Umberto Eco
Última entrevista concedida à João Céu e Silva, publicada no Diário de Notícias, de Lisboa, em 20/02/2016 Céu e Silva, e publicada no jornal Diário de Noticias.
Morreu ontem o escritor italiano Umberto Eco, autor de obras imemoriais como "O Nome da Rosa" ou "O Pêndulo de Foucault". A última entrevista que o DN lhe fez, na sua casa, em Milão, a 19 de dezembro de 2015, aconteceu em a propósito do último livro - "Número Zero". Releia-a aqui
Vai a entrevista ainda no princípio e Renata vem pedir ao marido uns 20 euros para ir fazer compras. O marido abre a carteira, pergunta se não é melhor levar 30, e dá-lhe o dinheiro para as compras... Continua-se a entrevista ao marido, o escritor, semiólogo, linguista e ensaísta Umberto Eco, que comenta a interrupção assim: "Nada muda, é como na ópera La Traviata."
É verdade, "nada muda", tanto assim que o seu mais recente romance tem como cenário o ano de 1992 e é um perfeito retrato das relações entre a política, a corrupção e a manipulação jornalística que ainda vigoram no ano de 2015. Intitula-se Número Zero e saiu em Itália em novembro, tornou-se imediatamente um best-seller, estando em curso 35 traduções. Um motivo para Umberto Eco dizer: "Não posso dar todas as entrevistas que pedem, ou não faria outra coisa." No entanto, esta conversa está em curso e o professor que nasceu no ano de 1932 na cidade italiana de Alessandria apresenta-se bem disposto e de muito bom humor. A prova é que logo ao início tenha brincado com o apelido Silva: "É como o Kim dos coreanos, há sempre mais um."
Umberto Eco está diferente desde a anterior entrevista que concedeu nesta mesma casa em Milão há três anos - voltou a ter uma barbicha aparada -, por altura do lançamento do delirante romance O Cemitério de Praga. Na altura já não acendia o charuto que era uma das suas imagens de marca, mas também não pegava nas cigarrilhas que agora conserva entre os dedos durante as duas horas de diálogo. Não as acende, apenas as usa como uma chucha até considerar que o seu prazo de validade terminou. Então, como se as tivesse fumado de verdade, esborracha as pontas no cinzeiro.
Umberto Eco não tem pressa em começar a debitar, aliás prefere aproveitar a brisa que entra pelas janelas abertas e lançar alguns temas para o ar. O seu apartamento fica na Praça do Castelo, que recebe este nome pela fortificação Sforzesco em frente, um segundo andar gigante que mais parece a biblioteca da abadia medieval onde decorre a ação do seu romance mais famoso, O Nome da Rosa. Enquanto se percorrem os corredores até ao estúdio onde trabalha, observam-se as lombadas das dezenas de milhares de volumes ali emprateleirados. Sobre a mesa de trabalho, voltada para um jardim interior que a sua mulher cuida com cuidado, conforme refere, está o computador portátil em que escreveu o romance sobre o qual se irá falar na entrevista, bem como pilhas de papel, jornais e vários outros livros, entre os quais a Nostalgia do Absoluto, de George Steiner.
Umberto Eco não se importa de se deixar fotografar nas divisões mais íntimas da sua monumental residência, no interior de um prédio de fachada ocre ladeado por dois de cor amarela, e nem é preciso pedir-lhe para posar, já que ele próprio interrompe a marcha pelo corredor comprido e põe-se em posição. Agradece que não tenha vindo um fotógrafo profissional: "Detesto as sessões fotográficas. Tiram-me tantas fotografias e depois usam apenas uma."
O professor não se cansa desta caminhada interior. Abre a porta que dá para o jardim e mostra as flores; entreabre um pouco mais as janelas do salão e observam-se os turistas e grupos de estudantes a fotografar o escudo heráldico posto na torre virada para o apartamento. Ao falar de turistas, nomeia três restaurantes que não são frequentados pelos milhares de visitantes que fazem o circuito da moda e gastam os últimos euros em Milão - "na Armani ou na Spiga" -, fazendo três sugestões: "Há um restaurante, aqui já à direita, que é caro; outro mais à frente com um ótimo risotto e um chinês naquela rua ali"...
