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Reflexão

Poesia, pra quê serve?

 

     “Para que poetas em tempos de penúria?, perguntava-se Hölderlin.

     Num mundo regido por estes quatro verbos: produzir, consumir, racionalizar e dominar, é possível fazer e ler poesia?

     Trabalhar, ver televisão e dormir são as três atividades que as pessoas mais tempo ocupam no mundo contemporâneo.

     Este nosso mundo está cada vez mais ameaçado. Cada vez mais desarraigados estamos. Vivemos num ambiente cada vez mais tecnocrático, tecnificado, informatizado, virtual, e onde se diz que a realidade é o virtual. Houve uma ruptura do espaço em que o ser humano vivia em harmonia com a natureza.

     Esta sociedade transmite que o máximo da sabedoria humana consiste em saber de política, de informática, de economia, de estatística.

      Rachel de Queirós sempre repetia: “Poesia. Que seria do mundo sem ela? A poesia é o alimento da alma apesar de todas as sombras”.

      A poesia tem sido durante séculos o primeiro meio de comunicação. Graças a ela houve infinitos amores e nos tem ensinado a amar.

      Poesia é via de conhecimento, um modo de desvelar a realidade, não só essa realidade que nossos olhos veem, mas uma realidade que está mais além. O poeta escreve o que não é. Sou pedra, escreve pássaro. Sou tristeza, escreve alegria.

     Poesia é subversão e os poetas têm olhos de outra cor. Não há nada mais frágil que um poeta e, no entanto, é por excelência aquele que diz não à peste negra da mentira, da banalidade, do consumo. Precisamos de poesia para restabelecer diante das coisas o assombro, o olhar prodigioso, a possibilidade de fazer falar o mundo silencioso. Se não é pela poesia, como crer no absoluto, na eternidade?

     A poesia é sempre o reverso das coisas. Não se trata de mentira. O poeta escreve para invocar essa coisa ausente. Toda poesia é um ato de feitiçaria. O poeta com a palavra dança com todas as coisas.

     O poeta (e todo artista) tem sido sempre os olhos, os ouvidos, a voz da humanidade. É aquele que sempre transcende e é capaz de dar com sua visão de raios-X uma imagem dos verdadeiros estados de nosso ser. A droga da poesia faz com que a vida e a lucidez sejam mais absorventes.

     Nietzsche sempre dizia: “Nenhum escritor, artista, poeta tolera a realidade”. E Anaïs Nin reforça o que foi dito acima: “Na vida, lutar somente pelo pão, sem este processo criador, a poesia, morre nossa capacidade de sonhar, de imaginar, de inventar e experimentar. O ser humano se converterá num robô bem alimentado e morrerá por falta da adequada alimentação espiritual. O sonho tem sua função e o ser humano não pode viver sem ele”.

     Se a poesia existe desde Homero até nossos dias, não vejo razão porque não vai continuar existindo. Há aqueles que pensam e dizem que a poesia já não tem mais razão de ser, mas o certo é que não concebo um mundo sem poesia, na medida em que não concebo um mundo sem expressão de sentimentos.

     Muitos confundem os poetas como fazedores de versos e rimas. Ser poeta, fazer poesia (poesis=criação) vai muito mais além do escrever. Um poema não se faz só com palavras, faz-se com a vida, com as turbulências da vida e da alma. O poeta é um ser que está muito mais próximo da realidade essencial.

     Por isto, escrever poesia é quase uma atitude delitiva para mim, e exige muito na hora de não fazer nada (é preciso muita coragem para não fazer nada), às vezes é como uma infinita desesperança em noites mais escuras. Os poetas falam e escrevem poesia como se estivessem em transe. Fazer poesia fragiliza, devassa, consome. O poeta torna-se vidente por um longo, imenso e sistemático desregramento de todos os sentidos. O poeta é quase um ser milagroso que chega ao poema num estado excepcional e extra-humano.

     Cabe muito bem colocar aqui o que disse Rainer M. Rilke: “Os versos não são como se acredita, sentimentos apenas (estes nós os temos em demasia), mas são experiências. Para fazer um verso deve-se ver muitas cidades, seres humanos e coisas; deve-se aprender a conhecer os animais, sentir o vôo dos pássaros e saber o gesto das pequenas flores quando se abrem ao amanhecer. É necessário recordar os caminhos já percorridos por lugares desconhecidos, encontros inesperados e despedidas pressentidas, os dias da infância surgidos de forma estranha, seguidos de profundas e graves transformações; os dias transcorridos sós e silenciosos; as manhãs perto do mar; pensar nas altas horas da noite cheias de murmúrios, levando consigo todas as estrelas do céu.

