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Grandes entrevistas

Zulmira Ribeiro Tavares

 

Entrevista conduzida por Luiz Rebinski Junior, publicada no jornal "Candido", nª 29, da Biblioteca Pública do Paraná, em dezembro de 2013.

Virou lugar comum apregoar que a literatura brasileira contemporânea vive um período de pouca qualidade em meio a um cenário apinhado de escritores. A simples presença de Zulmira Ribeiro Tavares nesse contexto coloca em xeque o já gasto clichê. A discrição da autora — que raramente aparece em eventos literários e dá entrevistas — é proporcional à qualidade estética de seu trabalho.

Com uma prosa de dicção singular, Zulmira parece não ter correspondentes na literatura nacional ou internacional. Poucos são os escritores que aparecem no retrovisor da autora paulistana de 83 anos. A fusão de gêneros literários certamente está no cerne dessa literatura pouco usual, o que talvez tenha contribuído para a sua falta de popularidade.

Tal como os grandes cronistas, a escritora eleva o comezinho ao status de grande tema, utilizando-se de uma linguagem afiadíssima, burilada em mais de quatro décadas de produção. Parte de sua trajetória como contista pode ser conferida em Região — Ficções etc., título publicado em 2012 e que traz os primeiros livros da autora — Termos de comparação, O japonês de olhos redondos e O mandril —, acrescido da série de histórias curtas “O tio paulista”, do conto que dá nome ao livro (“Região”), e de um ensaio inédito (“Dois narizes”) que aproxima as obras de Monteiro Lobato e Nicolai Gógol. É principalmente sobre Região que a autora fala nesta entrevista. Também discorre sobre as influências que sua escrita recebeu do cinema e das artes plásticas, além das tentativas da crítica em definir sua obra.

Abaixo o papo com a escritora, que, entre idas e vindas, demorou três meses para se concluir. Fato que demonstra o preciosismo de Zulmira em não deixar nada fora do lugar. O mesmo perfeccionismo presente em sua obra.

A senhora sempre refutou vários rótulos que a crítica tentou impingir ao seu trabalho literário, principalmente quando vinculam sua literatura a um retrato das classes mais abastadas. Para mim, o cerne do seu trabalho reside em uma preocupação com temas “metafísicos”, que levam a um tipo de escrita com uma pegada “ensaística”, ainda que a senhora consiga temperar bem o texto com ironia e humor para que sua prosa não se torne hermética, ou “cabeça” demais. Para a senhora, isso faz algum sentido ou estou completamente equivocado?


Compreendo que a crítica tenha destacado no que realizei aspectos e o modo de ser de classes abastadas, como diz você. De fato, nos três romances escritos eles lá estão. E obtive com tal enfoque belas análises. A objeção diz mais respeito quando o que escrevo me chega orientado exclusivamente por tal circunstância. O que na maior parte das vezes ocorre em resenhas breves, também quando aparece ao lado da obra de outros autores, tornando-a assim mais fácil de ser assinalada. Quanto à sua interpretação, não diria que o que faço tenha um perfil metafísico (!), particularmente considerando que o termo abriga várias acepções. Contudo, admito sim que no conjunto do que já realizei como ficção, nele prevaleça algo de não conclusivo, de interrogativo, independente, em menor ou maior grau do tema escolhido, aproximando-o talvez do que você observou. Quanto à questão do ensaio em minha ficção, a possível relação, creio, foi pela primeira vez abordada no posfácio de Roberto Schwarz para o romance O nome do bispo e posteriormente retomada, sem maiores explicações, ou com entendimento diverso, em outras resenhas ou notas. (Algumas muito bem sucedidas, como na apresentação de O japonês dos olhos redondos, de autoria de João Moura Jr.). Por isso seria interessante, penso, você ler o extrato do posfácio estampado na quarta capa do volume para conhecer exatamente a aproximação que Roberto Schwarz faz de ambos os termos. Já eu própria não penso nessa possível convergência quando escrevo ficção. E decididamente não “tempero” (achei graça na imagem) o que escrevo com isso ou aquilo para torná-lo de mais fácil compreensão. De resto não me acho nada hermética e me espanta a possibilidade!

Região tem uma composição singular: é constituído de três livros de contos, “ficções”, como a senhora costuma se referir às histórias mais curtas, e um ensaio de literatura comparada. Por que a escolha desses livros para uma reedição conjunta? Cortejo em abril, por exemplo, tem as mesmas características dos livros agrupados em Região, mas ficou de fora. Foi uma decisão apenas editorial?