De regresso à sala, entre os livros que refere está um de James Joyce: "Tenho um exemplar da primeira edição de Ulisses." Vê-se que tem prazer nessa posse, mesmo que não seja tão valioso como alguns volumes comprados em alfarrabistas especializados em livros sobre ciências ocultas e alquimia: "Sempre fui fascinado pelo falso, daí que colecione livros antigos falsos. Sou um colecionador ateu, dos que não acreditam no que está nesses livros."
Falar de Ulisses leva-o a dizer que recebeu em tempos de um poeta e tradutor brasileiro, Haroldo de Campos, uma edição daquele romance. De Portugal não foi nenhum e, quando informado de uma nova tradução do livro, fica curioso como é que num país tão pequeno se pode editar um livro tão caro. Diz--se que a tradução de Ulisses é de Jorge Vaz de Carvalho, o mesmo que tem vindo a fazer a tradução ou revisão de toda a sua obra em Portugal. Umberto Eco aproveita para fazer uma confissão: "Percebo melhor o português do Brasil do que o de Portugal, tal como prefiro o inglês dos americanos ao de Oxford."
Não será por acaso, é que Umberto Eco já correu o Brasil de norte a sul várias vezes e visitou muitas cidades para fazer palestras: "Apaixonei-me pela obra do dramaturgo Oswaldo de Andrade, pelo candomblé e pela música deles." Quanto a Portugal: "Estive lá duas vezes: uma primeira a convite de Mário Soares, durante a qual conheci Saramago, e depois aquando da pesquisa para o romance O Pêndulo de Foucault, tendo visitado Tomar por causa dos Templários. E ouvi fado numa casa típica."
Acrescenta uma história que lhe ficou na memória: "Estive num alfarrabista na zona do Chiado e encontrei seis volumes que me interessavam muito e que não eram demasiado caros. Comprei-os, paguei e pedi para mos enviaram para casa. Dias depois houve o grande incêndio e achei que nunca mais os veria, felizmente o livreiro tinha-os expedido na véspera da tragédia." Após acabar o romance Número Zero, Umberto Eco ainda não tem projetos literários: "O meu editor perguntou-me o que queria fazer após terminar o livro e o que disse foi que me apetecia atirar o livro pela janela." Enquanto o diz, observa um exemplar da edição portuguesa, acabado de sair da gráfica, e não nega que exista alguma parecença com este Número Zero e o O Pêndulo de Foucault, como se sugere: "É verdade, até porque é o meu livro de que mais gosto."
Diga-se que o início deste último romance tem uma situação - uma torneira que pinga - que era para ter sido utilizada no Pêndulo mas que acabou por ser retirada por uma questão de ritmo. Ou que este Zero era para ter sido escrito antes do Pêndulo: "Só que este livro levou--me apenas um ano a escrever e o outro foram oito anos completos." Finalmente, Umberto Eco instala-se na poltrona de cor diferente de todas as outras e dá início à entrevista. Antes da primeira pergunta ainda se repara nas meias que o escritor calça, às riscas horizontais, como se fosse um arco-íris.
Não começa a conversa sem antes justificar o tom do seu mais recente romance: "Digo sempre que os meus livros eram sinfonias de Mahler, mas este é bastante diferente, é jazz de Charlie Parker. É mais curto, pois pretendo manter um ritmo de jazz e não a complexidade dos andamentos de uma sinfonia."
Não teve medo de ser assassinado por causa das acusações polémicas que faz em Número Zero como sucede a uma das personagens?
