pensamento dos oficiais da FEB e da imprensa brasileira", naquele seu monólogo peculiar. Cheguei à redação e fui logo avisando para quem esperava novidades: "Não falei nada, só ouvi!" O Aporelli o visitou depois e voltou dizendo o mesmo: "Quem disser que foi conversar com o Prestes está mentindo. O sujeito vai lá ouvir o Prestes!" Apesar disso, quando o Prestes inventou aquele candidato - o Yedo Fiuza -, o Aporelli aderiu a ele e nós todos deixamos o jornal. Em 1947, consegui passar alguns meses em Paris trabalhando para O Globo, para onde mandava uma crônica diária. Cheguei em plena fase do Existencialismo e escrevi muito sobre esse movimento, mas amigo mesmo só fiquei do Jacques Prevert, um sujeito simples, simpático. Em 1950, voltei a Paris para viver um ano como correspondente do "Correio da Manhã". Tinha deixado para trás aquela mania de ir para Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, São Paulo. Essa troca por uma temporada em Paris foi um período maravilhoso, com o dólar muito favorável a nós, o que facilitava bastante a vida. O jornal me pagava um pequeno salário, eu fazia ainda um bico no Escritório Comercial do Brasil e vivia confortavelmente. Nessa fase conheci o Sartre, mas apenas ligeiramente. Quando desembarquei de volta na Alfândega, o tira que me atendeu me achou “um homem muito organizado”. Por incrível que pareça, sem perceber, tinha partido e voltado no mesmo dia, com um ano de diferença. Depois disso, trabalhando pela revista Manchete estivel algum tempo nos Estados Unidos – inicialmente para cobrir as eleições de Eisenhower – e, no Chile, onde fui chefe do Escritório Comercial de Santiago. Fui também embaixador no Marrocos e fiz inúmeras viagens de trabalho, ou com simples pretexto turístico.
- De que forma um cronista vira adido comercial?
O Jornalismo me proporcionou duas boas oportunidades na vida: essa do Chile e a Embaixada no Marrocos. O resto do tempo foi bastante duro. O Chile foi idéia do Café Filho, um grande amigo para quem fiz vários discursos e que, guinda à Presidência da República me chamou ao Catete com aquela história: “Quero que você me ajude muito!" Olhei para ele, presidente da República, e dissee: "Tem graça, você que me ajude, que a vida está difícil, estou cheio de dívidas!”. Ele riu muito, tinha certa intimidade comigo e me perguntou de que forma: "Emprego no Exterior ganhando em dólar", respondi. Disse mais: "Pode ficar tranqüilo que não vai faltar quem queira ajudar o presidente da República”. Havia esse posto vago no Chile e fui falar a respeito com um alto funcionário do Ministério. Ele pediu-me currícu1o e expliquei: "Sou amigo do presidente da República". Fui nomeado e me dei bem, porque já tinha prática de serviço no Exterior. Fiquei lá até que o Café largou a Presidência. O Juscelino queria que eu continuasse, mas voltei ao Brasil.
- E a Embaixada no Marrocos, como chegou a ela?
Fui a convite do Janio Quadros e do Afonso Arinos de Mello Franco. O governo do Jânio elevou à condicão de embaixador três jornalistas: eu, o Barreto Leite Filho – que foi para Israel - e o Raymundo Souza Dantas, designado para Gana. Conheci o Jânio quando ele ainda era prefeito de São Paulo, através de uma entrevista para a "Manchete", que ele elogiou muito. Mais tarde, quando era governador, voltei a entrevista-lo e novamente nos aproximamos. O Afonso eu conhecia há muitos anos, porque ele fora diretor de "O Estado de Minas", jornal onde trabalhei bom tempo. Na primeira entrevista que fiz com o Jânio, saí muito impressionado com a inteligência dele e especialmente com seu faro político. Era uma fase em que São Paulo se reencontrava com as obras públicas porque a prefeitura pagava em dia o que contratava, como nunca tinha acontecido antes. Assim, os empreiteiros não precisavam mais cobrar o preço real multiplicadamente e toda a iniciativa privada queria trabalhar mais e melhor para o governo. Além disso, o Jânio não fazia comícios sem antes se informar bem sobre os problemas mais urgentes do bairro em que ia falar. Quando chegava, citava nominalmente essas dificuldades, o que impressionava, porque era raro na época esse tipo de preocupação. Prometia, em seguida, que mesmo não tendo dinheiro usaria "o pouco que restava", fazendo uns 3 km de calçamento. No dia seguinte, sem falta, os empreiteiros estavam no local, o material de trabalho idem e o calçamento saía. incompleto, mas saía. Todo mundo ficava bem impressionado. No governo do Estado, junto com junto com a competência e a capacidade administrativa de Carvalho Pinto, fez a mesma coisa. Não admira que tenha sido eleito presidente da República com toda aquela votação.
