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Perfil literário
Esta seção, comandada pelo nosso correspondente no velho oeste paulista, Vicentônio Regis do Nascimento Silva, publicará semanalmente um breve perfil de alguns escritores destacados, porém pouco badalados, da literatura brasileira. É sabido que a nossa mídia é seletiva, onde apenas alguns autores aparecem, muitas vezes, mais do que merecem. Assim, Tiro de Letra também adota o critério da seletividade, só que ao contrário da grande mídia: vamos dar publicidade àqueles escritores que realmente merecem e precisam ser conhecidos pelo público. Abordamos hoje mais um dos expoentes da literatura brasileira

 

Caio Fernando Abreu

     Quando elegemos os escritores do cânone particular, geralmente designamos quem provocou alguma alteração em nossas percepções. Esse o caso de Caio Fernando Abreu, descoberto numa antologia de contos de uma coleção de bolso.
     Trata-se da reunião de nove textos do famigerado autor, como ficamos sabendo posteriormente, de “Morangos mofados”, selecionados por Luciano Alabarse. A edição bem cuidada e bem diagramada permitiu uma leitura fluente, levando a deliciar cada palavra, cada frase, cada parágrafo e cada conto.
     Quisemos descobrir mais do universo do contista gaúcho e adquirimos livros de contos e outros textos escritos por quem consideramos, em grande plano, um dos melhores adestradores da palavra literária. Aconselhamos, a quem quiser iniciar uma leitura, a adquirir a antologia mencionada (“Fragmentos”, LPM, 150 p.).
     A leitura de tal obra nos abrirá duas perspectivas: a linearidade e o psicologismo. Supomos que os trabalhos no conto linear são melhores – e mais tranqüilos de serem lidos – do que os psicológicos. Apenas para ficar no âmbito linear, escolhemos “Sargento Garcia” para demonstrar a maestria, a maturidade e a delicadeza com que, usando eufemismos e elipses, o autor consegue transmitir suas observações sociais.
Narrado em terceira pessoa, o conto concentra-se em dois espaços, sendo o primeiro o quartel e o segundo uma espécie de casa de encontros amorosos. O protagonista é sargento do exército recepcionando os recrutas que se alistaram no serviço militar obrigatório e, nus, são batizados na caserna. Entre ofensas e perguntas, sobressai a do curso universitário que se pretende fazer.
    Os questionamentos vão se seguindo até Hermes, o jovem atormentado publicamente pelo Sargento Garcia, sinalizar o desejo de virar filósofo. Seguir uma carreira que destoa das profissões mais renomadas no círculo social – as quais foram chamadas pelo historiador Edmundo Campos Coelho de “profissões imperiais” – causa um impacto ambíguo no militar que, no primeiro momento, discorda do subordinado para, em seguida, chamar a atenção de outros companheiros para a escolha acertada.
     A ausência de comentários do narrador e a anuência do Sargento Garcia, seguida de um silêncio sugestivo, conferem estranhamento à resposta do comandado que, sem entender, aceita de bom grado o elogio. O elogio se estenderia ainda mais quando, parado ao portão, o Sargento Garcia oferece carona, ouve as considerações esparsas do recruta e, passando a mão em seu corpo, dispara:

“– Escuta, tu não tá a fim de dar uma chegada comigo num lugar aí?
(...)
- Um lugar aí. Coisa fina. A gente pode ficar mais à vontade, sabe como é. Ninguém incomoda. Quer?”

     As perguntas que sustentam o diálogo entre Sargento Garcia e o carona configuram as relações promíscuas e as fugas do cotidiano, demonstrando que as relações públicas na sociedade se pervertem – não pela questão sexual, não discutida aqui – pelas ações furtivas, herméticas e secretas na busca da concretização do desejo, destruindo, dessa maneira, as imagens sulcadas e realocando o status social das personagens.
     Após saciar-se, Sargento Garcia solta o recruta que, atordoado pela música popular executada durante todo o tempo dos movimentos entranhares, corre em busca do transporte que teria pegado, caso não tivesse aceitado a carona.
    Os contos de Caio Fernando Abreu, especialmente “Sargento Garcia”, analisado rapidamente, exteriorizam a fantasia e a loucura, questionando os limites do comportamento, da perversão, da liberdade, do cotidiano. Essas são suas qualidades mais gritantes às quais poderíamos acrescentar o tratamento da linguagem que, por motivos diversos, fica para uma próxima ocasião.

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Vicentônio Regis do Nascimento Silva é crítico literário, contista, cronista e educador. Assina as colunas Ficções, publicada semanalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP), e Perfil Literário na página Tiro de Letra (WWW.tirodeletra.com.br). Colabora no Poiésis (Saquarema – RJ) e no Assis Notícias (WWW.assisnoticias.com.br/livros). Recebeu, entre outros prêmios literários, os da Academia de Letras de São João da Boa Vista (São João da Boa Vista – SP), concurso literário Felippe D’Oliveira (Santa Maria – RS) e UFF de Literatura (Niterói – RJ).

WWW.vicentonio.blogspot.com

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