Não, porque tudo o que conto neste livro, salvo a fantasia desse Braggadocio sobre o corpo de Mussolini, é verdadeiro, teve processos judiciais e já foi publicado. O pior do que conto no meu romance não é o que se fez de terrível, mas que as pessoas se estejam nas tintas para todos esses acontecimentos. Vejo que tudo entra por uma orelha e sai pela outra das pessoas, como se as coisas terríveis que se passaram há 50 anos não preocupem ninguém e sejam aceites tranquilamente.
Então, está livre de perigo?
Acho que ninguém me quer silenciar, pois não sou Roberto Saviano, que conta segredos da máfia atuais. Eu conto coisas sobre as quais até a BBC já fez um documentário.
Mas o romance é tão provocativo como os cartoons do Charlie Hebdo e viu-se o que aconteceu em Paris.
É diferente, porque o Charlie Hebdo tocou na sensibilidade ao fazer cartoons terríveis sobre a Virgem Maria e Jesus Cristo, já para não falar do islão. Na sensibilidade religiosa não se deve tocar e, por isso, creio que não irritei ninguém, até porque os que cometeram estes crimes tiveram o desplante de os ir comentar à TV.
Repito. Braggadocio morre sem saber a razão da punhalada e no seu livro são tantas as acusações que alguma lhe poderia ser fatal...
Talvez, até porque não revelo a razão por que ele é assassinado. Decidi escrever este romance porque já tinha efetuado todas as discussões sobre os casos polémicos que refiro, ou seja, fiz um autoplágio ao reproduzir partes de textos meus que tinha escrito para a revista l"Espresso e que tinham que ver com esta temática. Fi-lo tranquilamente porque não é um crime plagiar-me a mim próprio. Por isso é que demorei só um ano a escrever este enquanto os outros livros levaram seis anos e o Pêndulo oito.
No entanto, tem semelhanças com O Pêndulo de Foucault.
Concordo, porque há coisas deste livro que já tratara antes para satisfazer o meu vício do jornalismo. Escrevi muitos artigos e tive muitas polémicas, mesmo que as pessoas se esqueçam disso rapidamente.
Em Número Zero tudo gira à volta da conspiração, um tema que o delicia, creio?
É verdade, tanto que neste ano vou estar num congresso sobre a conspiração, um tema que sempre me fascinou por causa da sua mecânica delirante. Tudo consiste em encontrar ligações entre o que jamais teria relação. Braggadocio é o exemplo mais perfeito de um conspirador que encontra ligações entre a morte de Mussolini e a do papa João Paulo I.
Mesmo que ainda estejamos no início do século XXI, já temos boa quantidade de conspirações. O 11 de Setembro é um bom exemplo?
Eu acredito nas conspirações, mas é preciso distinguir a verdade da mentira. O assassínio de Júlio César foi uma conspiração, tal como as tentativas para matar Napoleão, porque o que caracteriza as verdadeiras conspirações é serem imediatamente descobertas. Já as imaginárias e paranoicas nunca se podem verificar se são reais ou não. No caso das Torres Gémeas sabe-se que a Al-Qaeda se organizou para as destruir, mas na conspiração paranoica não foi a Al-Qaeda mas sim os judeus e o presidente Bush.
Começa o delírio?
Basta ver que na internet há teorias sobre a nota de um dólar que, quando dobrada de uma certa maneira, reproduz as duas Torres Gémeas, ou seja, era um acontecimento previsto! É uma loucura, mesmo que muita gente acredite nessa teoria. Houve um grande filósofo, Karl Popper, que escreveu um ensaio fundamental para explicar a teoria da conspiração, no qual explica que já na Ilíada de Homero existia uma conspiração dos deuses para o que acontecia. Imaginar uma conspiração é a melhor forma de não reconhecer que somos limitados ou imbecis.
E ninguém o quer reconhecer?
Quando não se quer reconhecer que se é um imbecil, culpam-se os outros. Aliás, basta ver que todas as religiões do mundo resultaram de conspirações: há sempre um deus que fez isto ou aquilo. Mesmo que tenha sido eu a matar semelhantes numa guerra, logo se aponta para uma maquinação da divindade e que é responsável pelo ato.