- O pessoal do ltamaraty aceitava passivamente que pessoas não ligadas à carreira preterissem as diplomatas da casa?
Não, sempre chiou, como é normal. Mas sabia e ainda sabe muito bem, que esse tipo de nomeação é exclusiva do presidente da República, embora o pessoal escolhido seja normalmente da carreira. No meu caso particular, não tive dificuldades, porque conhecia muita gente do Itamaraty, era amigo de todos. Depois, ia para um posto secundário - a Embaixada do Marrocos ia ser instalada por mim – e, nesse caso o pessoal lá só quer saber quem vai como auxiliar. Tive muita ajuda na hora de escolher equipe, porque as entrevistas eram filtradas, o que me livrou dos chatos. Finalmente optei por um jovem, Amaury Banhos Porto de Oliveira, que chegou a embaixador, mas na época era estigmatizado como comunista - juntamente com o João Cabral e o Antonio Houaiss - por casa de denuncias. Esse rapaz foi o melhor auxiliar possível: trabalhava feito um mouro, era competente dedicado, eficiente. Tive olho clínico quando chegaram com aquela história de que "é comunista". Respondi logo: "Quero esse!"
- Não era formalidade demais ser embaixador em país árabe?
Tive duas ofertas O Irã ou o Marrocos, e fiquei com a última, um país mais próximo da Europa. É preciso que se diga: no Marrocos, minha função era de representação. Não se podia beber fora de casa, não se falava com mulher na rua, mas de resto as coisas eram bem agradáveis. Habituei-me a usar fraque, que para embaixador é uma espécie de uniforme, até mesmo uma coisa igualitária, porque não identifica representantes de países de maior importância ou recursos, o que não ocorreria se os trajes fossem comuns. O trato também não é diferenciado, porque ninguém sabe quem é quem. Mesmo o ritual tem lógica. Essa coisa de recepção, por exemplo: você chega no posto, visita as autoridades e depois os colegas por ordem de precedência. Primeiro o decano, a assim sucessivamente. A partir daí é convidado,visitado numa ordem internacional que a prática diplomática – que é diferente da nossa – organiza com muita sabedoria séculos afora. A rotina era a de fazer relatórios, mandar informações, responder os pedidos que o Itamaraty fazia . Não era tão simples, mas o essencial o auxiliar fazia. O problema da religião local nunca me afetou, porque, como disse eram liberais com os estrangeiros, o que não é comum em outros países árabes. Era novidade para nós vermos um homem casar três ou quatro vezes sem se separar antes, mas ruim mesmo era não ver mulher nunca nas ruas, nas recepções, nos banquetes, não sei onde elas se escondiam. As mulheres européias apareciam mais, talvez por isso faziam tanto sucesso lá. Eu levava uma vida pacata e quase não via o rei Hassan, embora conhecesse sua irmã, Lala Aisha. Tinha um irmão do rei - que já morreu- que vivia me chateando com a história de importar um técnico de futebol do Brasil para o time dele nas Forças Armadas. Sempre me esquivei dessa responsabilidade, porque aquilo só dava briga, problemas. Fiquei lá pouco menos de dois anos, o suficiente para me manter afastado daquela confusão política que era o Brasil de então. As comunicações eram precárias e nós tínhamos notícias esparsas. Quando fiz menção de voltar, ofereceram-me o posto da Iugoslávia. Mas havia problemas familiares incontornáveis:. tinha perdido um irmão e um cunhado. Foi aí que resolvi voltar de vez.