A composição de Região é simples. Seguiu-se a ordem de publicação dos livros, dos inéditos em livro, e o do estudo no fim, esse pela primeira vez publicado.Do livro Termos de comparação, que abre o volume, escolhi apenas os contos. Os poemas, penso voltar a publicá-los algum dia. Já o último texto, tal como em Região, de não ficção, exigiria uma reavaliação, uma análise minuciosa. Como você deve ter lido no posfácio de Augusto Massi, trabalhei sobre o conjunto do material e dei a ele o nome do texto de uma das ficções, porque este abriga, a meu ver, sem determiná-la, a variedade do conjunto, ainda que nela eu não observe nada de singular. Simplificando: amplio “região”, espaço urbano, para “região,” espaço literário. Julgo que nesse novo espaço há uma permeabilidade entre os textos sem perda da particularidade de cada um. Mas posso estar enganada. De resto você observou bem; Cortejo em abril poderia perfeitamente participar de Região, o que aumentaria a possibilidade de uma leitura de vai-e-vem junto aos outros textos, além é claro de um exame atual de seu conteúdo. O motivo, sim, é editorial. Os outros livros vinham de edições anteriores, enquanto Cortejo de abril foi editado pela primeira vez pela Companhia das Letras, portanto posterior aos incluídos em Região, não sendo cabível inutilizar a edição atual, em catálogo, para incorporá-la ao conjunto.

A história que dá título a Região é contada sob o ponto de vista de um morador de rua. É uma pessoa pobre relatando e vivendo uma história de amor em uma parte nobre da cidade. Qual a importância desse olhar “estrangeiro” na história e em sua obra?


Se você tiver oportunidade de reler o texto irá verificar que o narrador não vem a ser propriamente um morador de rua. Ele se intitula um “sem teto ocasional”, pois se apresenta como guarda de uma pequena loja de venda de cristais “portadores” de influxos benéficos até vir a perder o cargo e o teto para um vendedor de redes que o atraiçoa e os ocupa. Não se abala, pois tem algumas pequenas economias e mesmo em certas ocasiões prefere a rua, por exemplo, em suas noitadas com a namorada, também ela, ocasional, e que será sua moradia por tempo não determinado, como se conclui pelo fim da narrativa. Filho de um almoxarife de faculdade já falecido cujas sentenças lhe servem de guia, sobre esse aspecto apenas, teria um “olhar estrangeiro”. E bem pouco plausível, diga-se de passagem, sobre o ponto de vista de uma escrita naturalista, o que o texto decididamente não é, pois se mostra perfeitamente inserido e participante do espaço urbano sobre o qual narra com desenvoltura, nele incluindo o próprio perfil. O espaço, região, é que vem a ser realmente o objeto de sua descrição, sendo o caso amoroso, e as confusões sobre o bode (boddy) preto, apenas o fio condutor. E ainda que apoiado em dados precisos vivenciados em tal espaço urbano, as associações e imagens trazidas por esse sem teto ocasional, mesclam-se e tem peso igual na narrativa, tais como sacos de lixo formando grandes pirâmides negras, manecas, pequenas comerciárias, superstições de ricos e superstições de pobres convergindo, vendas em lojas suntuosas mas também naquele que se oferece nas ruas, nascido do escuro da noite, na condição de vitrine e vendedor ao carregar pendurado no corpo os objetos que negocia.

Augusto Massi, no posfácio de Região, aproxima a prosa que a senhora faz à literatura de Paulo Emílio Salles Gomes. Entre seus pares de geração, sente-se próxima, esteticamente falando, de alguém?

Não saberia dizer sinceramente quais são meus pares de geração. Talvez por estar sempre voltada a interesses diversos, particularmente cinema. Não estaria entre eles Paulo Emílio, claro, (se você nele pensou) que pertence ao grupo da geração da revista Clima e bem mais velho do que eu. Vim a conhecê-lo quando em um encontro na USP sobre cinema, entreguei-lhe em nome de J. Guinsburg um livro da coleção Debates, da editora Perspectiva, A personagem de ficção, recém-saído (do qual ainda não tomara conhecimento) e no qual participava, ele na área de Cinema, com Antonio Candido, Anatol Rosenfeld e Décio de Almeida Prado. O grande valor de sua ficção Três Mulheres de três PPPs (além do texto interrompido com sua morte, Cemitério) tornou-se conhecida quando já era amplamente lido e admirado como ensaísta, professor e realizador da Cinemateca Brasileira.