Como se transplanta isso para o seu romance?
Recorde-se a operação que resultou na morte do primeiro-ministro Aldo Moro após dois meses em cativeiro. Era realizada pelas Brigadas Vermelhas e muito bem feita, infelizmente. Então, logo se disse que era impossível que jovens de 30 anos fossem capazes de fazer a operação e que haveria por trás alguém mais velho responsável. Esquecia-se que outras pessoas de 30 anos eram diretores de empresas!
Nem faltam na Primavera Árabe suspeitas de conspirações norte-americanas.
Muitas vezes as coisas reais parecem-se com conspirações e é verdade que os serviços secretos de todo o mundo se meteram nos processos das revoluções. A situação passa a paranoia quando se diz que foi o presidente dos Estados Unidos quem montou tudo. Dou um exemplo comezinho: um colega publicou um livro que falava de cemitérios e como na altura fui visitar o cemitério Pére Lachaise em Paris levei-o para ler. Só que esqueci o livro no táxi e ele achou logo que não foi por acaso e perguntou: Porque não perdeste outro qualquer? Transformou um elemento casual numa situação demoníaca.
Os leitores, no entanto, são grandes apreciadores de conspirações?
Sem dúvida, e até posso dar como exemplo o Código da Vinci, cujo autor eu sempre disse que foi inventado por mim. Dan Brown é mais uma personagem do meu romance O Pendulo de Foucault do que alguém com uma existência de verdade. Ele teve um sucesso extraordinário, quase cósmico, mesmo que o que conta seja evidentemente falso. Dan Browm comprou os mesmos livros que eu para as investigações de O Pêndulo, só que eu fiz uma representação grotesca enquanto ele convenceu os leitores de que tudo o que escreveu era verdadeiro.
E conseguiu?
Sim, porque era divertido. Mas o mais espantoso é o facto de as pessoas irem à igreja de Saint-Sulpice confirmar se lá estão as coisas que ele refere. Que não estão, porque a sua ideia de narrativa de uma conspiração ultrapassa o próprio contar da história. O que é ler um romance? É pensar que a narrativa é verdadeira e fazer crer que havia uma mulher que se chamava Madame Bovary e um homem que se chamava Raskolnikov. A sanidade mental consiste em fazer que o leitor deixe o romance com aquela sensação que [Samuel] Coleridge chamava a "suspensão da descrença". As pessoas que leram Dan Brown vão aos locais onde tudo se passa e são ultrapassados pela narrativa, como acontecia aos habitantes da velha Sicília quando o teatro de marionetas ia à sua terra e os espetadores identificavam-se com o mau da fita - confundindo a ficção e a realidade -, e no final espetavam o fantoche mau com os seus punhais para se libertarem.
O próprio Dan Brown acreditará no que escreve?
Não sei, não sou o seu psicólogo.
Quem lê o Código Da Vinci também não acha que Umberto Eco pode ser personagem desse livro?
Sim, mas prefiro pensar que ele é uma personagem de O Pêndulo.
A propósito de conspiração, ainda acredita no que lê nos jornais?
Apesar deste romance se apresentar como uma crítica selvagem, a narrativa termina com uma emissão da BBC, que é jornalismo sério. O jornal do meu livro é o pior exemplo da situação jornalística, e não é por acaso que a redação é composta por medíocres. Não se pode identificar o jornalismo em geral com o do livro, até porque a maioria tenta fazer jornalismo sério.
Em Portugal, há escândalos políticos que estão na berlinda duas semanas até serem esquecidos. É como em Itália?
O esquecimento é a palavra exata, por isso é que situei o meu romance no ano de 1992. Entre as várias razões está a de não existir a internet. Posteriormente, a situação complica-se porque a internet está cheia de falsidades e o grande problema é a capacidade de filtrar o que é verdade. Eu posso separar o trigo do joio, mas se for pesquisar sobre teoria atómica sou bem capaz de ser enganado. Por isso, se dizem que Bush está relacionado com o atentado das Torres Gémeas as pessoas acreditam. Os jornais deviam ter uma, duas páginas diárias a analisar o que vai na internet.