- Você falou de um certo ócio na missão diplomática. Foi bom não ter muito o que fazer?
Adorei, adoro, acho que é porque já trabalhei demais, já peguei muito, no. pesado e desacostumei. Nossa profissão é dura, exige muita dedicação, batente integral anos a fio e não há compensação financeira. E quer saber? O que gosto mesmo é de caçar e pescar. Fiquei preguiçoso depois de mais de 40 anos dando um duro tremendo. Já pensou o que é ter passado tantos anos da vida trabalhando em Belo Horizonte, entrevis,tando cada sujeito bisonho para, como me diziam,"cobrir o pensamento político mineiro?" Que pensamento? Não havia pensamento algum, cansei de botar idéias inteligentes na boca daqueles políticos. Naquele tempo, para se ganhar um dinheirinho escasso, tinha-se de muito duro, andar de bonde para cima e para baixo. Hoje a profissão ainda tem problemas, mas quanto às condições de trabalho é um paraíso.
- A revolução de 1964 interferiu bastante na vida de vários intelectuais brasileiros. Circunstancialmente, você conhecia e se dava muito bem com a maior parte dos líderes do movimento, muitos deles egressos da FEB. Acha que teve algum privilégio especial por causa disso?
Inicialmente não tive problemas, porque não havia razão para tê-los. Na fase do AI-5 sofri alguns percalços, mas em geral posso me considerar privilegiado, mesmo que jamais tenha deixado de dizer o que pensava em todas as circunstâncias. O curioso é que poderia até ter mantido uma embaixada na gestão Castello Branco, porque o presidente se dava bem comigo desde os tempos da Força Expedicionária Brasileira. Um dia até ele me ligou dizendo que ia fazer uma conferência na Escola Superior de Guerra e precisava, segundo argumentou, do meu testemunho. Cheguei lá e no salão havia aquele monte de mílico assistindo a palestras sobre a campanha na Itália. Era o dia em que o Castello ia falar sobre o terreno em que se desenvolviam as operações. Ele disse de público que em vez de fazer uma exposição técnica preferia ler uma crônica minha a respeito. Foi bastante lisonjeiro e suscitou muitos debates. Minhas relações iniciais com o movimento de 1964 eram as melhores possíveis e sem dúvida eles, os militares, tomaram um país que andava ingovernável. Mas depois foi aquele embaraço de prender gente e o próprio Castello se afastou de principios, o que não julguei inicialmente possível. Nessas condições, não dava para apoiar. Logo que cheguei do Marrocos evitei escrever, e isso foi uma sorte, porque poderia ter sofrido represálias. Com a série de prisões, recomecei meu trabalho. O ministro da Justiça era o Milton Campos, que um dia me falou que o Castello gostaria que eu o procurasse. Fui muito direto: "Ora, um presidente da República que quer falar com alguém tem várias maneiras de abordagem. O que não falta é auxiliar para isso". Não queria. chegar lá e ficar submetido a um oficial de gabinete qualquer, pensando que eu estava ali para postular alguma coisa pessoal. Nem dei o desconto da falta de experiência do Castello, essas coisas. Além do mais, pensei, "não tenho nada para dizer a ele que já não tenha falado através das crônicas". Sim, porque o que tinha de dizer, escrevia. Disse então que não ia e não pensei mais no assunto. A verdade inicial, no entanto é que o governo anterior a 1964 andava tão bagunçado que não dava segurança nem mesmo a quem dele se beneficiava. Anda bem parecido com o que temos hoje. Um dia, naquele tempo confuso do AI-5, a mulher do Joel Silveira me ligou dizendo que uns oficiais tinham estado na casa dele - que é próxima da minha - e o tinham prendido. Pedia ainda que eu fizesse alguma coisa. O que fiz foi me mandar para casa de um amigo, o Fernando Sabino, onde soube pelo telefone que os tais oficiais me tinham procurado também. Segui depois para a casa de um parente no Leme. De lá, liguei para o Adonias Filho - que era muito amigo daquele grupo revolucionário - e ele disse que ia se informar a respeito e me ligava em seguida, mas que eu ficasse onde estava. Falou com o comandante da Região Militar, que era o general Sizeno Sarmento, e me disse, três dias depois, que eu podia apresentar-me