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Por que escrevo?
Osman Lins

'Houve um tempo em que achei belo um poeta dizer que escrevia pela razão por que uma árvore dava frutos. Só bem mais tarde descobri ser um embuste aquela afetação: o homem, por força, distingue-se das árvores e tem de saber a razão de seus frutos, cabendo-lhe escolher os que há de dar, além de investigar a quem se destinam, nem sempre oferecendo-os maduros, e sim podres: e até envenenados. Empreendi, então ao mesmo tempo, a crítica do objeto e da natureza do que supunha ser a vocação. Modifiquei por completo, minha concepção do ato de escrever e não mais me senti assinalado, obrigado a cumprir um destino imposto para sempre. A ordem de avançar, de evoluir, de erguer uma obra permaneceu: fiz-me mais lúcido, mais consciente; e, se antes era comandado, agora comandava. Escolhera, escolhi sempre, todos os dias, em muitos sentidos. Não trouxe, ao nascer, lápis nem papel. Ninguém jamais nasce com uma espada, nem com um facão de mato, nem com um aspersório, nem com um clavecino. Nus, inscientes, trazemos todos as mãos vazias, aptas a um sem-número de amestramentos e a bem usar no futuro não importa que utensílios. Quando o homem admite ser o instrumento de uma vocação, sem ampliar o número dos que - com a mesma tendência de parecerem ligados a instantes e dúbias realezas - dizem-se guiados, na composição de seus livros, pelo sopro da inspiração. Quando, ao contrário, recusamos ser o portador, o executante de uma vocação, quando - bem ou mal - escolhemos, definindo-nos perante nós mesmos, ampliamos o papel da consciência (essa consciência que a psicanálise cumula de álibis) na elaboração de nosso destino e nos inserimos de um modo mais positivo em nossa condição de homens, de artesãos do mundo. Tornamos um pouco mais próxima de nós aquela vida sonhada em que o homem, sem renegar o mistério de sua condição, vem restaurar-se com fé e confiança na fruição de suas liberdades e na aceitação de suas responsabilidades. Vamos falar na decisão de ser escritor. Como se deu? Difícil pensar. Naturalmente não foi de uma hora pra outra, mas o certo é que nunca hesitei entre aderir às letras e empenhar-me em qualquer outra carreira. Nenhuma das outras formas de justificar a nossa passagem na Terra me animava. Não me parecia, por exemplo, que prefeito ou gerente de uma firma tivesse muito sentido. Fui pesando as forças, sondando-me até que - com essa dose de ilusão sem a qual nada empreendemos - me alistei na literatura, fiz os votos, assinei um pacto, jurei fidelidade, convertendo num porjeto sem volta o que antes fora intermitente. Quanto tempo seria necessário para chegar a escrever alguma coisa que não fosse apenas exercício? Um dia, conversando com Vicente, meu barbeiro, e exímio dançarino de tango, perguntei quanto tempo levara para aprender a amolar uma navalha

- Dez anos - respondeu-me.

- Com sete ou oito anos de profissão, você ainda não havia aprendido?

Respondeu que não e que se dava por feliz, pois o que custa a se aprender é porque tem segredo, e o segredo vale mais do o sabido por todos. Eu estava disposto a aprender, se necessário durante a vida inteira, alguns segredos da arte de escrever. Ninguém nasce sabendo, e eu ia tentar. Tinha a meu favor a juventude, a paciência e um relativo desprezo pelos bens que se compram. Quando, afinal, a decisão tomou forma, eu já trabalhava numa estrovenga chamada Banco do Brasil. Decidindo-me, tratei de armar-me para evitar que a estrovenga me engolisse. É quase impossível não fazer carreira no Banco do Brasil. Mas eu consegui. Utilizei, para escapar, a declarada hostilidade da organização contra tudo que lembre gratuidade e vida: a poesia não tem o seu aval. A princípio essa hostilidade espantou-me. Depois, ao contrário, decobri que o Banco do Brasil era apenas uma amostra do meu país e que em nunhum outro lugar, nem mesmo na vida universitária onde atuei alguns anos, eu viria a encontrar um ambiente realmente propício ao escritor. Não que isso dê na vista ou que logo seja percebido. Não. Só aos poucos vai o escritor percebendo que aquele xerife de certos filmes do oeste, que vê os possíveis ailados desguiarem um a um e afinal chega à conclusão nada cômoda do que terá que enfrentar sozinho Bill Wicked e seu bando, se parece um pouco com ele.  Por isso escrevi Guerra sem testemunhas, para estudar o confronto do escritor com as nossas estruturas. Firmeza de espírito, cega fidelidade a si mesmo, espírito de luta são algumas das qualidades que ele tem que desenvolver e que nunca se imagina serem-lhe necessárias. Mas ainda há outras".

Fonte: STEEN, Edla van. Viver & escrever 2. Porto Alegre: LP&M, 2008.

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