E hoje, lhe interessam as discussões sobre a literatura brasileira contemporânea? Há algum autor jovem que lhe chame a atenção?


Sim. Nada sei propriamente sobre “discussões”. E, o que lamento, a conheço mais por entrevistas, na imprensa ou na tevê, do que pela leitura das obras. Vários autores chamam minha atenção mas, como lhe disse, li poucos para me sentir confortável em citar nomes. Não seria justo destacar A ou B de um conjunto que mal conheço. Porém, o que posso afirmar com segurança, apresenta-se aí uma nova geração que me parece formada por autores muito diferentes entre si, o que me alegra. E a seu lado observo ainda a formação de uma nova crítica, assim como a de críticos (e professores) que são também escritores (ou o inverso).


Sua obra é relativamente enxuta. Como conjugou a carreira literária com sua profissão? Quando a literatura entrava em cena no seu dia a dia?

Se você se refere a “enxuta” como “pouca”, ela de fato o é. Se, como estilo, não sei, depende do texto que estiver em questão. Porém, se pensou na extensão dos textos, diria que O nome do bispo e Café pequeno têm o tamanho usual a romances. Contudo Joias de família, também lançada como romance, eu a considero antes com as características de uma novela. Todavia a edição apontou-a como romance e romance ficou. Sobre minha “carreira literária”, como diz, não penso em minha atividade como tal. Tampouco os trabalhos que realizei, sempre no âmbito da cultura, como profissão. Pesquisas na área de cinema, (o último como pesquisadora da Cinemateca), dois cursos de pós-graduação na Eca (Usp), produção de textos na editora (Perspectiva), estudo sobre as bienais de São Paulo para particular — em suma, cargos como celetista, autônoma ou de confiança não configuram um curso regular e produção homogênea. A conjugação dessas atividades com o que escrevia nem sempre foi fácil e por vezes, conforme o vínculo de trabalho mantido, impossível. O nome do bispo por exemplo, eu o comecei como pesquisadora da prefeitura no Idart (Centro de Pesquisa em várias áreas, instituído pelo então prefeito Olavo Setubal), e continuei como autônoma e mesmo assim foi difícil manter uma regularidade na sua escrita. Já quando saí da Cinemateca, como celetista, pude escrever regularmente, em oito meses, Joias de família.

Seus livros transitam por diversos gêneros literários, do conto ao ensaio, passando pelo romance e pela poesia. A junção de gêneros também costuma fazer parte da sua própria literatura, não apenas de seus livros: seus contos tem inclinação ao ensaio e em romances como Café pequeno, poemas encerram o livro. Qual a origem desse ideia literária?


Não formo propriamente qualquer ideia literária sobre o que até hoje escrevi no que diz respeito à questão dos gêneros, sem dúvida matéria de interesse a ser discutida. No livro O mandril, na sua primeira edição, esboço algo a respeito, porém exigiria outro espaço para formulá-lo de forma adequada. Quanto ao poema que encerra a última parte de Café pequeno, ele apenas compõe a figura do personagem Pereira Mattos; sendo muito usual na época, em cerimônias ou festividades, alguém “soltar o verbo” por esse ou aquele motivo, frequentemente de qualidade bastante discutível, como vem a ser o caso da cena descrita, em homenagem ao aniversariante, o engenheiro Alaor Pestana e ao seu bolo de aniversário que tarda a chegar. Também nos pequenos textos sobre “O Tio Paulista”, o tio produz, como ele próprio esclarece no trecho O tio paulista e um algo a mais ‘umas coisinhas poéticas” enviando ao seu amigo de Tatui, por carta expressa, um poema. O poema, também, como em Café pequeno, compõe o personagem. Ah, mas com este me diverti bastante.


No conto “O tapa-olho do olho mágico”, um crítico vai à casa de um poeta com o objetivo de fazer um ensaio sobre um poema de apenas seis linhas. A senhora costuma se surpreender com as leituras críticas que fazem de sua obra?