     É preciso também ter lembranças de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual à outra; recordar os gestos das parteiras. Deve-se também estar ao lado dos moribundos, ter sentado ao lado dos mortos, com uma janela aberta que bate constantemente e tão pouco basta em ter apenas lembranças. É necessário saber esquecê-las, se são muitas, a ter a grande paciência para esperar para que voltem, só quando estas lembranças se fazem em nós sangue, gesto, sem um nome que possamos distingui-las de nós mesmos, então pode acontecer numa hora insólita brote dentro delas a primeira palavra de um verso, de um poema e se leve a bom termo”.

      Hoje, mais do que nunca os seres humanos têm feito apelo à poesia nos momentos mais graves ou decisivos de sua vida. Isto significa que a poesia ainda serve para algo nos momentos de perigo. Esses momentos em que não valem os discursos dos economistas e dos políticos.

      Numa entrevista, um jornalista perguntou a Jorge L. Borges:

      -Para que serve a poesia? E ele respondeu:

      -Para que serve a morte? Para que serve o sabor do café? Para que serve o universo? Para que sirvo eu? Para que servimos? Se uma pessoa lê uma poesia e se é digna dela, a recebe e agradece e sente emoção. E não é pouco isso. Sentir-se Comovido por um poema não é pouco. É algo que devemos agradecer”.

      A Paulo Leminski também fizeram a mesma pergunta:

      -Poesia. Pra quê?

     -“O puro valor da palavra está na poesia. Por isso é sempre considerada mercadoria difícil. Poesia não vende é um dos mandamentos do decálogo mínimo de qualquer editor sensato. Pois não vende mesmo. O destino da poesia é ser outra coisa, além ou aquém da mercadoria no mercado. Mal obram e mal pensam aqueles que reclamam da resistência em publicar poesia. Deveriam mais é ficar alegres. A poesia, afinal, é a última trincheira onde a arte se defende das tentações de virar ornamento e mercadoria, tentação a que tantas artes sucumbiram prazerosamente.

     -Então, poesia pra quê?

     -Felizmente pra nada.

     -Servir pra quê? Num mundo em que tudo serve para alguma coisa e assim dar lucro, fundamental que algumas não sirvam pra nada”.

     Poeta (poesia), águas revoltas onde ele quase se afoga, o que escreve é uma ponte de palavras que tenta construir para atravessar o rio. O poeta tenta apanhar o eterno que existe por um instante no rio do tempo e assim o poema pode engravidar. O poeta e seu estado de febre e gravidez permanente.

     Os poetas parecem ser os que mais entendem a desastrosa situação em que se encontra o ser humano hoje, no entanto, por esta mesma razão são os que mais perto estão do desespero. Quantos e quantos poetas se suicidaram!

     Para mim, a poesia não é um adorno que acompanha minha vida, nem uma passageira exaltação, acaloramento ou diversão. Poesia é fundamento que suporta todo meu ser. Não é um dizer caprichoso ou um jogo de palavras. Poesia é a interação do meu ser com o viver. É uma maneira de estar no mundo. E como diz Fernando Pessoa:

 

     Não tenho ambições nem desejos.

     Ser poeta não é ambição minha.

     É a minha maneira de estar sozinho.

 

     Só assim, como diz Platão, o poeta “é um ser sagrado porque está possuído pelos deuses”. Um demiurgo do verbo. Vidente. Ruminante do absoluto. Místico e escultor da palavra. Então, fazer poesia é no fundo uma ferida sempre aberta para onde desafoga a boa saúde do corpo e da mente.

     Manoel de Barros disse algo extraordinário sobre a poesia: “O poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina”. Considero importante citar mais alguns poetas que estremeciam quando falavam de poesia: O poeta é um indisciplinador de almas”, disse Fernando Pessoa. Ferreira Gullar disse uma vez que “a poesia é intempestiva. É algo que ninguém controla. Ela me acorda no meio da noite. A poesia quando chega de qualquer de seus abismos não respeita nem pai nem mãe”. Apollinaire referindo-se a Sócrates e a seus discípulos nos diz algo tão poético:

 

     Cheguem até à margem, disse ele.

     Eles responderam: Temos medo.

     Cheguem até à margem, ele repetiu.

     Eles chegaram.

     Ele os empurrou e eles voaram.

 

     Ana Cristina César, no seu poema “Instruções de uso”, retrata bem o que é ser poeta:

 

     O coração do poeta tem bordas flácidas.

     Ele derrama, vaza, descamba.

     O coração do poeta tem perna bamba.

     Constituição frágil e congênita.

     Não adianta querer vitaminá-lo,

     Pois seu tônus se refaz nos frêmitos

     Das chegadas e dos abandonos,

     O melhor é deixar-se amar

     E, se possível, não deixar de amá-lo.

 

     Mario Quintana apresenta a poesia com um belo poema:

 

     Os Poemas

 

     Os poemas são pássaros que chegam

     Não se sabe de onde e pousam

     No livro que lês.

     Quando fechas o livro, eles alçam voo

     Como de um alçapão.

     Eles não têm pouso

     Nem porto.

     Alimentam-se um instante em cada par de mãos

     E partem.