ao general Andrade Serpa, o "Serpa Louro", também um ex-febiano, que o problema era só esclarecer algumas coisas. E me dava sua palavra de soldado de que eu não ficaria preso. Lá fui eu para o lugar indicado, onde tomei o maior chá de cadeira. Lá pelas tantas chegou o "Serpa Louro", que nem sabia o que eu estava fazendo ali. Julgou até que tinha ido pedir isenção do serviço militar para algum parente. Tudo esclarecido, no entanto, ele me fez um longo interrogatório e no fim ordenou que ficasse ali até o dia seguinte. Lembrei então da promessa do Sizeno e fui embora para não ser mais incomodado. Tudo que respondi a ele era que já tinha publicado nos jornais, exposto publicamente nas crônicas. Inclusive minha opinião contrária às declarações de um determinado general sobre o que acontecia no Brasil, o que era um direito, já que o personagem era também um homem público. Nada a declarar, portanto, já que o que escrevi era público e notório. Como disse, nunca mais fui incomodado, mas houve uma ocasião em que quis viajar para o Exterior e me proibiram de sair do País. Fui à casa do general Ernane Airosa, que tinha sido o mais condecorado oficial da FEB, um velho conhecido, e ele me mandou procurar um figurão do Ministério da Guerra, o que fiz. Esse sujeito, muito solene, me deu um cartão liberando a saída e disse que o procurasse quando estivesse de volta, o que evidentemente não fiz, e nada aconteceu. É uma bobagem alguém acreditar que o Exército tem uma burocracia organizada. Isso tudo ocorreu justamente quando eu voltava ao cenário da guerra da FEB para a matéria de Realidade.
- Você teve uma experiência muito rica como editor. Fale dela e diga se é mesmo real essa incompatibilidade entre ser criador e editor, simultaneamente.
Queria editar livros, mas talvez não planejasse mesmo ser um grande editor. Eu, Fernando Sabino e Acosta fundamos a "Editora do Autor", um projeto bem-sucedido, mas cujo crescimento nos assustou um pouco. Era funcionário demais, muita burocracia e o eterno receio de uma atividade que é um risco a cada novo projeto. Houve um fim de ano em que fomos muito a bancos pegar empréstimos, mas livro mesmo não se vendeu. O que tornou o negócio inseguro para quem não tinha muito capital. Quando recebemos proposta de compra da Editora José Olympio, não pensamos duas vezes e vendemos muito bem o negócio. Acho também que foi o único bom negócio que a JO fez em muitos anos. Não acho que a atividade intelectual seja incompatível com a do homem de negócios, mas sem dúvida que temos de distribuir muito bem o nosso tempo. De qualquer forma, foi um período fértil, desafiador. Editamos o Oswaldo França Jr., que mandou seu original muito mal batido a máquina, em espaço um, que o Paulo Mendes Campos se recusou a ler. Li com esforço, mas achei o cara muito bom. Não sei quantos livros editamos ao todo, mas lembro que a primeira experiência literária do Chico Anísio e da Mariza Raja Gabaglia foi feita conosco e que os livros venderam muito bem. Nosso maior sucesso, disparado, foi Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, que a Eliane Zaguri traduziu bem, mas que ainda mereceu olhada em conjunto minha e do Sabino, tal a fé que depositávamos no projeto e o cuidado que tínhamos com o livro, tudo muito bem justificado. Ocorre que ganhávamos aqui, reinvestíamos ali e foi isso o que aconteceu com a obra do García Márquez, que editamos toda, que vendeu muito bem, mas que evidentemente nunca repetiu o fabuloso êxito inicial. Muita coisa que editamos - antologias do João Cabral de Mello Neto, entre muitos outros - até hoje vendem bem pela José Olympio. Acho, contudo, que não voltaria a editar, porque não gosto dessa história de freqüentar banco sob qualquer pretexto, de ver que o amigo banqueiro do encontro social é bem diferente na hora de fechar negócio e manda logo a gente para a financeira. Acho também que editar pode ser muito saudável para quem gosta desse jogo de ganhar e perder em tempo integral, mas é também aleatório, horrível pela necessidade de tratar com muita gente. Em especial, para quem se acostumou a lidar com a própria carcaça. E olhe lá.