Não estão os jornais e a internet a ser cúmplices, como no caso do falso gesto obsceno de Varoufakis que levou dias a desmascarar?
Isso acontece porque é preciso encher 50 páginas diariamente.
O romance Número Zero passa-se antes de Berlusconi. Era uma personagem demasiada perigoso?
Em 1992 parecia que a situação em Itália estava para explodir, daí que fosse o melhor cenário para o que eu pretendia escrever. Tinha havido uma operação Mãos Limpas, mas mesmo com as condenações por corrupção nada mudou. Berlusconi entretanto foi eleito e o que antes era negócios para financiar os partidos foi substituído pelo enriquecimento próprio. Por isso, neste livro apetecia-me falar de uma época mais longínqua, em que as personagens não sabiam o que iria acontecer mas o leitor sim.
Vive frente ao castelo Sforzesco, que entra no livro. Por ser uma visão diária, ou por outra razão?
Está no livro por ter sido a única documentação que precisei de investigar - o resto estava todo na internet. Ao encontrar um livro sobre os lugares secretos de Milão descobri vários locais que desconhecia e coisas sobre os subterrâneos do castelo que se vê da minha janela. Não sei se é verdade ou falso, mas diz-se que existem coisas horríveis nas suas galerias e assim tornou-se o cenário perfeito para a conspiração à volta de Mussolini.
Porque faz de Mussolini uma das grandes provocações do livro?
É a forma de meter em cena a psicologia do conspirador a coberto da influência eterna do fascismo.
Enquanto escrevia o livro passou a acreditar em alguma teoria a que antes não dava importância?
A única teoria falsa no romance é a defendida por Braggadocio, quanto ao resto é tudo verdade. Talvez em alguns dos casos que refiro os responsáveis não tenham sido punidos e escaparam à justiça. Como é o caso do golpe de Estado tentado pelo príncipe Borghese e que falhou. Porque falhou? Não sei. A história disso tudo foi revelada na imprensa, houve uma comissão para investigar, mas nada se apurou.
Mas enquanto escrevia nunca se pôs a pensar "e se fosse verdade"?
Sempre fui fascinado pelo falso.
Em 1967 escreve uma Guerrilha Semiológica contra a uniformização da cultura mediática...
...Que foi uma coisa muito mal compreendida! A Guerrilha Semiológica é isto: na discussão sobre a comunicação dos anos 60 pensava-se sempre em como passar a mensagem. A solução era mudar a mentalidade face à influência da televisão e era preciso que em frente a cada aparelho estivesse alguém que explicasse. Isso era a Guerrilha Semiológica, que provocou até conflitos com os militares.
Está satisfeito com o estado da linguagem atual?
Estar interessado na linguagem também quer dizer que se é um crítico constante da linguagem. Acredito que o italiano permite dizer tudo o que se quer, mas há uma maioria de pessoas que emprega mal as palavras e a lista de clichés impressos nos jornais é uma espécie de espelho paralelo ao estado da linguagem.
Confia no que lê nos jornais?
Eu vejo as notícias na televisão mas nos jornais leio principalmente a Opinião. Quanto aos enganos que se encontram na imprensa, percebo que resultam da obrigação de encher muitas páginas. Até porque reparo que mesmo os jornais muito importantes se enganam.
Lê jornais em papel ou digital?
Por norma em papel. Nisso sou fiel a Hegel, que dizia que o jornal é a oração quotidiana do homem moderno. Mas não sou contra o digital, e se estou no estrangeiro utilizo o iPad para ler os jornais italianos.
Acredita que há futuro para a imprensa tradicional?