Em o “Tapa-olho do olho mágico”, o crítico, o poeta, a mulher do poeta, a mãe da mulher do poeta, o técnico de TV, um funcionário do prédio, o desconhecido (porém nem tanto assim) que por último toca a campainha do apartamento, cruzam funções, desconfianças, vaidades, urbanidades, e por aí vai. Tal como em Região, é o conjunto que configura o conto e no qual o poema de seis linhas se integra. Se me surpreendo com as críticas sobre o que produzo? Por vezes sim, outras não, como ocorre com qualquer encontro ou desencontro entre pessoas; já imaginou a uniformidade? Mas sobre isso falamos um pouco no início de nossa conversa.

Ainda em relação à crítica, intelectuais respeitados já se debruçaram sobre sua obra, como Roberto Schwarz e Berta Waldman. Essas leituras foram importantes para a senhora como escritora?


Sem dúvida. E muitas outras, também de grande valor. Contudo, mesmo aquelas que não julgo coincidirem com o que escrevo (já comentadas atrás), de maneira diversa também importam. Mas não julgo oportuno, pelo menos neste espaço, desdobrar-me em crítica das críticas que recebo (e nomeá-las), exceto para esclarecimento necessário, como fiz em relação ao critério do entendimento do que viria a ser “ensaio” dentro da ficção.

No primeiro texto de Região, “A curiosa metamorfose pop do sr. Plácido”, um homem pouco familiarizado com arte vai a uma Bienal. Plácido vai à mostra de arte com um penico, que me pareceu ser uma brincadeira com os ready-mades, de Duchamp. A senhora é uma consumidora de artes, acompanha o cenário?


O pequeno conto “A curiosa metamorfose pop do senhor Plácido” foi realizado em uma época em que aqui no Brasil, e para mim nos círculos que frequentei, discutia-se bravamente as questões entre arte e não-arte; com visibilidade maior, naturalmente por conta de seu suporte, em artes plásticas. Hoje, a questão continua de pé, (não penso que venha a ser “esgotável”) sempre com as artes plásticas tendo nelas o seu melhor exemplo, focado agora nas assim chamadas “instalações”, estruturas espaciais montadas com diversos tipos de matérias e materiais. Em “A curiosa metamorfose” Duchamp pode lá estar, tanto nos objetos que vende em sua loja o sr. Plácido, como nos desenhos no lado interno do lavatório, como na exigência para se chegar inocente (vale dizer, desinformado) diante de uma obra de arte, na possibilidade de arte ser ou não ser denúncia, ser vida, ou não, merecer ou não merecer o nome, e por aí vai. Assim como com o urinol de Duchamp, é pelo deslocamento de figuras e significados de seu espaço habitual que o texto se constitui, no qual o penico cor de rosa participa com êxito. Particularmente quando, ao mesmo tempo em que o sr. Plácido satisfaz as exigências da mulher, conseguindo finalmente sentar no pequeno recipiente, certinho e submisso ao que vem da ciência e não é uma brincadeira, como insiste a mulher, no despropósito do feito, renasce POP! É assim que hoje releio o texto para você, e a ideia de brincadeira, a sua, que você propõe, me é simpática. De resto, não me enxergo propriamente como uma consumidora de arte. Ela se encontra sempre presente, mas ao lado de muitos outros interesses.

A senhora pouco participa da chamada “vida literária”, o circuito de feiras e bate-papos que leva escritores às mais diversas partes do Brasil. Isso nunca a interessou?


Sim, mas não em particular, tendo participado de alguns encontros literários porém não recentemente, e que me foram prazerosos.

Nos textos reunidos em Região há muitas referências ao cinema, às artes plásticas e, em menor grau, à música. Quais dessas manifestações artísticas são mais proveitosas para sua literatura? O que lhe causa mais comoção?


Francamente não sei lhe responder, e a apreciação que possa fazer de uma obra não se acha ligada ao gênero a que pertence. Todavia, além naturalmente da literatura, tenho de fato maior familiaridade com cinema e artes plásticas do que com música. De meus trabalhos de não ficção há vários sobre cinema e um que escrevi há tempos sobre artes plásticas, intitulado Ironia e sentido, que trata justamente de algumas questões ligadas ao contexto na qual uma obra se acha inserida e de como este pode vir a compô-la ou alterá-la. Lembrei-me do texto por trazer na análise que faço de um artista plástico e de seu crítico, algum parentesco com as questões sobre arte, não arte e seus deslocamentos, mencionadas ao se falar da metamorfose do sr. Plácido.

Quando a senhora começou a escrever e publicar, o que esperava da literatura? Quais eram suas expectativas?


Continuar a escrever e publicar. Com maior frequência e melhor qualidade.

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