- Para um veterano de crises políticas no Brasil, qual é a impressão da conjuntura nacional deste fim de década?
Tudo muito confuso, e dou até graças por não estar escrevendo diariamente, senão ia ter um bocado de aborrecimento falando dessa bagunça toda que faz o Brasil atual tão triste. Falta hoje em dia ao País um certo ela vital em certos setores sociais, que já foi possível observar em épocas também difíceis e não apenas economicamente. Tenho até curiosidade para ver como tudo isso se vai processar imediatamente, mas não confio no trabalho da Constituinte. O presidente é, sem dúvida, indeciso, e piora a cada dia com tanto palpite em torno dele. Há muita idéia e pouca prática, e o quadro é de confusão generalizada. Conheço pouco o presidente, mas não é preciso saber muito dele para perceber que o mais surpreendido com os fatos é ele próprio, porque não devia esperar nada do que aconteceu, não sabe o que fazer, mas certamente não cogita sair. A economia é o caos que se vê, mesmo que esse ministro Bresser pareça inteligente. É claro que ainda não tenho saudades do Delfim, e acho que não vou chegar a isso. Um dia, por sinal, Delfgim veio à minha casa por conta de uma entrevista encomendada por uma revista de São Paulo, que nunca chegou a ser publicada. Ele veio com três assessores e eu me municiei com um amigo economista para enfrentar a fera. Muito inteligente, diga-se. A certa altura, perguntei: “É verdade que o sr. tem 28 assessores, os chamados Delfim’s boys?” Ele, muito incisivo, disse: “Não é verdade, são 23”.
- Quais são suas atividades hoje?
Escrevo semanalmente para um tablóide chamado Revista Nacional, do Mauritônio Meira, que circula em 14 Estados brasileiros e no Rio como encarte dominical do Jornal do Commércio. Sou aposentado, mas funcionário da TV Globo, onde faço comentários sobre lançamentos literários e artes plásticas, além de escrever dois artigos mensais para o Estadão. Fora disso, faço trabalhos avulsos, como síntese de obras famosas, para editoras paulistas ou apresentações de discos, como um projeto adaptado por Hélio Bloch de um história de Maria Clara Machado, contada por Lucinha Uns e Cláudio Tovar, e outro do Ziraldo. O disco deverá ser brinde de fim de ano de uma grande empresa e é trabalho bem pago. Não posso me queixar da vida.
- E o lazer?
Gostaria de passar o resto da vida num consulado em Florença, ganhando em dólar, não tendo nada para fazer e com aquela cidade fantástica à mão. O que é um sonho, porque não existe nem ao menos esse consulado. Mas poderia trocar isso também por caçar e pescar, o que não faço há tempos. Ando velho para me meter no mato e o coração está meio avariado. Mesmo pescar já não vou tanto. Gosto de cuidar do meu jardim, que é pomar e já foi horta, e de todas essas coisas que fazem a vida amena. Ultimamente, gasto meu tempo em Ipanema. Não há nada muito especial.
- E a sua literatura, qual é o retrospecto que faz dela, o que falta ainda a fazer?
Como se vê pela minha carreira de jornalista, nunca pretendi fazer uma obra literária, nunca planejei sequer um livro. Todos os meus livros são seleção de minhas crônicas de uma certa época. Nessa seleção elimino as que são demasiado ligadas a assuntos do momento, principalmente políticos e econômicos, e escolho as que me parecem ter algum interesse literário e que por isso envelhecem menos depressa.
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