Não sei, porque também houve um tempo em que se dizia que a bicicleta iria desaparecer e tal não aconteceu, pois agora vejo toda a gente a pedalar. Há uma redescoberta contínua de certas práticas consideradas em perigo, tanto assim que me dizem que o único setor editorial que está em crescimento é o da literatura infantojuvenil. O que vejo é que as crianças ainda gostam de folhear os livros e reparo que cá em casa a primeira coisa que o neto faz é ir ver os livros. Não liga aos jogos ou à televisão, portanto as novas gerações poderão continuar a ler e a querer tocar nas páginas de papel, bem como deixar os restos de bolos colados às páginas e reencontrar essas marcas na velhice, coisa que não se encontra numa pen ou num disco rígido.
Encontra muitas mentiras sobre si na internet?
Sim, principalmente atribuem-me muitas frases célebres de outros. Ou mesmo situações erradas como a que me atribuíram há uns anos de que eu dissera que um escritor famoso tinha morrido e até o jornal The New York Times me ligou para confirmar. Mas nem sempre confirmam se é verdade, o que já não me incomoda porque acredito na fraqueza da memória das pessoas. Sabemos sempre que no dia a seguir já nada é notícia.
Considera ser necessário controlar a internet?
Isso é uma situação impossível de fazer nos tempos em que vivemos, o que se deve é ponderar o que fazer desse universo. Há quem já tenha dito, e acho que tem razão, que se nos anos 40 houvesse internet não teria havido campos de concentração como o de Auschwitz porque toda a gente teria tido conhecimento. No entanto, no momento em que todos têm direito à palavra na internet temo-la dada aos idiotas, que de outro modo nunca seriam lidos noutro sítio.
Alerta para os campos de concentração mas hoje temos situações trágicas com os imigrantes do Mediterrâneo ou os que fogem da Líbia ou do Mali e isso não se evita.
Isso é outra questão, a informação banaliza os acontecimentos. Dou um exemplo: a primeira vez que se viram na televisão imagens de uma criança negra cheia de fome e com moscas a rodeá-la foi um momento marcante, só que agora já ninguém lhes liga devido à vulgarização. Alguém no outro dia proibia a divulgação de imagens dessas crianças negras com moscas à volta porque a sua repetição era perigosa. As pessoas habituam-se.
Critica a demasiada informação?
O problema da internet é que produz muito ruído, pois há muita gente a falar ao mesmo tempo. Faz-me lembrar quando na ópera italiana é necessário imitar o ruído da multidão e o que todos pronunciam é a palavra rabarbaro. Porque imita esse som quando todos repetem rabarbaro rabarbaro rabarbaro, e o ruído crescente da informação faz correr o risco de se fazer rabarbaro sobre os acontecimentos no mundo. Haver muito ruído é o outro grande problema da informação contemporânea e esse é um dos temas do meu romance: cada uma das personagens não era problema, mas todos juntos faziam demasiado barulho. Portanto, deve-se evitar muito ruído informativo.
Repetiu o que Dante disse um dia sobre as bibliotecas ocuparem o lugar de Deus. Ainda acredita nisso?
Isso está na parte final da Divina Comédia. Via-se Deus como a biblioteca das bibliotecas e a soma de todos os saberes possíveis. O que eu disse foi uma formulação metafísica, até porque é impossível ler tudo o que existe nas bibliotecas.
Já disse que São Tomás de Aquino é responsável por ter perdido a fé em Deus e na Igreja. É verdade?
Não se deve interpretar desse modo o que disse, digamos que a minha crise religiosa começa ao mesmo tempo em que me ocupo de São Tomás. Ou seja, comecei a tese ainda crente e termino-a já não sendo. No entanto, deixei S. Tomás no seu próprio tempo, tratei-o com muito respeito e continua a influenciar-me no pensamento. Ele não é responsável por mais nada.
Trinta anos após ter publicado O Nome da Rosa quase ninguém deixa de o relacionar principalmente com esse livro. Porquê?