     E olhas, então, essas tuas mãos vazias,

     No maravilhado espanto de saberes

       Que o alimento deles já estava em ti.

     Oscar Bertholdo, um poeta que muito me ensinou a admirar

     e viver a poesia, diz:

                          

     Descobri agora como se houvera sabido desde séculos

     Que o poeta sempre estará só.

     A solidão, as palavras, os poemas não abandonam

       O poeta. Tudo é passageiro, menos a poesia.

     Esta sociedade banaliza tudo através dos meios de comunicação. E acima de tudo dá mais importância às estrelas de TV, aos homens de negócios, jogadores de futebol e despreza olimpicamente aqueles que consomem sua vida à arte, à poesia. Como não sentir pavor e indignação frente a tantas barbaridades, banalidades, a esta imposição como moda dessacralizadora e despoetizante. Octavio Paz refere-se muito bem a esta sociedade, dizendo: “Se uma sociedade sem justiça social não é uma boa sociedade, uma sociedade sem poesia é uma sociedade sem sonhos, sem palavras e, o mais importante, sem essa ponte entre uma pessoa e outra que é a poesia porque a forma suprema da linguagem é a poesia. Se a sociedade elimina a poesia está cometendo um suicídio espiritual”.

     Conviver com a poesia, mais do que nunca é necessário e nos permite estar de olhos mais abertos, olhando além do que se vê. E assim, como disse Perey Shelley, “a poesia será um espelho que torna belo até aquilo que é deforme".

     Não há mais lugar para a poesia. O poeta foi expulso da cidade. A cidade tornou-se um corpo fragmentado, perdeu sua geografia poética.

     Na antiga Grécia foram os filósofos que expulsaram os poetas de sua "res publica", depois foram os técnicos que destronaram a filosofia. Custou caro ao filósofo aceitar que o saber foi invenção do poeta, que a eternidade da Grécia se deve primeiramente a Homero, depois a Platão.

     Hoje não se canta mais a cidade. Só há lamentos, ruídos. Não há mais silêncios. Mais do que nunca precisa de poesia. O poeta e a poesia estão em contra do "florescimento do consumo" e clamam pelo regresso das andorinhas, das plantas, flores e outros pássaros, porque os pássaros que ainda existem têm dificuldades para visitar as árvores ainda existentes como abrigo. Clama até por elefantes nas sacadas, e assim haverá o olhar da ternura, o olhar sem pressa, o olhar com horizontes, o olhar de assombro.

     A natureza chora de espanto quando sente que o ser humano se aproxima. Por toda parte tem deixado rastro de morte.

     As musas sabem que o poeta não vai salvar a cidade, o mundo, mas é ele que lida com a fantasia e o devaneio, indispensáveis para o sonho de outra cidade, outra forma de viver. Imaginar é mais do que ver. Hoje, a impressão que se tem é de ver pessoas que não vão a lugar algum, mas têm muita pressa.

     Deveria ser sempre perigoso ler poesia. Os poetas são bruxos. Ao ler poesia somos levados para longe do real porque queremos algo melhor. Flutuamos. Sonhamos. Viajamos. Somos ameaçados pelo feitiço. Talvez pela loucura. Tenham cuidado com a poesia. Ela faz bem, é necessária e nos torna mais humanos.

    O poeta continua a crer na força invisível da expressão da palavra. A palavra, longe de se bastar, só se completa designando o que a ultrapassa.

      E um poema como este de Jaime Sabines é oxigênio para o espírito nestes dias de penúria.

     Os poetas, pela graça da palavra,

     São desgraçados. Hoje, para os poetas, amanhecer

     Não é dar-se conta do dia e sim da

     Amargura da solidão e quando a

          Cólera morde,

     Tenho pensado na duração de Deus.

     E quero chorar às vezes furiosamente.

     Deixar de estar só, água para sede de Deus.

     Água para o incêndio de Deus alimento.

     Convido a Deus esta tarde.

     A comer uvas e a tomar um café se chove

     Poesia para mim é tão consubstancial como respirar, e os poetas me ensinam a não ter nada a perder e espantando o silêncio que perturba (aquele silêncio vazio), me deixam encantado com seu espaço interior, maior que a eternidade.

    

     Com a poesia eu habito a casa da possibilidade.

     A poesia tem mais portas e

     Janelas que a casa da razão 

     (Emily Dickinson)

 

Texto inicial do livro:

CONC(S)ERTOS EM DÓ MAIOR PARA AS PERDAS DO ESPANTO

do poeta e garimpeiro de pérolas literárias Delmino Gritti, autor de

 Sobre o livro e o escrever. Caxias do Sul: Maneco Livraria & Editora, 2002.

 vol. 2: Dos tijolos da Suméria aos megabytes pós-humanos do      

  terceiro milênio. Caxias do Sul: Ed. Liddo, 2007.

 

delminogr@gmail.com

 

    

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