"Pacífico não é (a conciliação entre a racionalidade filosófica e a criação poética). São extremidades opostas do meu espírito. Lutam para se apossar do tempo que me é dado. Não me é fácil administrar esse tempo. Sou um palco microcósmico em que se representa a velha rixa entre a poesia e a filosofia. Quando me dedico a escrever sobre filosofia, não consigo escrever poemas, pois, para escrevê-los, é necessário pôr à disposição da poesia la crême de la crême do meu tempo livre: Ovídio o diz muito bem: vacuae carmina mentis opus, isto é, os poemas são obra de uma mente desocupada; e para que o creme do creme do meu tempo livre esteja disponível à poesia, não posso estar preocupado com questões filosóficas. Embora brevíssimas, as observações que em seguida farei sobre a filosofia serão sem dúvida tachadas de "logocêntricas" por alguns. Pouco me importa: contra as pseudofilosofias logofóbicas, considero o logocentrismo como a condição necessária para que a filosofia possa escapar de contradições e paradoxos auto-paralisantes. Ao escrever textos filosóficos, a minha ambição é afirmar determinadas verdades sobre referentes que se encontram fora desses textos. Em última análise, o que quero é que a minha escrita seja totalmente translúcida, isto é, que desapareça em prol do aparecimento das verdades que pretende estar a revelar. Meus enunciados não passam, portanto, de meios para dizer essas verdades, que são seus fins e que, em princípio, poderiam ser ditas com o emprego de outras palavras. Já a pretensão da poesia é, ao contrário, a de não poder ser traduzida nem parafraseada. É o poeta enquanto poeta que não pode ser "logocêntrico", no sentido em que Derrida entende essa palavra. O que um poema diz não deve poder ser dito - ou não deve poder ser dito igualmente bem - em palavras diferentes daquelas em que se encontra escrito. Além disso, o seu valor não está em pretender dizer verdades a respeito de referentes externos. O valor de Antony and Cleopatra, de Shakespeare, por exemplo, não depende em nada do seu grau de fidelidade à história real de Marco Antônio e Cleópatra. A verdadeira ambição de um poema é pertencer àquele conjunto de obras que merecem intrinsecamente permanecer para sempre imutáveis (pois não é possível aperfeiçoá-las), imperecíveis (pois não é possível substitui-las por outras) e atuais (pois não é possível esquecê-las). Quando realiza essa ambição, o poema consiste numa espécie de escritura da escritura, isto é, numa escritura não só de fato, mas de direito, pois a escritura se distingue da oralidade justamente por ser fixa, permanente e existente no modo da objetividade. Finalmente, o elemento da poesia é o concreto, o particular, o relativo, o temporal, o finito etc., enquanto o elemento da filosofia é o abstrato, o universal, o absoluto, o atemporal, o infinito etc. Contudo, confesso que tenho uma concepção muito restrita de filosofia, de modo que meus poemas contêm muitas coisas que outras pessoas consideram filosóficas.
Fonte: http://www2.uol.com.br/antoniocicero/ (03/02/2010)
“Assim como nenhuma filosofia, nenhum metadiscurso, jamais é capaz de parafrasear o discurso-objeto que é o poema, nenhum discurso-objeto, nenhum poema é capaz de falar sobre coisa alguma ou discurso algum sem deixar de ser poema; nem é capaz de falar sobre o metadiscurso terminal que é a filosofia, sem deixar de ser poema e passar a ser filosofia. Ou melhor: quando lemos um poema como metadiscurso, deixamos de lê-lo como poema. Na condição de poema, o que ele diz sobre alguma coisa não é um fim, mas apenas um meio. Os discursos sobre um texto poético se multiplicam justamente porque o que diz não pode ser separado das palavras com que o diz, de modo que todas as demais palavras com as quais tentamos exprimi-lo ou explicá-lo resultam sempre insuficientes; já os discursos sobre um texto filosófico se multiplicam porque o que ele tenciona dizer não é inteiramente expresso pelas palavras com as quais o diz, de modo que sempre pode e deve ser expresso e explicado melhor por outras palavras”.
Fonte: Cícero, Antonio. Poesia e filosofia: in Finalidades sem fim. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.