Não é coisa que me tenha acontecido apenas a mim, o meu amigo Gabriel García Marquéz escreveu livros fabulosos mas só se fala do seu Cem Anos de Solidão. Ou se tem a sorte de escrever o livro de sucesso no fim da vida ou se for no princípio nada há a fazer.
Ao fim de tantos anos o que prefere escrever: ensaios ou romances?
São situações muito diferentes. Os ensaios escrevem-se porque o coração o pede. Está-se na universidade, há debate com os outros, discute-se cada passagem com os colegas diariamente, encontram-se respostas e deseja-se escrever uma teoria. No romance, por outro lado, somos livres e ninguém nos pressiona a não ser o editor que quer um novo romance todos os anos. Eu preciso de seis anos para cada um e vivo apenas nesse universo durante esse tempo - a tragédia é quando se acaba o romance. Neste caso, como a história do Número Zero se passa em 1992, tinha de contrariar tudo o que pudesse estar de fora dessa época. Aliás, quase que podia sentar-me no sofá porque o romance escrevia-se a si próprio.
Escreveu também sobre James Bond...
...É um tema de comunicação de massas...
... Que os seus colegas académicos não apreciaram muito...
...Naquela época, nos anos 60/70, não apreciaram assim tanto, mas depois recebi 42 doutoramentos honoris causa, o que quer dizer que os meus colegas não percebiam a realidade.
Também escreveu três livros para crianças. Porquê?
Porque tenho um amigo pintor que me pressionou para fazermos um livro assim e como não me exigia mais do que uma página de texto!
Não fala muito da sua vida pessoal. Qual a razão?
Porque nasci em Alessandria, ou seja, pertenço a uma cidade onde há muito pudor. Até se representa por lá uma comédia nos natais que é assim: os três reis magos chegam, perguntam a um pastor onde está o patrão dele e qual o seu o nome. Telindo, diz ele. Então, os reis encontram o patrão e perguntam se ele era o Telindo. Quando o patrão reencontra o pastor repreende-o por ter revelado o seu nome: "Não se diz o nome a ninguém, é privado. O nome é o tesouro de uma pessoa." Como eu não faço o mesmo que a maioria das pessoas hoje em dia não conto o que é privado.
Mas pode responder se James Joyce é o seu grande amor?
Certamente que sim, pois a esse nível sou muito adúltero e tenho muitos amores. Há sempre livros que nos influenciaram há uns 20 anos, outros há 40 ou até há 50. Mas também posso dizer que quem me marca mais é Jorge Luis Borges.
A sua mulher não deve ter apreciado muito o "incesto" que coloca neste romance?
Aí é que está a diferença em fazer parecer e ser real a narrativa. Basta ver que escrevo muito pouco sobre sexo nos livros, afinal, e como dizia Alessando Manzoni, já há tanto amor no mundo que não é preciso introduzi-lo nos romances. Creio que quem enche os livros de sexo é porque tem pouco na sua vida.
Publicou um livro intitulado A Vertigem das Listas. Qual o critério das suas escolhas?
Fiz essa antologia porque me apercebi de que as listas existem nos textos quando não se pode definir o que se está a passar. Não é nenhuma novidade, isso já está nos clássicos, como na Ilíada, quando Homero é incapaz de descrever a poderosa esquadra grega e faz uma enorme lista dos navios. É provavelmente a primeira lista da história da literatura, pelo menos a que conhecemos. A questão é que ao fazer-se uma lista porque não se é capaz de definir algo, existe imediatamente uma escolha dos elementos que descreve. Dá-nos a impressão de multiplicação não organizada mas há sempre um autor que a fez. A grande pergunta é o porquê de um autor ter colocado este ou aquele ponto na lista em vez de um outro. A internet é a lista das listas possíveis, a matriz de todas as listas que se possam imaginar.
A propósito de listas, também está há algum tempo na do Prémio Nobel da Literatura. Acredita que irá receber um dia?
Toda a gente está nesta lista, até existem autores que colocam nas suas biografias que foram candidatos ao Nobel. Eu levo-me muito a sério para pensar nesse assunto.
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